A segunda parte do ensaio referido pelo título deste post confirma plenamente as promessas da primeira, para a qual já chamei a atenção há dias (aqui). É que, ao mesmo tempo que uma desmontagem radical do nacionalismo e das consequências letais da ambivalência do próprio Marx sobre a questão, João Valente Aguiar abre perspectivas críticas não menos penetrantes, ainda que na circunstância mais oblíquas, sobre a questão do Estado. Aliás, a este respeito, poderíamos perguntar de passagem se a permanência do paradigma estatal que onera o pensamento do próprio Marx, não será a causa maior da sua ambivalência perante a questão nacional, do mesmo modo que "explica" de certo modo, como o JVA sublinha, o destino histórico do marxismo, de vários marxismos, como "racionalização" e apologia de um modelo de gestão hierárquico e classista. Tudo se passa como se Marx, não querendo abdicar da exigência do fim do Estado, acabasse as mais das vezes por erigir, ao mesmo tempo, o mesmo Estado em única forma de poder político e, mais geralmemte, de organização política possíveis. A superação do Estado estaria reservada ao estádio comunista, concebido este como um reino de abundância que dispensaria toda e qualquer instituição, toda e qualquer forma de poder, toda e qualquer forma política. Uma das consequências desta visão mítica seria a consagração da necessidade (económica) de um poder político classista de burocratas e gestores durante o chamado "período de transição" — consagração que acarretaria consigo a da forma do Estado-nação como, para parfrasearmos a retórica sartreana, "horizonte insuperável" do nosso tempo.
Trata-se aqui da necessidade, reiteradamente sublinhada por Castoriadis, de concebermos e praticarmos a democratização das instituições e do poder político (direcção da economia incluída, sem dúvida) contra o Estado, ou de concebermos e praticarmos a democratização da política em vez de alimentarmos uma escatolgia que nos deixa como única alternativa ao actual estado de coisas a abolição (liberticida) da acção política enquanto tal. Que te parece, João? Mas teremos, espero, outras ocasiões de discutir tudo isto. Para já, a minha ideia era simplesmente chamar a atenção dos frequentadores desta casa para a importância desta segunda parte do teu ensaio. E, para esse efeito, aqui transcrevo, com tua licença e do Passa Palavra, uma passagem reveladora:
(…) como tive oportunidade de defender na primeira secção deste artigo, a nação não se resume a um mero espaço físico e instrumental. No que lhe compete do ponto de vista político, a nação consubstancia uma arquitectura política estatista e capitalista.
Em concreto, no final do capítulo 2 do Manifesto Comunista, mais propriamente nos 10 pontos que abordam medidas para instaurar o comunismo, verifica-se que nos pontos 5 – «Centralização do crédito nas mãos do Estado, através de um banco nacional com capital de Estado e monopólio exclusivo» – e 6 – «Centralização do sistema de transportes nas mãos do Estado» – essa tendência nacionalista está presente. Expressão da tensão que mencionei acima, desdobra-se em toda essa obra clássica uma tensão entre o estatismo e a propriedade colectiva dos meios de produção.
Paradoxal este exercício de buscar construir uma sociedade comunista com propostas que reforçariam o capitalismo. Quanto mais não seja de um ponto de vista estrito, estas propostas foram aplicadas no capitalismo de Estado soviético, e nem por isso se chegou a qualquer tipo de sociedade sem classes, muito pelo contrário. E de um ponto de vista mais lato, não são muito diferentes da criação de bancos detidos pelo Estado nas democracias liberais (em Portugal, a Caixa Geral de Depósitos, no Brasil, os casos distintos do Banco do Brasil e do BNDES) e da criação de redes estatais de transportes. Pode-se legitimamente replicar que tudo isso seria/é diferente com a tomada do poder político pela classe trabalhadora. Mas a classe trabalhadora também levou a cabo a revolução soviética e as instituições estatais criadas pelos bolcheviques, no rescaldo das derrotas das comissões de fábrica, não eram estruturalmente distintas das existentes no capitalismo ocidental. Também por aqui me parece possível argumentar pela pertença do Estado a um universo antagónico ao controlo da vida social pelo conjunto dos trabalhadores.
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6 comentários:
É, sem dúvida, um texto interessante e relevante do JVA. Antes de mais, porque houve uma clara tentativa de perceber as intenções e raciocínios subjacentes às posições defendidas por Marx e outros, mesmo discordando delas. Isto é uma verdadeira reflexão crítica sobre uma dada questão. O contraste não podia ser maior com os textos panfletários que o João Bernardo tem escrito sobre a ecologia, nos quais a sua obsessão em retratar da pior maneira possível o ecologismo o leva a escrever textos cheios de contradições e afirmações absurdas, como é o caso do último. Serão escalpelizadas num post em breve.
Voltando a este texto do JVA, só gostaria de deixar uma questão. A dada altura é dito que:
"(...)a nação é, por definição, uma construção política e ideológica indispensável ao capitalismo(...)"
No entanto, um dos principais argumentos do JVA a favor da manutenção do euro, tem sido o facto desta construção monetária, claramente para ajudar à expansão da classe capitalista trasnacional, estar a provocar não só uma erosão crescente da capacidade soberana dos Estados (nacionais) no seio da UE, mas também da validade do conceito de Nação. O que abriria a porta à constituição duma (consciência de) classe trabalhadora igualmente com características transnacionais.
Em que ficamos então? Como é que Capitalismo pode estar a destruir o Estado-Nação ou Estado Nacional, se este lhe é indispensável? Tal só seria possível se a classe capitalista trans-nacional fosse tão pouco inteligente que não se apercebesse que estava a construir as condições para a sua própria destruição. Será?...
Abraços,
Pedro
Miguel,
mais uma vez obrigado pela menção e sobretudo pelos comentários ao texto.
A questão fundamental no "Manifesto Comunista" é que toda a visão inovadora que o Marx e o Engels ali expressaram para a altura se enforma, ao mesmo tempo, por uma permanente valorização do Estado como pretensa instância libertadora. Não é apenas um aspecto circunstancial mas estrutural de grande parte do pensamento do Marx como se procurará evidenciar nas restantes partes. Uma das maiores ambiguidades políticas do "Manifesto" encontra-se na consciência profunda de que o Estado tem toda uma configuração classista e repressora, mas que a tomada do poder político pelos comunistas e pelos trabalhadores permitirá a sua libertação. A evolução do Marx foi tentando dar resposta a esta ambiguidade e na altura da Comuna chegou a defender que a classe trabalhadora não apenas teria de tomar o poder de Estado mas de transformar o próprio Estado numa nova forma de organização social. Como procurarei demonstrar na quarta parte, nem com a experiência da Comuna o Marx romperá com a sua visão estatista e centralizadora. Ali nem a defesa da revogabilidade dos eleitos pelo Marx suplantará a defesa da persistência de uma instância central hierárquica. Evidentemente, o princípio de funcionamento do Estado em nada se compadece com o desenvolvimento de qualquer tipo de organização conselhista...
É da ambiguidade tensional do Marx que subsequentemente surgirá da esquerda herdeira aspectos ainda mais nocivos e ainda mais estatistas e nacionalistas. É que enquanto o Marx desenvolveu lado-a-lado aspectos teóricos e científicos de enorme alcance com uma teoria da esquerda dos gestores, o que nós hoje chamamos de esquerda é ainda mais autoritária do que a direita neoliberal. É a esquerda que tem na mais-valia absoluta o seu credo económico e que tem na defesa da pátria a desculpa para sonhar com a colocação dos dirigentes honestos do proletariado ao comando. É a esquerda que, quando confrontada com as suas patranhas irracionalistas, ecologistas e nacionalistas, gosta da insidia pessoal e transforma divergências políticas em assuntos de assassinato de carácter. É a esquerda que se convenciona chamar de esquerda mas que actua à direita da direita austeritária.
Abraço
Vou supor que a última frase é-me dirigida. Insídia pessoal? Assassinato de carácter? Quem anda a caracterizar como fascista e genocida, desde o início da discussão, todo aquele que tem opiniões próximas do ecologismo?! Quem anda a tentar, porque é esse precisamente o seu objectivo, denegrir não só o ecologismo, mas também, e principalmente, todos os que partilham os seus pressupostos? Comparado com isto, acusar alguém de patente desonestidade intelectual, e comprová-lo em vários dos textos em que aborda a questão, é insignificante. A vitimização é o recurso daqueles que sabem não possuir argumentos para responder àqueles que os interpelam, assinalando as contradições e a má-fé (a alternativa é a ignorância) do seu discurso. Menos lamúrias, e mais discussão substantiva!
Os poucos que me lêem aqui não ignoram decerto a minha admiração intelectual que tenho pelo conjunto do trabalho do João Bernardo nem a frequência com que tenho procurado chamar a atenção para a importância das suas ideias políticas. Dito isto, apesar de algumas observações penetrantes que a acompanham, não posso subscrever e não chego sequer a compreender bem as suas teses sobre a politização das questões ambientais ou "ecológicas". E, do mesmo modo, também não posso deixar de divergir da adopção incondicional pelo meu amigo e camarada João Valente Aguiar de teses idênticas.
Que sentido faz meter no mesmo saco a mitologia reaccionária da "ecologia profunda" e, sei lá eu, mas, por exemplo, as "Reflexões sobre o Desenvolvimento e a Racionalidade" de Castoriadis, de que publiquei aqui alguns excertos há dias? Como é possível, partindo dos pressupostos gerais do JB e do JVA, deduzir que a politização das questões do ambiente, dos modelos de consumo, da qualidade dos alimentos, do ordenamento do território e da (des)urbanização selvagem das cidades, equivale sempre e em qualquer caso a levar água ao moinho do fascismo? Com efeito, não há proximidade - ou por vezes, mais do que isso - dos pontos de vista de um e outro e dos meus que possa levar-me a acompanhá-los a propósito das questões que evoquei. E a razão é precisamente o compromisso que assumo com uma forma de racionalidade democrática solidária da que inspira também a maior parte e a melhor dos escritos do JB e do JVA:
Finalmente, uma nota a pensar no meu amigo Pedro Viana. Não me parece muito correcto nem profícuo do ponto de vista de quem reclama argumentos substanciais o modo como tu, Pedro, "entraste a matar" contra o JB no teu comentário sobre este post. Nem que tenhas assumido como um ataque pessoal inequívoco a parte final do comentário que o JVA fez do mesmo. É por isso, e provavelmente porque avalio de modo diferente a importância dos escritos do João Bernardo no seu conjunto, independentemente de divergências que possamos ter sobre mais do que um problema, que, se não posso subscrever o "pôr todos os cestos nos mesmos ovos" que aflora no comentário do JVA a este post, também não posso subscrever a tua resposta a parte das suas observações, por muito que discorde do modo como ele as formula (e não preciso de explicar outra vez porquê).
Abraço para ambos
miguel (sp)
Caro Miguel,
Fui sincero no meu 1o comentário. Acho que o João (VA), nos textos que escreve tem, habitualmente, a preocupação de tentar compreender o raciocínio daqueles de que discorda. Não distorce, nem hesita em aceitar, quando é verdade, que há boas intenções naqueles que critica, mas cujos equívocos levam a fins trágicos que têm de ser denunciados. Como é patente nestes seus textos sobre a posição de Marx perante o nacionalismo. Não percebo assim como é que o João (VA) não se apercebe do contraste entre o seu modo de argumentação, e o exercício que o João Bernardo tem feito relativamente ao ecologismo. Dado que o João (VA) parece imune à argumentação que eu, tu e outros temos usado para contestar aquilo que o João Bernardo tem afirmado à cerca do ecologismo, pareceu-me que chamar a atenção para o contraste acima mencionado fosse uma via alternativa para o fazer reflectir melhor sobre o assunto.
Já li outros textos do João Bernardo, e não tenho problema nenhum em concordar com a argumentação neles exposta. Mas, no que respeita ao ecologismo, lamento, mas o preconceito contamina todo o seu discurso. Todos temos as nossas fraquezas, que não diminuem o valor do que fazemos bem.
Abraço,
Pedro
Segundo Maximilien Rubel, Marx " descobre " inspirado pelos historiadores da Revolução Francesa e a leitura dos utopistas franceses,ingleses e alemães- Fourier,Owen e Weitling, por exemplo- 27 anos antes da eclosão da Comuna de Paris, o critério estruturante da revolta dos tecelões da Silésia( Verão de 1844),que o induz a erguer a sua teoria materialista da História; que mal ou bem,frisa M. Rubel, se irá confrontar, de Março a Junho de 1871, com as contradições incontornáveis postas em acção no palco pariseense da Comuna: " Imaginação critica e utopismo normativo- estes componentes do ensino de Marx fazem-nos compreender a sua atitude face à Comuna. A revolta dos tecelões silesianos simboliza a luta contra a propriedade privada e contra o dinheiro. A Comuna, simbolo da negação do Estado,constitui a chave do apoio que Marx prodigaliza à luta desesperada dos Communards ". Depois viria mais tarde a legenda sinistra sobre o Estado Operário, criada por um prefácio de Engels oito anos apòs a morte de Marx na reedição de " A Guerra Civil em França ", que tanta confusão criou no espirito de Lénine e Trotski no alvor da Revolução Russa. Niet
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