As linhas que se seguem são um comentário ao texto do João Bernardo que o João Valente Aguiar ontem publicou no Vias, e que, devido à sua extensão, se tornaria pouco prático inserir na caixa de comentários do mesmo.
João,
Um dos aspectos mais convincente do que acabas de escrever é, na minha opinião, a tua ideia segundo a qual se trata de “entender as forças produtivas como contendo as, e sendo determinadas pelas, relações sociais de produção” sem esquecer que “as forças produtivas e o nível de produção que estas permitem [são] um factor decisivo”. Gostaria, no entanto, de explicitar aqui (mas suponho que tu próprio já o tenhas assumido) que um conceito tão amplo de "forças produtivas" já não é simplesmente económico, remetendo para nada menos do que as "forças" que dão forma à instituição da sociedade enquanto tal. E, do mesmo modo, poderíamos, ou deveríamos, dizer que as "relações sociais de produção" têm por base (não lhe vou, apesar de tudo, chamar "infra-estrutura") as relações de poder que a organização política (dê-se ou não como tal ao nível das representações) institui em cada caso (ou "formação social").
Por outro lado, o argumento sobre o que quer a classe trabalhadora não me parece, na formulação que lhe dás, demasiado conseguido. Com efeito, se evocarmos a classe trabalhadora como categoria sociológica particular para dizermos que ela quer a abundância ou outra coisa qualquer, teremos de dizer também que a mesma classe não só prefere o capitalismo actual ao “socialismo da miséria”, como, até mais ver, na medida em quem cala consente, prefere também a abstenção política, ou a privatização ou as lógicas corporativas à organização revolucionária da luta pela democracia revolucionária. É verdade que tu, não só não o ignoras, como até o sublinhas com todo o vigor necessário. No entanto, a evocação das "duas vidas" da classe trabalhadora não resolve, a meu ver, a dificuldade, uma vez que tira à "natureza de classe" a qualidade de traço distintivo entre uma ou outra das duas vidas — a uma ou outra via, a uma outra vis formativa ou motora dessa dupla vida. Assim, parecer-me-ia preferível dizer que a democracia revolucionária ou as lutas que tendem a fazê-la não podem deixar de reivindicar a abundância que referes, e que essa é uma das condições necessárias da transformação dos movimentos sociais em movimentos de democratização revolucionária (ou, passe o termo que não parece agradar-te por aí além, movimentos de conquista da “cidadania governante”). Tal é a ordem de razões que me leva também a insistir prioritariamente na direcção da economia e na orientação da produção, mais do que na sua expansão ou desenvolvimento — procurando não esquecer, contudo, a passagem que comecei por sublinhar no teu escrito. Uma coisa é dizer que o pôr termo à "exploração do homem pelo homem" e à dominação de classe são exigências e antecipações intrínsecas à acção da "democracia revolucionária", outra é definir essa acção em termos de classe ou como traço distintivo de uma classe.
Uma vez mais, quero crer que não dizemos coisas muito diferentes: o que distingue as nossas perspectivas parece-me residir no facto de tu pretenderes, a todo o custo, manter um quadro de referência marxista, ao passo que eu, sem subestimar a importância da problemática marxista enquanto inspiração, penso que a tentativa de revalidar a todo o custo, através da multiplicação de ressalvas e redefinições, os conceitos e vocabulário de Marx obscurece por vezes o essencial do que dizes. É o que acontece, por exemplo, quando tentas salvaguardar a ideia de uma "predestinação de classe" da acção (anti-classista) da "democracia revolucionária", correndo o risco suplementar de pareceres sustentar a ideia (que, se te leio bem aqui e não só, não aprovas) de que uma certa forma de marxismo (ainda que a do teu Marx Crítico de Marx [3 vols., Porto, Afrontamento, 1977]) é uma via necessária dela, ou um elemento necessário da sua via.
Em suma, os próprios termos da tua concepção da democracia revolucionária implicam, a meu ver, que — e para o dizer recorrendo a uma passagem de Castoriadis (cf. "A Questão da História do Movimento Operário", em A Experiência do Movimento Operário - 1, Lisboa, A Regra do Jogo, 1979), que já tive ocasião de referir noutra troca de ideias contigo: "não se pode hoje nem manter uma posição privilegiada do proletariado no sentido tradicional, nem estender mecanicamente as características deste ao conjunto dos assalariados, nem, enfim, pretender que estes se comportem como uma classe, ainda que embrionária. Todas as camadas da sociedade moderna, à excepção das cúpulas dirigentes, vivem e agem na sua existência quotidiana a alienação da sociedade capitalista contemporânea, as contradições e o esgotamento profundo do sistema, a luta contra este sob uma variedade infinita de formas (…) As lutas operárias em torno das condições de trabalho iam e continuam a ir muito longe (…) [que] a empresa tenha sido, e em certa medida continue a ser, um lugar privilegiado de socialização sob o capitalismo, é decerto verdade e é importante - mas isso não reduz a importância de outros locais de socialização existentes nem, sobretudo, dos que estão por criar".
Com efeito, parece-me que a formulação de Castoriadis, quando afirma: "o projecto revolucionário tornou-se tal que não terá sentido nem realidade se a esmagadora maioria dos homens e das mulheres que vivem na sociedade contemporânea não vierem a assumi-lo e a fazer dele a expressão activa das suas necessidades e das suas aspirações. Não há salvador supremo, e nenhuma categoria particular tem a seu cargo a sorte da humanidade" —, parece-me, dizia eu, que esta formulação vale também, no essencial, para a democracia revolucionária tal como a entendes e caracterizas, do mesmo modo que para a minha proposta da "democratização" como "plataforma necessária e suficiente" de uma separação das águas que, como também tu mostras, deixou de ser possível traçar em nome da "esquerda".
6 comentários:
Democracia revolucionária para o Castoriadis liga-se ao processo de agenciamento da democracia directa, passo da construção dos conselhos operários! Não tem nada de messianico nem de funcionalista...Tudo isso está muito bem explicado, por exemplo, no grande livro que ele editou em 1979 sobre, justamente, " O conteúdo do Socialismo ". " A organização revolucionária deverá aplicar por si mesma os principios que o proletariado desenvolveu no decorrer das suas lutas históricas: A Comuna, os sovietes e os conselhos operários. Deverá instaurar a autonomia dos seus orgãos locais, na maior amplitude possiveldesde que compativeis com a unidade da organização; fomentar a democracia directa, por todo o lado onde pode ser concretamente praticada;tornar incontornáveis a eleição e a revocabilidade a todos os instantes dos delegados que participem nos orgãos que detenham poder de decisão ",C.Castoriadis in " C.Socialisme ". Niet
Miguel,
Quando Marx procedeu à crítica da economia política ele modificou substancialmente a noção de economia, o que é esquecido pelos vulgarizadores. Mas é verdade que os vulgarizadores são os porta-vozes de forças políticas que pretendem apenas chegar ao poder para dirigir a economia existente. No entanto, mesmo um clássico como Adam Smith tinha uma visão institucional da economia, no que diferia da visão, por exemplo, de Ricardo. Sempre me deixou perplexo o facto de, tudo somado, Marx ter preferido os modelos de Ricardo aos de Smith. Esta é mais uma das contradições de Marx para a qual não consegui encontrar a chave.
Tenho defendido que a classe trabalhadora se define, antes de mais, ao nível das relações de produção. É aí que ela tem uma existência permanente enquanto classe. E hoje, que o capitalismo assimilou completamente os sistemas económicos anteriores, a tal ponto que os multiculturalistas tentam insuflar vida em peças de museu, a variedade infinita da sociedade, que tanto te fascina a ti e ao teu mestre, só encontra sentido enquanto modalidades da extorsão de mais-valia, ou seja, enquanto modalidades da classe trabalhadora. Estamos a falar da mesma coisa com conceitos diferentes e tudo se resume em saber quais deles são mais operativos.
Os mecanismos que convertem essa classe trabalhadora sócio-económica numa classe sócio-cultural (de comportamentos e ideias) são complexos e Thompson, por exemplo, estudou-os atentamente. Por meu lado, procurei elaborar um modelo geral que integra todos esses aspectos num quadro único. Refiro-me ao livro Economia dos Conflitos Sociais, que se encontra em papel e na internet. As tais «duas vidas» conjugam-se ali de maneira coerente e, repito, os aparentes silêncio e apatia são para isso uma condição indispensável. Orwell, que foi um dos raros bons sociólogos, prestou atenção a este aspecto.
Ainda a propósito da abundância — que para mim é a outra face da crítica à ecologia, às teorias do decrescimento e quejandas — conviria recordar às meninas e meninos trotsquistas que papagueiam essas ideias em voga o que dizia o velho Lev Davidovitch, na sua última encarnação política. Para ele, a base social do stalinismo era uma burocracia que tinha como função a repartição de produtos escassos. Trotsky considerava-a uma simples burocracia, outros consideravam-na uma verdadeira classe social, a que eu chamo gestores, mas para o caso isto é secundário. O facto é que Trotsky, na sua última encarnação, indicou claramente as consequências nefastas da ausência de abundância.
Sim, João, sublinho: "Estamos a falar da mesma coisa com conceitos diferentes e tudo se resume em saber quais deles são mais operativos".
Só uma ou duas observações: não estou tão fascinado pelo "relastivismo cultural" como pareces pensar, e Castodiadis, talvez menos ainda. A "democracia revolucionária" (JB) ou o "projecto de autonomia" (CC), ou ainda a "cidadania governante" — quer dizer as práticas e as ideias que lhes correspondem ou as animam e lhes dão sentido — são "um "traço cultural distintivo" absolutamente primeiroi e um crivo de exclusão (subsidiário, é certo, de uma reivindicação positiva) que horroriza qualquer ideólogo politicamente correcto da esquerda fracturante.
Vejo a economia governante como uma construção institucional hierárquica assente em relações de força que distribuem o poder e a riqueza (moldando os conteúdos e formas do primeiro e da segunda) em termos desiguais, que as categorias da teoria económica (a menos que "desteoricizada" em profundidade por uma perspectiva instucionalista e política constante) servem para "racionalizar" e "naturalizar". Daí que insista na palavra de ordem de "democratização da economia", através da sua repolitização explícita e restituição a um espaço público de deliberação e decisão igualitárias.
A explicação da degenerescência da Revolução Russa pelo atraso ou desenvolvimento insuficiente das forças produtivas não é convincente, apesar da pertinência da atenção a esses factores na sua história. Basta considerar a degenescência ou a impotência e a derrota dos movimentos socialistas, libertários e radicais noutras latitudes e em condições diferentes e mais "avançadas" — fenómenos que, de resto, tens analisado como muito poucos.
Abraço
miguel(sp)
Miguel,
Só duas coisas. Não me referia ao relativismo cultural mas à fragmentação das relações de trabalho. De resto, não estou longe do que tu dizes sobre a necessidade de democratização da economia. Poderás certificar-te disso se releres o que denominei Lei do Institucional no Para uma Teoria do Modo de Produção Comunista. Aliás, a versão original do livro, entregue à editora antes do Vinte e Cinco de Abril, chamava-se Para uma Nova Institucional, numa piscadela de olho ao livro de Preobrazhensky.
A segunda coisa é que de modo nenhum aceito a explicação da degenerescência da revolução russa na perspectiva que tu mencionas. Aliás, tenho-a analisado como parte de uma revolução europeia em 1916-1921, ou 1916-1923, que só sobreviveu na Rússia, e bastou isto para condená-la enquanto revolução. O que eu quis foi chamar a atenção para o facto de Trotsky ter insistido que a distribuição de bens escassos gera necessariamente uma burocracia encarregada da sua repartição. Só isto. Mas acrescento agora que, sendo a oferta uma criação histórica permanente e não um volume fixo pré-determinado, o que importa é uma perspectiva dinâmica. Ora, a política soviética de reforço do Sector I (meios de produção) à custa do sector II (bens de consumo) travava esse processo histórico. Há muitos anos atrás Lucien Laurat abriu esta perspectiva de análise.
João,
sobre o tema — ou a partir do tema — da fragmentação das relações de trabalho e da multiplicação das categorias que contrabalança a extensão da condição assalariada muito haveria, sem dúvida, a dizer. Limito-me por agora a assinalar que um dos seus efeitos é impossibilitar a divisão estanque da sociedade em duas classes (dirigentes versus executantes), porque, na realidade, embora seja próprio do capitalismo reduzir os assalariados à execução pura, não o pode fazer sem se auto-sabotar, a não ser compensando com elementos de atribuição de "margens de iniciativa", "direcção auxiliar e subordianada, responsabilidades, etc. aos seus governados.O que é também um meio de conquistar a adesão às relações de poder hierárquica por parte dos que, no essencial, as sofrem e são por elas expropriados. Além de pôr em evidência a necessidade daqueles que lutam contra as relações de poder dominantes terem de lutar também na sua auto-transformação. Como sei que, dizendo-o ou não assim, pensas também.
Quanto ao resto, nomedamente no que se refere à tua explicitação final, estamos de acordo. E consegues sintetizar melhor do que eu conseguiria fazê-lo um ponto de acordo decisivo: "O que eu quis foi chamar a atenção para o facto de Trotsky ter insistido que a distribuição de bens escassos gera necessariamente uma burocracia encarregada da sua repartição. Só isto. Mas acrescento agora que, sendo a oferta uma criação histórica permanente e não um volume fixo pré-determinado, o que importa é uma perspectiva dinâmica".
Abraço
miguel(sp)
Gosto muito de certas ideias- critica feroz ao discurso dito-universitário-ou-de-catédra, por exemplo- do J. Bernardo mas, o que não me parece exequivel, em paralelo, é a assombrosa e assassina " critica " da ecologia,que ele associa à " barbárie ", apelando agora num passo rocambolesco para Trotsky, um dos estrategos bolcheviques mais pró-estatista e " capitalista " no processo de desenvolvimento económico. Por outro lado,Castoriadis defende a democracia directa como lance do projecto autonómico, que tem nos Conselhos Operários uma lança táctica essencial.Isso está escrito inúmeras vezes nos textos capitais dele. E ele nunca usou sigla alguma para definir e enquadrar o seu pensamento estratégico essencial,adoptando uma cautela e uma sobriedade como Pannkoek ou Paul Mattick. Niet
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