05/06/14

Um caminho comum

O colectivo Roar divulgou ontem um texto intitulado Workers and environmentalists of the world, unite! Escrito por Stefania Barca, investigadora no CES - Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, nele se defende que o (aparente) conflito entre a defesa do trabalho por um lado e do ambiente por outro é uma construção neo-liberal, que tem como principal objectivo impedir a criação duma coligação ampla que tenha por finalidade a transformação radical da produção. Um outro texto escrito por Stefania, que aprofunda as questões abordadas no texto anteriormente mencionado, e que se intitula On working-class environmentalism: a historical and transnational overview, foi publicado numa edição da revista Interface sobre movimentos laborais que contém mais artigos relevantes para a questão em apreço.

Voltando ao artigo publicado pelo colectivo Roar, deixo aqui uma possível tradução do que julgo serem as partes mais relevantes da sua conclusão:

"Premissas mais sólidas

No entanto, a aliança renovada entre os movimentos operário e ambiental deve ser reconstruída com base em premissas mais sólidas do que no passado. A ideologia do crescimento económico como uma panacéia para todos os problemas sociais e a única maneira de produzir bem-estar social deve ser completamente questionada e, finalmente, abandonada pelo movimento operário, porque os imperativos de crescimento são justificativos poderosos para a desconsideração mais descarada do bem-estar das pessoas e de natureza não-humana. O mesmo se aplica à ilusão de ecologização (greening) da economia (ou seja, do capitalismo) através de tecnologias eco-eficientes e mecanismos de mercado; uma ilusão abraçada por uma parte substancial quer do movimento operário quer do movimento ambientalista, com o apoio dos governos e instituições financeiras.

O processo de desindustrialização em países "desenvolvidos" nos últimos 20 anos mostra como a ecologização da economia levou à simples transmigração de riscos industriais e associada taxa de mortalidade para os países menos desenvolvidos, por meio do regime segundo o qual é permitido às multinacionais transferir para o exterior as produções/tecnologias que são proibidas ou fortemente reguladas em seus países de origem. Esse mesmo mecanismo torna as comunidades da classe trabalhadora no primeiro mundo cada vez mais vulneráveis à chantagem no trabalho, ameaçando-as com o deslocamento das atividades industriais para outros lugares.

(...)

Não há dúvida de que as fontes de energia renováveis ​​e não-fósseis devem ser desenvolvidas como a única saída possível da atual crise climática. Mas a questão da dimensão e escala é de importância fundamental: formas alternativas de energia podem e devem ser desenvolvidas em pequena escala, com o objetivo de permitir a auto-suficiência de famílias e comunidades locais. As tecnologias de energias renováveis ​​só podem ser realmente sustentáveis se implementadas de modo descentralizado e localmente controladas, mesmo porque nesta escala não são possíveis grandes concentrações de lucro (e do poder político). Mas isso implicaria uma profunda transformação não só da forma e estrutura da vida urbana, mas da organização social do trabalho em si.

Romper com as múltiplas crises que afligem o mundo de hoje - tanto nos domínios da economia e trabalho, bem como no domínio da ecologia e saúde pública - não requer menos do que abandonar completamente a "produção a todo-custo", incluindo a política, a economia e a ideologia do crescimento ilimitado. Tal exige uma revolução ecológica como teorizado por Carolyn Merchant: uma mudança completa na organização social da produção, reprodução e consciência. Outra forma de trabalhar e de viver, de produzir e distribuir riqueza, enraizada no trabalho não alienado, no respeito pela vida e na vida em comum, deve ser a plataforma política sobre a qual é possível construir esta nova aliança. Trabalhadores e ambientalistas do mundo, uni-vos!"

6 comentários:

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Pedro,

Apesar de evidentemente estar de acordo em que outro modo de produzir, de decidir disso, bem como de ordenar o território e governar a cidade, é a única resposta democrática aos problemas que hoje se põem ao conjunto da humanidade, tenho com este tipo de análises vários problemas. Passo a enumerar alguns, que talvez aches valer a pena considerar.

1.Embora me pareça uma evidência que não há democratização possível sem participação plena no exercício do poder por parte de cada cidadão nas condições locais em que se encontra (e que devem ser transformadas para o tornar possível), isso não significa que devamos considerar imperativo um regresso à pequena produção ou renunciar à automação, à produção em série e à redução do tempo de trabalho, democraticamente geridas, como se fossem, independentemente da sua inscrição em relações de poder determinadas, o mal por excelência.

2. Há na nostalgia da pequena produção uma tendência ameaçadora a esconjurar a política reduzindo a sociedade a um conjunto de pequenos sistemas de relações interpessoais, de teor tribal ou familiar, e concebendo cada cidade como um conjunto de aldeias, esquecendo que é, na condição de ser mais do que a soma das suas partes (aldeias ou bairros), que a cidade, de acordo com um dictum dos finais da Idade Média que Henri Lefebvre gostava de recordar, cria essa atmosfera cuja respiração nos torna livres (ou inspira a vontade de liberdade).

3. A transformação democrática que institua, nas condições de vida concretas, cada cidadão como governante não pode ser apenas local nem afirmar-se fundamentalmente ao nível das relações interpessoais (ainda que decerto implique também a sua transformação). Só pode ser uma transformação de alcance geral, uma extensão e generalização de outras relações de poder (democráticas) que se confunde com a substituição de um regime a outro. Não podemos reforçar a participação governante autónoma — por contraste com a sua mobilização dependente ou arregimentação — dos cidadãos comuns sem minar o poder governante do Estado e da sua economia política (ou vice-versa). Quer dizer, como diz o título do teu post, que o caminho será necessariamente comum.

Um abraço

miguel(sp)

Pedro Viana disse...

Caro Miguel,

Concordo com tudo o que dizes. Tenho sempre reconhecido, em todas as discussões sobre a temática neste blogue, que no seio do "movimento ambientalista" existem tendências reaccionárias, autoritárias e mesmo totalitárias. Já para não falar naqueles que julgam poder "esverdear" o Capitalismo. Mas, como tu também tens defendido, o "movimento ambientalista" não se resume a tais posições, em particular as de pendor mais reaccionário. Por alguma razão os partidos e organizações ambientalistas sistematicamente decidem e votam em conjunto com movimentos e partidos da esquerda radical. Este artigo da wikipedia

http://en.wikipedia.org/wiki/Academic_studies_of_the_political_groups_of_the_European_Parliament

demonstra que os grupos EUL/NGL (esquerda radical) e G/EFA (ambientalistas) são, de entre todos os grupos no parlamento europeu, aqueles que possuem uma maior correlação de voto entre si, entre 75 a 80%.

O que é mais interessante é que no seio do "movimento ambientalista" tem-se tornado cada vez mais saliente o reconhecimento de que não é possível compatibiizar as suas prioridades com o modelo Capitalista de produção. Ou seja, o "movimento ambientalista" tem-se mostrado cada vez mais receptivo à crítica ao Capitalismo, o que entreabre a possibilidade de expandir a base de apoio social das ideias defendidas no seio da esquerda libertária. Obviamente, quem nesta se reconhece devia ter presente que não é detentor da Verdade, tendo todo o interesse em ouvir e reflectir sobre as várias críticas a diferentes estruturas de Poder e exploração que existem no seio das sociedades "modernas", e que não se resumem à exploração do trabalho.

Ou seja, e é mesmo essa a intenção do título, o que considero mais importante é conversarmos, sem arrogância, com quem poderá um dia caminhar ao nosso lado, mas que hoje se poderá sentir (demasiado) longe de nós. Pensar que é possível instituir uma verdadeira Democracia sem um amplo apoio social, ou que esse apoio pode ser conseguido apenas à custa de "conversões" ao "nosso credo" é totalmente irrealista.

No caso concreto dos artigos da Stefania Barca, o que mais me interessou foi a descrição de como no passado, e também no presente, movimentos (operário/ambiental) que demasiadas vezes se percepcionam como estando em confronto, trabalharam em prol duma agenda comum. Constituem uma prova concreta de que tal é possível.

Abraço,

Pedro

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Pedro,

parece-me evidente que as questões ambientais — das condições de vida — têm toda a pertinência. A denúncia da degradação ambiental que caracterizava a vida da classe trabalhadora nas regiões e cidades industriais do século XIX é uma constante da literatura libertária, socialista e romanesca da época (basta ler Engels ou Dickens) que se manteve ao longo dos periodos posteiores (basta ler Orwell). Mas trata-se de combater a deterioração ambiental (em termos sanitários, de condições de trabalho, de ordenamento do território, de urbanismo e "paisagísticos") integrando-a numa agenda política e não subordinando a política a uma "lei natural", que, no fundo, reduz o governo da cidade e a definição do "caminho comum" a uma questao técnica (ainda que contestando a tecnologia actual).
Se é isso, ou qualquer coisa de semelhante, que estás a dizer, então, estamos de acordo.

Abraço

miguel(sp)

Libertário disse...

Small Is Beautiful

Concordando em geral com o Miguel Serras Pereira teria, necessariamente, de fazer umas ressalvas nesta discussão que já vem detrás:

-Há tecnologias que devem ser questionadas porque geram heteronomia, concentração de Poder e controle social.
A pequena produção local, sempre que possível deve ser incentivada e nada obsta a que use tecnologias. Não sendo pois contraditório a pequena produção descentralizada com uso técnicas avançadas se eles tiverem um efeito económico e social positivo. Todos sabemos que a robótica e a informática criaram novas possibilidades para as pequenas unidades produtivas. Mas, mesmo que em alguns sectores da economia seja necessário uma escala maior, a ideia de tudo concentrar e gerir a partir de cima é da economia planificada e autoritária dos iluminados leninistas que deu no que deu.

-A concentração urbana em grandes megalópoles é também uma ameaça à autogestão das cidades. Cidades da escala de Pequim, México e São Paulo são ambientalmente e socialmente um desastre. A concentração das populações de forma desequilibrada no território é outro absurdo da nossa época e isso não se resolve com decisões tipo dos Khmer, mas com políticas de descentralização e incentivo à ocupação equilibrada do espaço que uma sociedade não-capitalista teria de ter.

Estamos, pois, de volta ao debate sobre a concepção de uma sociedade não-capitalista e de como a justiça, igualdade e autogoverno que pretendemos também tem implicações nas relações da sociedade humano com o seu meio ambiente.

Pedro Viana disse...

Estamos de acordo.

Abraço,

Pedro

Niet disse...

Mais um texto essencial de Castoriadis sobre " Desenvolvimento e Racionalidade", inserto em CL II, que se deve meditar e tomar como projecto iniciático maior.Que se pode alargar e completar com consultas e leituras de Ellul,Morin e da panóplia de textos dos activistas do OWStreet! Eis, com a brevidade possivel e incontornável, algumas ideias gerais muito fortes: 1). " Devemos questionar- pôr em causa - a grande loucura do Ocidente Moderno,que consiste em colocar a " razão" como soberana, a perceber por " razão " a racionalização, e por racionalização a quantificação. É este estado de espirito, sempre activo, que será
preciso destruir. É preciso compreender que a " razão " não é senão um momento ou uma dimensão do pensamento, e que se torna louca quando se autonomiza ";
2)." Uma transformação radical da sociedade( mundial, acrescenta) será ( global)e necessariamente uma transformação politica- que não posso deixar de conceber, por mim, que como a instauração da democracia, democracia que actualmente não existe em lado nenhum. Porque a democracia não consiste em eleger, no melhor dos casos, todos os sete anos um P.da República. A democracia é a soberania do dèmos, do povo, e ser soberano é sê-lo 24 horas sobre 24 horas.E a democracia exclui a delegação dos poderes; é o poder directo dos homens sobre todos os aspectos da vida e da organização social, a começar pelo trabalho e a produção ";
3)." POdemos fazer o que quizermos com as palavras, mas, enfim, socialismo sempre significou: abolição da exploração.(...) A ciência tomou o lugar da religião, hoje, porque a religião se afundou e a ciência ocupou o seu lugar. Tal como existe, hoje, esta crença na ciência é tanto ou mais irracional que qualquer outra crença religiosa. A grande maioria dos homens de hoje, neles incluidos os cientificos, não têm face à ciência uma atitude racional: eles acreditam nisso; trata-se efectivamente de uma espécie de fé. E é esta crença, que é preciso destruir, e que faz com que os médicos, os engenheiros, os físicos e os economistas possuam a resposta a todos os problemas que se coloquem à humanidade ". Salut! Niet