26/08/14

André Barata, a Esquerda, o Estado e os Partidos — ou sobre alguns equívocos maiores do Livre

Ainda que, no seu A Esquerda e o Estado (Resposta ao Passa Palavra),  André Barata, como não parece ser o caso (e a réplica do Passa Palavra bastaria para mostrar que não é), entendesse por "Estado" toda e qualquer forma de organização política e de exercício do poder político, e não um conjunto de aparelhos instituciionais que funcionam estabelecendo, reproduzindo e reciclando o modelo, hierárquico e classista por excelência, de uma distinção estrutural e permanente entre governantes e governados, excluindo a maioria dos homens e mulheres comuns da cidadania plena, consistente na conquista da liberdade e da responsabilidade de se governarem, exercerem o poder e recusarem a legitimidade democrática a qualquer poder político em cujo exercício não pudessem participar igualitariamente — ainda que assim fosse, como de facto não é, o "Estado social" que advoga não equivaleria a uma alternativa democrática ao poder hierárquico e classista que define aquilo que geralmente se entende por "Estado".  Tal não quer obviamente dizer que os cidadãos comuns não devam defender os direitos e garantias que a formação de compromisso do "Estado social" lhes garantia como indemnização da sua exclusão da cidadania governante, ou recompensa da sua resignação a essa exclusão do exercício do poder político — quer dizer, contudo, que só os defenderão efectivamente ultrapassando a lógica e a prática de indeminização e resignação do "Estado social", e exigindo que seja o seu próprio poder autónomo a garantir os direitos e liberdades a (re)conquistar. O poder democrático da cidadania governante — pelo que entendo algo muito próximo daquilo a que o João Bernardo chamou recentemente "democracia revolucionária" — só pode instituir-se na exacta medida em que for capaz de se substituir aos aparelhos da dominação classista e hierárquica do Estado. Quero crer que o Livre mereceria melhor o seu nome se procurasse responder de modo menos conformista aos problemas que esta exigência levanta (tanto mais que há textos de militantes seus, como é o caso de Rui Tavares, que, em certas ocasiões pelo menos, parecem entrever que assim deveria ser).

O segundo ponto do texto de André Barata que aqui nos ocupa e que se refere ao papel dos partidos e às suas relações com a democracia parece-me, por seu turno, incorrer nas mesmas insuficiências em que, em 2011, incorria Nuno Ramos de Almeida num seu juízo sobre o mesmo assunto. Por isso, a esse propósito, nada tenho de essencial a acrescentar ao texto que, então, aqui publiquei sobre as posições de NRA — excepto que não constitui para mim motivo de satisfação ver André Barata, como outros militantes do Livre, alimentar os mesmos equívocos fundamentais que os dois parágrafos seguintes, que repesco para o efeito, procuravam pôr em evidência:

Com efeito, se a "democracia participativa" (…), antes reclama e tem como condiçãõ de possibilidade, a existência de movimentos e organizações de cidadãos que apresentem propostas e formulem objectivos alternativos, a verdade é que os partidos que hoje se apresentam como concorrentes na cena política oficial integram na sua organização e concepções uma divisão hierárquica e classista do trabalho político, reproduzindo, através da distinção estrutural e permanente, entre representantes e representados — e, na realidade, entre governantes e governados —, que funciona como um dispositivo de exclusão e negação da "democracia participativa" enquanto exercício do poder político pelo conjunto dos cidadãos, em pé de igualdade. E a verdade é que a participação democrática do comum dos cidadãos nas decisões comuns, que a todos vinculam e definem as condições colectivas da vida na cidade, não pode deixar de combater os partidos enquanto instâncias políticas profissionais especializadas na função de governar, cujo monopólio reivindicam. 

Se a democracia implica a legitimidade de organizações de cidadãos que intervêm e propõem iniciativas, implica também — como escrevi há tempos, a propósito da palavra de ordem "Democracia Já" — [n]ão, por certo, a proibição dos partidos ou formas de expressão organizadas por grupos de cidadãos interessados em dar a conhecer as suas opiniões e propostas aos demais, mas, sem dúvida, a transformação radical das formas de organização existentes ou a criação de novas formas de associação política que nos permitam operar a substituição do voto em partidos comandados por políticos profissionais pela eleição de delegados, com partido ou sem ele, que mandatemos, possamos regularmente revogar segundo procedimentos simples e claramente definidos, e sejam responsáveis perante os eleitores, e não perante partidos cuja "representatividade" é inversamente proporcional à participação e à assunção das responsabilidades governantes pelo comum dos cidadãos. Trata-se, em suma e para simplificar, de substituir o voto que esgota e exclui até à convocação de novas eleições gerais a participação governante pelo voto que reforça e traduz essa participação permanente, que é uma das condições da cidadania - ou seja, dessa efectiva participação sem a qual (…) o exercício do poder democrático é inverosímil.


7 comentários:

João Vasco disse...

Este texto parece-me um pouco confuso, não foi para mim muito fácil compreender a perspectiva do autor, e não estou certo de a ter compreendido.

Diria apenas que apesar do LIVRE ser, como o nome indica, o mais libertário dos partidos portugueses, ainda assim está longe de ser um partido muito libertário.
O Rui Tavares assume-se anarquista, mas é o único dos quinze membros do «grupo de contacto» (direcção) nessas circunstancias.
E aqui temos a ironia de um partido bastante democrático dificilmente ser muito libertário, numa sociedade onde os valores libertários são ultra-minoritários.
(Mas se fosse libertário não poderia deixar de ser democrático...)

Por causa do nome e outras razões, o LIVRE bem pode apanhar uma proporção maior de pessoas com essa sensibilidade (libertária), mas estará sempre longe de ser um partido radicalmente anti-estado, parece-me.

Miguel Serras Pereira disse...

Caro João Vasco,
desculpe a inépcia da exposição, caso persista em tê-la por confusa.
As duas ideias principais são simples.
1. O Estado, a menos que demos este nome a qualquer forma de organização política ou de poder instituído, implica a distinção permanente e estrutural entre governantes e governados — matriz de hierarquia e dominação classista. Por isso, é incompatível com o exercício democrático do poder — ou exclui-o. A democracia implica, com efeito, que os cidadãos só consintam em ser governados na exacta medida em que possam participar igualitariamente no exercício do poder, ou na deliberação e decisão das leis ou outras medidas que ao seu conjunto digam respeito. A concepção apresentada por André Barata é insuficientemente democrática, uma vez que não toma em conta esta irreconciabilidade de raiz entre o Estado e a democracia (ou exercício governante da cidadania plena).
2. Podem e devem exsistir partidos como correntes de opinião e proposta organizadas, mas não — pelo menos em democracia — como instrumentos e canais obrigatórios de representação dos governados e de exercício do poder sobre eles, ainda que em seu nome. Foi por isso que escrevi que, tal como requer a destituição do Estado, a autonomia democrática exige a transformação radical dos partidos: com efeito, "a participação democrática do comum dos cidadãos nas decisões comuns, que a todos vinculam e definem as condições colectivas da vida na cidade, não pode deixar de combater os partidos enquanto instâncias políticas profissionais especializadas na função de governar, cujo monopólio reivindicam".

Espero ter clarificado as minhas posições.

Saudações libertárias

msp

Anónimo disse...

Não será altura de ir rever os pontos essenciais da revolução anarco-sindicalista da Catalunha, 1934/36? Korch tem análises sucintas admiráveis sobre o processo verdadeiro de alternativa politica e social posto em prática pelos conselhos operários catalães, que ele reitera terem sido muito mais abrangentes e profundos que o sistema dos Sovietes em evolução fragmentária desde 1905 na Rússia! O Livre é partido ou movimento politico descentralizado .? Como partido parece condenado a priori; como movimento pode transformar-se por um processo de fusão individual ou colectiva de aderentes e dar cartas com novas ideias e novos processos de democracia " revolucionária ".Niet

João Vasco disse...

Clarificou pois :)

Anónimo disse...

Caro Miguel Serras Pereira,

Para tornar mais fácil a discussão, aproveito o seu comentário de resposta ao João Vasco, a quem, desde já, aproveito para esclarecer que neste debate falo apenas por mim, ou seja, sem comprometer, com o que eu disser a seguir, o meu partido.

Do que se trata, pela minha parte, não é não ter levado em conta alguma irreconciliabilidade dade de raiz entre o Estado e a democracia, mas de eu discordar dessa irreconciliabilidade e dela discordar tanto mais quanto mais se entende ser de raiz, como parece ser o caso de Miguel Serras Pereira.
Aceito que, historicamente, Estado e democracia tenham um enorme lastro de incompatibilidade. Aceito, aliás, que desse mesmo ângulo histórico só a partir da segunda metade do século XX haja registo de tentativas efectivas e perenes de composição de um Estado genuinamente emancipador por oposição a um Estado de dominação, como escrevi na resposta ao Passa Palavra, ou, ao menos, por oposição a um Estado concebido como expressão de poder. Por exemplo, para mim é muito claro que o Estado português pós-25 de Abril mostrou-se, apesar de todos os atropelos a que foi sujeito, um Estado emancipador. Ou melhor: um Estado ao serviço da emancipação. Foi isso que a Constituição de 76 promoveu, estabelecendo um Estado que não se concebe assumido como fim em si mesmo, mas como meio para fins que decorrem da mobilização democrática em vista de um projeto de emancipação. Recordo no Art.3 da CRP a disposição: «O Estado subordina-se à Constituição e funda-se na legalidade democrática». Paralelamente às intenções da Constituição, e por defraudadas que estas tenham sido, a História concreta dos últimos 40 anos orientou-se efectivamente numa direcção de emancipação que tendo, desde o princípio, estado sob ameaça e estando hoje gravemente em causa, não pode nem deve, em respeito à verdade, ser obscurecida. Por direcção de emancipação quero dizer o desenvolvimento de um Estado social que procurou essencialmente constituir, não um dispositivo de controlo social à maneira de Foucault (ainda que também o possa ter tentado fazer em alguma medida e com algum sucesso), mas uma forma de capacitar os cidadãos e as cidadãs num quadro de «realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa». Este era o programa do Estado de acordo com a nossa Constituição. Não foi outro. Hoje, se o Governo se sente contrariado pela Constituição é bom que se entenda que é pelos mesmos motivos que ataca o Estado, desmantela-o nas suas componentes sociais, procura substituí-lo por um Estado diverso, de naturalização do privilégio, favorecendo interesses de classe e protegendo mesmo a desigualdade.
(cont.)

AB

Anónimo disse...

Ora, a pista que procuro perseguir é que um Estado social liberto do estatismo é a resposta adequada, capaz de avançar no processo histórico, face ao encruamento do capitalismo. O programa que penso merecer a pena é continuar o estado social, mas refundando-o nos seus princípios organizativos, estabelecendo-o numa direcção de inclusão democratica bottom-up e não na reversa, que promova e dê capacidade a soluções locais, pautadas pela diversidade, como se pudéssemos, por analogia, falar de uma ecologia do Estado social. Penso que o desafio que hoje se coloca ao pensamento libertário não é repetir a crítica libertária ao Estado moderno, mas infiltrar as dimensões propositivas do libertarismo no próprio Estado, concebido como instrumento de emancipação. Seja-me perdoada a provocação intelectual do que parecerá contraditório, mas do que precisamos é de um Estado mais libertário. Para fazer frente ao centralismo, dirigismo, conservadorismo e elitismo que as instituições político-administrativas portuguesas têm alimentado desde sempre, e que acabaram, em alguma medida, por se repercutir também no âmbito do Estado social. Mas, sobretudo, para deter a intentona a que muitos chamamos de “desmantelamento do Estado social”.

Em suma, o que eu me permito sugerir é que da mesma maneira que o Miguel Serras Pereira parece disposto a aceitar que haja partidos, defendendo a sua transformação radical e não o seu desaparecimento, eu, concordando, diria o mesmo relativamente ao Estado. Mutatis mutandi, o que é preciso é uma concepção transformada do Estado. De outro modo, perde-se o instrumento social de emancipação mais importante que Portugal conheceu nos últimos 40 anos.

Saudações

Miguel Serras Pereira disse...

Caro André Barata,

se a sua concepção de Estado não implica a distinção estrutural e permanente entre governantes e governados, antes aponta para a sua superação por um regime em que a participação igualitária nas deliberações e decisão da(s) lei(s) e outras medidas governamentais seja o critério de legitimidade do governo e da plena cidadania governante —então, as nossas divergências não são essenciais nem radicalmente antagónicas, e relevam, em parte não dispicienda, da terminologia.
Do mesmo modo, seria uma excelente novidade para mim que V. concordasse com a minha ideia de que, em democracia, "podem e devem exsistir partidos como correntes de opinião e proposta organizadas, mas não (…) como instrumentos e canais obrigatórios de representação dos governados e de exercício do poder sobre eles, ainda que em seu nome".
O que me parece importante é, ao mesmo tempo que não deixamos de fazer o menos a pretexto de que o mais não é imediatamente possível, não deixarmos também que o menos perca de vista o mais que, a todo o momento, o orienta, lhe dá sentido e permite que sobre ele exerçamos, no interior da acção, um juízo político lúcido. É a esta luz que os seus textos me parecem avalizar menos criticamente certos aspectos decisivos da divisão do trabalho político, bem como os elementos intrinsecamente antidemocráticos inerentes a uma concepção essencialmente representativa da democracia. Mas muito gostaria de estar enganado nesta apreciação.

Saudações democráticas

msp