06/02/15

A entusiástica estupidez suicida da UE governada pelo medo

Se não fosse cada vez mais exclusivamente governada pelo medo — o medo que internamente impõe e o medo que a tolhe no plano externo — seria inexplicável a entusiástica estupidez suicida com que as instâncias governantes da UE parecem mais apostadas em fazer recuar o Syriza, incitando-o a lançar-se nos braços de Putin, do que em travar Putin quando esta ameaça e ataca as suas fronteiras.

5 comentários:

João Valente Aguiar disse...

Miguel,

a Grécia votou favoravelmente as sanções à Rússia e, na melhor das hipóteses, poderá até funcionar como ponte negocial entre a UE e Moscovo. Lembrar que a Merkel e o Hollande irão à capital russa em breve negociar um possível acordo.

Por outro lado, há demasiado foguetório nas declarações de ministros e afins da UE. Tudo isso faz parte de um processo negocial e de salvar a face perante os seus eleitorados. Parece-me evidente que, perante sectores nacionalistas da população alemã, o Schauble tem de fazer aquele papel de mau e de tipo que quer vergar o governo grego. E, por seu turno, o Syriza não pode conseguir um acordo mínimo sem antes concretizar algumas medidas positivas (electricidade, salário mínimo) e dar uma de grande confronto com as instâncias europeias.
Parece-me evidente que vai haver um acordo e que todas as declarações de todas as partes apontam para o mesmo sentido: manter a Grécia no euro. A questão está muito mais na forma como o Syriza vai conseguir, ou não, impor uma reformulação, pequena que seja, de aspectos da política institucional europeia e, com isso, arrastar a esquerda europeísta para algo do género.
Outro ponto que me parece importante. A resposta do BCE antes da reunião do Varoufakis com o Schauble mostra que quem manda é a tecnocracia e que os processos de decisão estão nas empresas e nas instituições de regulação transnacional e muito pouco nos governos, por muito que o sentimento anti-alemão da esquerda portuguesa queira atribuir a pessoas e a países o que é de uma classe social. Sendo assim, não me admira nada que as orientações de fundo já estejam tomadas antes mesmo das eleições gregas. Não há um caso de uma tecnocracia moderna que se ocupe de discutir as questões fundamentais da dívida e do crédito em meia dúzia de dias e em cima do joelho. É um erro achar que os gestores iriam deixar que um governo de um país periférico viesse decidir algo de estrutural. O que está em cima da mesa são detalhes e ajustamentos, certamente importantes mas sempre secundários. Por isso é que o Varoufakis teve sempre a inteligência de dizer que as hipóteses de a Grécia sair do euro eram de zero. Ora, um tipo inteligente não vai para ministro das finanças de um país como se aquilo fosse um programa de televisão e, portanto, sabe com que linhas se cose.
Termino este demasiado longo comentário dizendo o seguinte. Na linha do quantitative easing, a "intromissão" do BCE na ronda negocial demonstra que os processos de integração europeia vão continuar e aprofundar-se. Todos os acontecimentos quotidianos devem ser lidos à luz das grandes linhas de evolução tendencial, nunca à luz do imediato e da verve das relações públicas. Se assim fosse, a esquerda que ainda é consequente e minimamente racional na apreciação dos acontecimentos tornar-se-ia idêntica aos "cantinflas" que nos últimos três anos insultavam os que defendiam o programa europeísta do Syriza e que agora dão uma de apoiantes de um governo que está a concretizar medidas programáticas completamente divergente da esquerda nacionalista.

Abraço

Miguel Serras Pereira disse...

João,
como imaginas, a minha única reserva em relação ao que dizes está em que não confio tanto como tu na racionalidade dos governantes e tecnocratas. Do mesmo modo, embora pense que, se a integração europeia não avançar, veremos coisas bastante arrepiantes em matéria política e civilizacional, sou bastante menos confiante do que tu no cálculo das probabilidades de sucesso ou insucesso dessa via. Hoje, por exemplo, um amigo escrevia-me que a atitude da Merkel e do Hollande perante Putin o fazia pensar na atitude dos franceses e britânicos perante Hitler antes e durante a Guerra de Espanha, a crise de Munique, etc. — e não pude, pelo menos até certo ponto, deixar de lhe dar razão. Repara que até o próprio facto de ser por intermédio de chefes de Estado ou de governo de dois ou três países da UE ( e não através de delegados mantados pela União — o que remete para o facto ainda mais grave de a UE não ter forças armadas integradas ) é bastante revelador da insufiiência da construção europeia.
Bom, quanto ao nacionalismo de esquerda ou de direita, sabes o que penso, e esperemos que o Syriz continue a bater-se contra o primeiro, por uma saída europeia da crise e pela superação da barreira austeritária a uma integração federal da Europa, frustrando o as expectativas dos seus falsos amigos que só o apoiam apostando que, ainda que contra-vontade, o governo grego será levado a abandonar o euro e a procurar apoios geoestratégicos "anti-imperialistas" — e fristrando também aqueles que, à direita, apelam agora aos interesses dos seus nacionais, em defesa do reforço da austeridade na Grécia… (e, na realidade, embora o escondam, também ou sobretudo em casa, claro está).

Abraço

miguel

João Valente Aguiar disse...

Quando falo numa certa racionalidade da tecnocracia não me refiro a uma qualquer bonomia mas ao facto de quase sempre agirem no plano económico, de acordo com a busca pela maximização do lucro, e no plano político pela construção de pontes e de incorporarem elementos (inicialmente) externos à sua classe. Em cima mencionei "quase sempre" precisamente porque há excepções e uma que correu particularmente mal, para não dizer pior, precisamente a que referes das décadas de 30 e 40. Mas no geral é assim que eles agem e têm agido no contexto europeu.
Só para dar um exemplo de como eles conseguem colocar os interesses colectivos de classe acima de opiniões pessoais. O Weidemann e vários banqueiros e políticos alemães deram a entender que queriam que a Grécia ardesse e que tanto lhes fazia que saísse do euro. Ora, a linha hegemónica nas instâncias europeias conseguiu mostrar o inverso e hoje nenhum deles vem para fora dizer o contrário, pois perceberam o colapso que seria a saída da Grécia do euro.

Abraço

Miguel Serras Pereira disse...

Inteiramente de acordo, João. Só que — tal como fazemos quando denunciamos os perigos do nacionalismo de esquerda, para já não falarmos nos do outro — é prudente não excluirmos a consideração do pior (a probabilidade histórica sempre recorrente do improvável).

Abraço

miguel

Anónimo disse...

As observações do JVA sobre o complexo braço-de-ferro Grécia/ UE/BCE são notáveis e muito bem estruturadas, com um dispositivo libidinal muito positivo e preclaro, o que é deveras notável e salutar. Só há que acrescentar/ponderar/avaliar a crescente influência norte-americana na politica da União Europeia, o que faz disparar os contornos da ameaça burocrática para niveis intercontinentais... Com efeito, Obama já alertou para a situação económica e social grega e a urgência de ser amparada, poucos dias apòs a vitória eleitoral do Syrisa. E hoje convocou Merkel( e não Hollande...) para ir a Washington na segunda-feira, 9 do corrente. Por outro lado, o plano de recuperação economico e financeiro grego tem metas exequiveis e pode, com o apoio decisivo dos USA- que irá ter custos politicos a médio prazo, claro - ter hipóteses de êxito. Niet