« Moral goods and ends exist only when
something has to be done » (J. Dewey)
Há no relativismo moral algo que instintivamente nos repugna, a ponto de
afectar o nosso discernimento. Ao admitir que as nossas convicções éticas e
políticas são relativas, receamos ter
que aceitar que todas as convicções éticas e políticas têm um peso equivalente,
o que por sua vez tornaria radicalmente impossível qualquer discussão racional
acerca de questões éticas e politicas. Abandonaríamos assim o campo da moral e
da política aos charlatães que cultivam, com o adubo dos tradicionalismos e dos
fanatismos mais medonhos, a flor venenosa da íntima convicção.
Este preconceito explica porque olhamos
com desconfiança para os multiculturalistas.
Tememos que estes últimos, apoiando-se numa concepção angélica da tolerância,
construam com pedaços mal digeridos de Levi-Strauss e com um terceiro-mundismo
simplista, um autêntico cavalo de Troia, dentro do qual se esconde a mais pura selvajaria.
Com a sua cruzada cega em defesa das diferenças, convencidos de que o oprimido
é a medida de todas as coisas, estes neo-sofistas parecem-nos ameaçar
directamente os direitos conquistados graças ao longo e paciente combate do
racionalismo contra as forças das trevas. Vamos deixá-los cuspir na cara do
Giordano Bruno e do Galileu ? E a seguir, não seremos forçados a ver importadas
de novo nas nossas sociedades, em contrabando, barbáries tais como a sujeição
da mulher, como a escravatura, talvez mesmo como o canibalismo ou a excisão
generalizada ? Mas anda tudo doido ou quê ?
Calma. Não confundamos
relativismo moral com cepticismo, nem tão pouco com obscurantismo. O
relativismo não nega a razão, nem abdica dela minimamente. Antes pelo contrário,
é em consideração da essência da razão que ele reputa relativas as nossas certezas.
Com efeito, a razão está fundamentalmente na capacidade de perspectiva, na inteligência
da diversidade, na consideração ponderada dos fenómenos que nos rodeiam por
forma a discernir, progressivamente, como é que eles se movimentam uns em
relação aos outros e todos em relação a nós. Platão que me perdoe, mas vejo
dificilmente como conciliar a razão com certezas absolutas, eternas e
universais. Julgo mesmo poder socorrer-me das ciências chamadas “duras” para
confortar esta minha convicção. Certezas sólidas, cientificamente provadas,
daquelas que permitiram ao homem viajar até à lua, não deixam por isso de ser
relativas e provisórias. De resto, a ciência não poderia progredir se assim não
fosse. Cheira-me que o Galileu, por exemplo, não tinha certezas absolutas nem
definitivas, limitava-se a desconfiar que a visão do universo aceite no seu
tempo, tida então como verdade absoluta, era afinal de contas relativa. Quem
tinha certezas absolutas, eram antes os seus adversários, assim como aqueles
que acenderam a fogueira onde morreu o Giordano Bruno…
Não vou maçar o leitor com o que julgo
ser um truismo no domínio das ciências duras. O ponto é que não estamos
dispostos a aceitar esta evidência quando se trata das nossas convicções éticas
e políticas. Neste domínio, queremos por força pisar um chão completamente estável
e seguro, sem o mínimo imprevisto nem sombra de buracos que abram para precipícios
vertiginosos. Carne é carne, peixe é peixe. Talvez. Mas então gostava que me
explicassem, de onde é que nos vêm as nossas certezas ? Se a sua força não
deriva da prova feita atravês da nossa experiência – por definição relativa –
então ela só pode mesmo vir de uma intuição misteriosa que nos põe em
comunicação directa com o Ser Absoluto e Universal que tudo sabe, e que não
padece de uma visão parcelar das coisas… Será esta a fonte da vossa querida
Razão, que pretendem preservar do contacto espúrio com a diversidade do
real ? Concretamente, acham mesmo que é mais prudente, mais realista, e
mais racional caminharmos em cima da
cabeça ? Que o risco de queda é menor ? Eu, não. Eu acho mesmo o contrário.
Quanto a mim, não há razão mais segura, nem mais fiável, do que aquela que
deriva das coisas e que é imanente ao real. Nada mais sólido, nem mais
verdadeiro, do que a razão que nasce do confronto com a realidade e com a alteridade.
Correlativamente, nada mais frágil, nem mais traiçoeiro, do que o falso
conforto da consciência impoluta, tentando desesperadamente proteger as suas
pequenas certezas contra os ventos da adversidade. Ora, tenho pena, mas isto
implica que as minhas certezas racionais são, por definição, relativas.
Relativas à realidade que experimentei e que outros experimentaram comigo. E
implica também outra coisa : espaço para outras certezas, amadurecidas à luz de
outras vivências.
Por que carga de água é que o
carácter relativo das nossas convicções morais e políticas havia de por em
causa a sua racionalidade, ou aliás a sua solidez ? Alguém me explica ?
Haverá melhor garantia da consistência das nossas representações éticas, do que
a consideração que elas resultam da experiência pluri-secular dos povos que se
debateram com a realidade concreta que nos circunda ? Assim sendo, por que
diabo deveríamos temer o confronto (que implica sempre o respeito) com outras
razões mais longínquas ? O pior que poderia advir desse confronto, seria
ficarmos a conhecer-nos um pouco melhor a nós mesmos, como a antropologia
tratou de demonstrar sobejamente. E também não existe o perigo que venhamos a
ser colonizados por Hunos. Ou melhor, a existir esse perigo, ele não deriva com
certeza do relativismo, nem do multiculturalismo que nos predispõe a procurar
compreender o outro. Aprontava-me a demonstrar-vos isto more geometrico com sólidas razões transcendentais mas, no fundo,
porque não começar por considerar a realidade dos factos que temos na nossa
frente ? Vocês conhecem partidos políticos com representatividade que, na
Europa, se proponham trocar as nossas constituições pela charia ? Viram
por aí propostas de lei que visem a substituir a pena de prisão cominada para o
furto, por uma pena de seccionamento do ante-braço e consecutiva fixação na
porta do ladrão ? Têm noticia de movimentos associativos que pretendam
criar uma rede de pastelarias cuja ementa inclua crianças fritas como pequeno
almoço ? Eu não vejo nada disso. O que vejo, são associações de imigrantes que reclamam
deixar de ser discriminados em relação aos outros cidadãos. Para isso, não se
socorrem do Alcorão nem invocam a vingança dos espíritos ancestrais, mas antes
o princípio da Igualdade Republicana, tal qual foi proclamado em 1789, uns meses
após a tomada de um forte cujo nome agora me escapa, mas que não era com
certeza, nem o forte de Ceuta, nem uma pirâmide no Egipto… Por conseguinte, a
haver aculturação, francamente, duvido muito que seja no sentido apreendido por
aqueles que desconfiam do relativismo.
Se a tese do relativismo moral
apresenta um inconveniente, este deve antes ser procurado na sua inaptidão para
impedir completamente a expressão de parvoíces. Por exemplo, no outro dia, numa
conversa aqui no Vias de Facto, chamaram-me a atenção para pessoas que
defendem, pelos vistos, que as agressões sexuais cometidas em Colónia e noutras
cidades alemãs durante a noite de ano novo, seriam desculpáveis porque tal
corresponderia à cultura dos agressores, merecedora de respeito. Esta afirmação
é obviamente uma completa patetice e não encontra apoio no relativismo moral.
Este não conduz de forma alguma a renunciar à aplicação dos princípios
basilares da nossa ordem social e política, nem sequer em beneficio de
estrangeiros que nos visitam. Pelo contrário, se existem regras que a antropologia
tem verificado mais ou menos em toda a parte, são precisamente as da hospitalidade,
que mandam respeitar escrupulosamente quem nos recebe. De resto, se exceptuarmos
um punhado de doentes mentais – há-os em todas as religiões e também entre os
ateus – não consta que o Islão encoraje ou autorize a agressão sexual… Assim
como assim, pus-me à cata das pessoas que defendem uma opinião tão bacoca.
Consegui dar com um Senhor Adalberto Soares de Mendonça, funcionário dos
correios em Bragança, que defende sobretudo que não devemos cometer amálgamas
entre os desgraçados de Colónia e a comunidade muçulmana no seu todo, mas acrescenta
que, se calhar, os responsáveis das agressões eram refugiados irritados com a
forma como são acolhidos na Europa. Não se trata bem da opinião que me
descreveram mas, havendo perigo de complacência, reunimos ontem o Conselho
Mundial dos Multiculturalistas (CMM) e, por unanimidade, decidimos enviar
imediatamente uma brigada de etnólogos à capital de Trás-os-Montes, onde o
problema está já a ser resolvido.
Seja como for, não é porque um ou
dois idiotas se afirmam de uma doutrina, sem a compreender, para proferir a seguir
as piores alarvidades, que a doutrina em questão passa a ser uma alarvidade.
Isto, julgo eu, é pacífico. Portanto tenhamos um pouco de confiança na Razão
que tanto prezamos, e convenhamos que ela não está fundamentalmente em perigo
de desaparecer apenas porque vimos uma mulher com véu na paragem do autocarro. Deixemos
estes pânicos para a Helena Matos, que tem fundados motivos de vergastar
quotidianamente a esquerdista tonta que foi nos seus dezassete.
Quanto a saber se o relativismo
moral é defensável, coerente e convincente, há que responder sem medo, com
firmeza e de forma categórica : depende.
14 comentários:
Excelente texto. Em particular, a discussão sobre relativismo moral. Gostaria de salientar que o relativismo moral não implica um relativismo na acção. Ou seja, o relativismo moral, mais genericamente a dúvida, não leva (necessariamente) à inacção. A acção resulta das nossas crenças (ou opiniões) num dado momento, não devendo a determinação posta na sua execução depender do cepticismo (mais uma palavra "maldita") com que avaliamos "constantemente" a coerência dessas crenças (tendo em conta o conhecimento que possuímos sobre a realidade). Obviamente, não é tão fácil assim. Todos sabemos que num ser humano, em geral, a determinação depende fortemente da ausência de dúvida. Não somos robots, que após calcularem a acção que tem maior probabilidade de levar ao desfecho desejado, conseguem suspender a dúvida que resulta do facto de saberem existir outras acções possíveis (mas com menor probabilidade de originar o desfecho desejado), e implementar a acção identificada com toda a determinação. Parece-me que esta é uma das razões principais porque o cepticismo, a dúvida, o relativismo moral, é tão inquietante para tanta gente. Existem depois outras razões, tão ou mais importantes, das quais salientaria a aparente necessidade que, infelizmente, muita gente parece ter de definirr a realidade em termos binários, i.e. em termos simplistas, há os bons e há os maus. Note-se que o relativismo moral não é de todo incompatível com uma tal caracterização. É, no entanto, incompatível com a crença de que essas classificações são imutáveis. E, finalmente, termino relembrando que nada é mais combatido pelas hierarquias que o relativismo moral. Se a dúvida, o questionamento da ordem estabelecida, não permite por si só o desmantelamento desta, é um primeiro passo essencial no processo.
Caro João Viegas,
Tudo bem e muito bem explicado. Mas talvez conviesse distinguir entre o relativismo de quem aceita não ter acesso ao "esplendor da verdade" absoluta e põe por isso à prova do diálogo da alma consigo própria e do debate com os outros as suas convicções e valores e outro relativismo que, bem vistas as coisas, se auto-refuta ao afirmar a indiferença ou a equivalência em termos de verdade de todas as convicções, doutrinas e valores. Ora bem, sendo o primeiro sentido o que defendes, depararás com o problema incontornável — e que refuta o segundo — dos que negam todo o relativismo, se declaram na posse da verdade revelada ou incontestável e proíbem ou criminalizam a sua discussão. O diálogo ou a discussão racional só é, por definição, possível com quem o aceita sem limites e não põe fora da lei, dispondo-se a travá-lo no horizonte de uma interrogação indefinida. O que significa — entre outras e muito importantes coisas — que a indiferença ou equivalência de todas as convicções, valores, etc., proposta pelo multiculturalismo é inaplicável ou suicida justamente do ponto de vista do tipo de relativismo que defendes. De resto, as posições "multiculturalistas" também não são aceites pelos defensores dos direitos superiores da verdade sacralizada como lei suprema — pelo que aqueles ficam limitados à futilidade ou ao papel, bem descrito por Kundera num dos seus romances, de "os mais brilhantes aliados dos seus próprios coveiros".
Com esta reserva, reitero o meu acordo com o que escreves, não sem te recomendar, todavia, a propósito das agressões sexuais de Colónia, a leitura do texto de Marieme Hélie Lucaspara que aqui (http://viasfacto.blogspot.pt/2016/01/marieme-helie-lucas-os-ataques.html) chamei a atenção.
Abraço
miguel(sp)
Ola Miguel,
O que digo é que os unicos que se podem reclamar sem contradição do "multiculturalismo" não pretendem que todas as convicções se equivalem, ou que são indiferentes. Apenas dizem que todas as convicções podem dialogar racionalmente, o que implica que a razão pode fazer alguma diferença entre elas, mas também que elas comecem por respeitar-se umas às outras.
Depois, como salienta o Pedro, ha quem misture tudo, o respeito das convicções com a imposição de regras de comportamento, ou ainda a questão da legitimidade de uma sociedade impor as suas regras a outras sociedades, exteriores, com a questão da legitimidade desta mesma sociedade aplicar as suas regras internamente. Mas esses não são, nem multiculturalistas, nem relativistas, nem racionalistas. São apenas confusos. "An ancient race..."
Abraços
Mas, João, para lá das questões de terminologia, não vejo como "todas as convicções podem dialogar racionalmente", a menos que do "todas" excluamos aqueles que dizem — e passam à prática: "não discutimos Deus", ou sequer "discutimos tudo excepto Deus e a Revelação que Ele nos confiou".
Nos primeiros tempos deste blogue escrevi num post o seguinte, que mantenho a propósito desta questão":
"Eis um exemplo a que já achei útil recorrer em mais de um debate e que transponho livremente de Castoriadis: O filósofo discute com o sofista [ou com o fundamentalista], e este diz-lhe que, se não pode vencê-lo pela argumentação, pode sempre matá-lo e calá-lo de vez. Que garantia pode pôr-nos a salvo de um sofista assim, que se esteja nas tintas para princípios, procedimentos, constituições e declarações universais? A única resposta é o exercício, em última análise violento e empreendido como luta de morte, da legítima defesa. Convém que certos paladinos da “liberdade interior”, do “direito à diferença” e do “multiculturalismo” não o esqueçam". (http://viasfacto.blogspot.pt/2010/05/mais-cest-une-revolte-non-sire-cest-une.html).
Perante os que recusam o teu diálogo racional, só temos duas atitudes;: ou persuadi-los a aceitá-lo ou defender pela força a sua (dele, diálogo) e a nossa liberdade de cidadãos. A adopção da tua perspectiva implica a observância e a vigência universais do livre-exame e das condições que o garantem — não se resignando à sua suspensão na sequência de considerações "interculturais", se não quiseres chamar-lhes "multiculturalistas".
Quanto ao resto, de acordo, claro.
Abraço
miguel(sp)
Ola de novo,
Obviamente, so é possivel discutir racionalmente com quem aceita discutir racionalmente. Concordo completamente com isso. Outra questão consiste em saber de devemos impor que cada um se disponha a discutir racionalmente todas as suas convicções. Eu não vou tão longe nem vejo necessidade para tal. Acho suficiente que se exija de quem tem convicções, mas não quer debatê-las, que não pretenda impor estas convicções aos outros...
Concordaras que o sofista-fundamentalista do teu exemplo, quando passa para a ameaça (de morte ou de silenciamento) esta claramente a sair do âmbito da discussão racional.
Mais uma vez, as convicções são uma coisa, a imposição de comportamentos (incluindo nestes a expressão de convicções) ja nos situa noutra esfera. Por principio, e alias por natureza, as convições são completamente livres. Isto não impede que possamos impor alguns comportamentos, com base em convicções fundadas racionalmente e reconhecidas como tal pela maioria, desde que isso se faça de forma democratica, excepcional e apenas na medida necessaria para proteger outras liberdades. Não é precisamente isto que sucede com o codigo penal ?
Abraços
Olá,
Concordo quase integralmente com o último comentário do João, excepto quando afirma que "(...)possamos impor alguns comportamentos, com base em convicções fundadas racionalmente e reconhecidas como tal pela maioria(...)". Não acho que decisões tomadas por maioria, de forma plenamente democrática, necessitem de qualquer outra fonte de legitimidade, como por exemplo uma pretensa fundamentação racional das convicções que estiveram na origem da decisão tomada. Qualquer outro critério, para além da legitimidade democrática, apenas serve para excluir, directa ou indiretamente, pessoas do processo de tomada de decisão, e fomentar o aparecimento de castas que se arrogam como únicas possuidoras dessa legitimidade extra(-democrática). E isto aplica-se não só a fundamentalistas religiosos, mas também a todo o tipo de tecnocratas, como ex. cientistas ou economistas, bem como a ideólogos, à esquerda e à direita, que não aceitam que as suas convicções sejam colocadas em causa.
O que acabei de afirmar não implica que todas as decisões tomadas de modo plenamente democrático sejam (sempre) "as melhores", e em particular as melhores sob o ponto de vista dum indivíduo ou dum grupo. Haverá sempre decisões de tal modo negativas para alguns, que estes serão impelidos a fazer o que for necessário para impedir a sua implementação. E têm todo o direito ("natural") para assim agirem. Defender a democracia radical não equivale a aceitar passivamente toda e qualquer decisão que daí emane. A probabilidade duma democracia sobreviver será tanto maior quanto maior for a capacidade daqueles que a implementam forem capaz de encontrar compromissos que lhes permitam viver juntos em paz.
(continua)
(continuação)
Voltando ao multiculturalismo, o problema que muitos vêem neste, à esquerda e à direita, tem directamente a ver com o aspecto moral, com o relativismo moral. Ou seja, são incapazes de aceitar que o outro pode ter convicções diferentes das dele. E tal, pelo que foi dito antes, é literalmente incompatível com a democracia. Mas, também é verdade que se se permitir, num dado momento, a livre expressão democrática a todos, poderão formar-se maiorias que aproveitem a oportunidade para limitar a exercício democrático. Que fazer? Cada processo terá as suas próprias circunstâncias. Mas, genericamente, toda a acção (vinda de quem quer que seja, maioria ou minoria) que pretenda limitar a democracia deve ser resistida ou mesmo combatida, até desaparecer. Esperando que com o (re-)início do processo democrático, a sociedade tenha evoluído de tal modo que deixe de haver maiorias em favor da limitação da democracia. Senão... recomeça o processo. Há sempre a possibilidade, mais ou menos fácil, de se optar, eventualmente por mútuo acordo, pela separação geográfica e cultural entre grupos.
Depois, há a difícil questão das minorias que se sentem (ou que são vistas como...) oprimidas numa dada sociedade. Até que ponto a (percepção da) sua situação legitima a intervenção duma outra sociedade nos assuntos "internos" da primeira?... Não há resposta única. Dependerá da situação. Esta última questão leva-me a outro aspecto que é frequentemente atacado no multiculturalismo, e com o qual também discordo: quem se afirma multiculturalista frequentemente defende o não-intervencionismo por defeito, isto é independentemente da situação concreta que se apresenta. Como se pode depreender do que escrevi antes, não concordo com esta posição. Admito o intervencionismo em certas situações, sob certas condições e após um reflexão profunda sobre todas a conseqüências possíveis desse intervencionismo. Este deve ocorrer não porque é "óbvio que sim", mas sim porque se julga que levará de modo claro a que as pessoas afectadas fiquem posteriormente em melhor situação (é assim que funcionam, ou deviam funcionar, os tribunais quando avaliam da aplicação da lei numa dada situação). Para mim esta posição nada tem a ver com relativismo moral. Aceito como perfeitamente "legítimas" convicções que levam alguns a oprimir outros, mas admito que, tendo em conta o que disse, se intervenha de modo a terminar com a situação em causa. Note-se que isto aplica-se quer numa sociedade vs. outra, como no que respeita à atitude duma sociedade para com grupos no seu interior (imagine-se o caso dum casal fundamentalista religioso, apenas no âmbito da opinião/convicção, com filhos e a viver no seio duma sociedade laica: estes devem ser retirados da sua guarda?...).
Abraços,
Pedro
Ola Pedro,
Percebo e aceito a objecção, mas noto que "razão" e "racionalidade" são termos polisémicos. No meu conceito, remetem sobretudo para a capacidade de convencer, ou seja, pelo menos em teoria, para algo que deveria poder aferir-se de forma democratica.
Se eu disser "comportamentos que a maioria considera razoavel impor a todos" a frase é mais aceitavel ?
A outra dificuldade que levantas, a da ditadura da maioria, remete para a legitimidade de regras impostas (por exemplo as do codigo penal). Infelizmente, não vejo como uma sociedade possa sobreviver sem elas. Agora é obvio que, por principio, tais imposições devem cingir-se ao que é estritamente necessario para salvaguardar bens fundamentais para todos, nomeadamente outras liberdades. Isto é a base do ordenamento liberal (no sentido politico). Julgo que implica que é ilegitimo impor algo a uma minoria, quando a imposição não é indispensavel para salvaguardar um bem pelo menos tão valioso, aos olhos da colectividade, do que a liberdade da minoria. Ora, numa sociedade liberal, a liberdade da minoria é normalmente considerada como um bem absolutamente essencial.
Mas é obvio que concordo contigo no sentido de ser inadmissivel uma "razão" de indole tecnocratica que se oporia à escolha democratica e que pretenderia poder e dever ser imposta de cima. Quanto a mim, uma razão deste tipo ja não teria nada de "racional"...
Abraço
Caro João,
só uma nota para dizer que, se concordo em que não podemos impor a alguém que discuta todas as suas convicções, acrescentaria, no entanto, que lhe podemos e devemos impor que aceite na esfera pública a sua discussão pelos interessados.
Robusto abraço
miguel(sp)
Claro, isto nem se discut..., quero dizer, isto discute-se mas não vejo argumento algum, pelo menos no espaço existente entre nos e as galaxias mais longinquas de que ha noticia, que possa justificar uma restricção, pequena que seja, ao debate de ideias. Mau, mau. Tu estas a tentar apanhar-me em flagrante delito de afirmação categorica, é o que é...
Abraço
Bem, bem, João. Qual investigação de delito, qual quê, pá. Estava só a tentar pensar contigo, continuar a pensar uma questão pertinente que tinhas levantado. A questão em causa, com efeito, é ainda mais pertinente porque sugere uma primeira resposta ao problema da educação aflorado pelo Pedro. Tal como devo poder não discutir, devo poder exprimir as minhas convicções indiscutíveis (se as tiver), mas, por muito que me continue confiada a guarda dos filhos, não posso impedi-los de ver essas convicções postas em causa na escola pública — ou publicamente autorizada (mediante a observância de certas exigências universais e vinculativas) — que, democraticamente, deverá legitimar e promover o livre-exame de todas as convicções (e instituições).
Abraço
miguel(sp)
Ola Miguel,
O meu comentario não passava de uma pequena brincadeira para dizer que concordo contigo a 100 %. Como é obvio não pode haver qualquer limitação ao debate de ideias que, por definição, beneficia a todos sem magoar ninguém. Isto implica que qualquer pessoa deve ser absolutamente livre de exprimir as suas ideias, e também as ideias dos outros, sem a menor interferência. Quem diz ideias diz convicções. O racionalismo é isso mesmo : sou dono da minha adesão a uma ideia (ou convicção), mas nenhuma ideia (ou convicção) me pertence em regime de exclusividade.
Isto também se aplica à escola publica e, tanto quanto percebo, é o que se verifica na pratica. A haver ensino sobre religião, ele deve ser rigorosamente neutro. E julgo que isso não levanta dificuldades de maior. Até porque que a grande maioria dos crentes, tal como a grande maioria dos ateus, são agnosticos (no sentido de não terem a pretensão de saber se existe um deus, ou varios, ou se não existe nenhum).
Guerras de religião, sempre as houve e, pelos vistos, não estão em vias de acabar. Mas nada têm a ver com a razão e não consigo imaginar que alguém possa, sem contradição, reclamar-se dela para apelar à cruzada.
Forte abraço para ti e desculpa se o meu comentario anterior não foi claro.
Caro João, eu dei-me conta da brincadeira e tentei retribuir.
Teremos de deixar o problema da educação e ensino para outra ocasião. Porque, de facto, aí as coisas aquecem e não só no que diz respeito ao ensino religioso. Quanto a este último — excepto se por ele se entender "história das religiões", ou coisa semelhante —, penso que deve ser banido da escola pública e dos programas de ensino. Para quem queira, as igrejas ou outras instituições e associações religiosas poderão ministrá-lo, claro — sem restrições especiais. Mas o verdadeiro problema é quando a religião pretende, por exemplo, banir do ensino a teoria da evolução ou introduzir nos programas o ensino da versão bíblica da Criação como teoria científica rival — ou ainda, pour faire juste mesure, quando sectores "liberais" querem banir ou modificar o vocabulário de obras do canon escolar considerando-as "politicamente incorrectas". Bom, isto ficará para outro dia, se estiveres de acordo.
Reforçado abraço
miguel(sp)
Ola,
Claro. Quando falo em ensino da religião, refiro-me apenas ao ensino da historia das diversas religiões, ensino que deve ser factual, objectivo e neutro. O ensino da(s) doutrina(s) não devia ter lugar numa escola publica e laica (como deve ser a escola publica em meu entender).
Quanto às polémicas sobre o criacionismo no ensino, elas assentam noutro tipo de falacia, que também deriva de uma concepção errada da razão. Este erro é do mesmo tipo que os sofismas que se usam frequentemente para contestar o "consenso cientifico", como vemos acontecer a proposito do aquecimento global. Nesta matéria também, julgo que o relativismo descrito no meu post permite ter ideias claras e combater eficazmente os sofismas. A ideia de "consenso cientifico" radica num principio simples : no dominio da ciência, faz diferença uma opinião informada em relação a uma opinião não-informada. Julgo que este principio simples funciona de forma bastante satisfatoria, sem impedir que os consensos possam ser contestados, nem impedir a reflexão critica sobre a maneira como eles são formados (cf. por exemplo os trabalhos de T. Kuhn). Isto no dominio das ciências "exactas".
A transposição desses principios para o campo da decisão politica levanta dificuldades, como sabes muito bem. Salvo erro, este é precisamente um dos pontos centrais na reflexão de Castoriadis, não é ?
Bom, mas de facto este assunto é diferente e vastissimo...
Abraço
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