15/01/16

O corpo místico de Sampaio da Nóvoa




Marcelo Rebelo de Sousa, Sampaio da Nóvoa, Marisa Matias e Maria de Belém são os principais candidatos à Presidência da República. Todos têm em comum, mais profundo do que as divergências narcísicas que apregoam ou fantasiam, o facto de privilegiarem nas suas campanhas os "afectos", que camuflam a despolitização generalizada sobre a qual aquelas se apoiam e promovem. De resto, a importância que dão aos seus próprios traços de carácter e motivações pessoais são um ofuscante indício disso mesmo. Se os "afectos" servem a Marcelo para desvalorizar os antagonismos políticos entre a "esquerda" e a "direita", sem ter de se dar sequer ao trabalho de as definir, Maria de Belém, com os seus alardes de "dama de caridade" não lhe fica atrás, declarando que, pelo seu lado, manterá a intensidade dos seus afectos durante todo o mandato a que aspira, acusando Marcelo de uma inconstância que condena os seus a não sobreviverem à campanha. Pelo seu lado, Marisa Matias tem insistido reiteradamente em desfazer as expectativas benévolas dos que poderiam esperar que uma social-democrata de esquerda como a que, por vezes, ela parece querer ser, aproveitasse a campanha para desmitificar ou desmontar a figura do "chefe de Estado" em benefício da república a que se propõe presidir, entendida como regime que potencia e reivindica o exercício, em pé de igualdade, do poder político pelo conjunto dos cidadãos comuns. E ei-la que para valorizar mais as funções da chefia do Estado — em detrimento do poder democrático dos cidadãos —, anuncia que está na campanha, não por interesse, mas por amor. No entanto, o ex-reitor é, até ao momento, o campeão dos "afectos": propõe-se "proteger" os que espera ver dispostos a serem seus protegidos e, para esse efeito, não recua perante a transubstanciação e faz-se anunciar — por exemplo,no clip que serve de exergo a este post — como corpo místico de "todos nós" — ou faz com que o "todos nós" se transubstancie no corpo místico de Sampaio da Nóvoa.

9 comentários:

António Geraldo Dias disse...

Miguel quando você diz "afectos"que camuflam a despolitização generalizada sobre a qual aquelas se apoiam e promovem se me permite diria mesmo sacrificam numa novaeconomia da cerimónia e sacrifício quanto maior o poder maior é a obrigação de dar para receber os frutos da reciprocidade roubada quando já não resta quase nada o "potlatch" passa a ser pura representação simbólica dispendiosa e fictícia.

joão viegas disse...

Ola Miguel,

Bom, ha aqui um pormenor que falta : o Presidente tem poderes essencialmente simbolicos. Logo, mesmo com as melhores intenções, é um pouco inevitavel que a campanha ganhe ares de gigantesca distribuição de abraços e beijinhos.

Tirando isso, julgo que estas a ser um bocado injusto com os afectos, que não têm culpa. Juglo que o que criticas, e muito bem, é a farsa de uma sociedade sem conflituosidade, onde estaria tudo numa boa e acabariam todos à volta da lareira a ouvir historias da carochinha contada pela vovozinha. Tens completamente razão nesse aspecto e nunca é demais alertar para os perigos fascizantes do onaninismo de cariz sincretinistico, que proclama a alvorada das ideologias ao mesmo tempo que transforma o debate publico num espectaculo morbido-escatologico*, que ocorre na televisão em tempo real, numa rigorosa coincidência com o assalto descarado e institucionalizado à carteira do trabalhador pobre.

Mas, mais uma vez, os afectos não têm grande culpa. Afinal de contas, querer restituir o esbulhado e destituir o sacro-santo capital, para que a riqueza volte a reverter em beneficio do homem que a cria, em vez de engordar o abutre que a suga, implica, também, um apelo aos afectos...

Um abraço

* : Julgo que é a primeira vez que reparo nisso, mas ha aqui um drama ortografico que demonstra que o desparecimento de consoantes mudas pode, por vezes, acarretar consequências surpreendentes.

joão viegas disse...

Não é a "alvorada", mas o "crepusculo". Desculpem outras gralhas.

Abraços

Miguel Serras Pereira disse...

Caro João Viegas,

se reparaste bem, escrevi "afectos" entre aspas e a minha ideia, "aristotélico" que em grande medida sou, não foi desvalorizar a importância do afecto, no sentido forte do termo, no investimento de um projecto político — ou, menos ainda, a dimensão afectiva na existência humana. Quis simplesmente denunciar que a invocação que fazem dos "afectos" os candidatos que citei serve de disfarce da sua nulidade política e ou de mecanismo de recalcamento da questão essencial que se joga na política propriamente dita — a das instituições e da forma de governo de uma sociedade — e cuja generalização, com a participação igualitária de todos, é condição de conquista da plena cidadania democrática.

Abraço

miguel(sp)

Ant.º das Neves Castanho disse...


Miguel Serras Pereira,

i n d e p e n d e n t e m e n t e desta campanha eleitoral e das análises de bancada, a grande verdade é que Portugal será muito diferente, se ganhar o Marcelo, do que poderá ser se ganhar o Sampaio da Nóvoa. Só isso me interessa na Política. Para devaneios literários leio, por exemplo, Poesia...

Miguel Serras Pereira disse...

António das Neves Castanho,

devemos ter concepções antagónicas do que significa "MUITO DIFERENTE". Quanto ao que é realmente importante do ponto de vista do desenvolvimento da capacidade governante dos cidadãos comuns, eu diria até que a eleição de um ou de outro não faz diferença nenhuma e também que privilegiar politicamente a via da eleição de um Chefe (de Estado) é uma opção democraticamente duvidosa. De resto, repare que até na perspectiva oposta de um Pacheco Pereira — preocupado sobretudo e confessamente com a reconstituição de um centro que garanta o regime —, a escolha entre um e outro parece fazer pouca diferença — daí que Pacheco Pereira tenha vindo a reiterar nas últimas semanas que entre um candidato e outro o seu coração balança de tal modo que só no último momento decidirá o seu voto.

Saudações democráticas

msp

Miguel Serras Pereira disse...

Ah, esqueci-me de acrescentar que aos cidadãos cometidos com a democratização do exercício do poder político compete não serem claques que apoiam uma equipa de estrelas profissionais, mas entrar em campo jogando por sua conta e risco próprios. A emergência de movimentos e o desenvolvimento de acções nesse sentido, sim, faria realmente diferença

msp

Ant.º das Neves Castanho disse...

Desta interessante, porque breve, troca de opiniões, retenho como relevante que devemos ter concepções muito diferentes do que significa "antagónicas".

Saudações republicanas,

Ant.º das Neves Castanho.

Miguel Serras Pereira disse...

António das Neves Castanho,

"antagónicas", neste contexto, são, por exemplo, a democratização tendente a instaurar o exercício igualitário das liberdades e responsabilidades do poder político pelo conjunto dos cidadãos ("cidadania governante") e a organização desse mesmo poder através da distinção estrutural e permanente entre governantes e governados, condição sine qua non do Estado capitalista — ou de uma sociedade que tem por base a divisão classista do trabalho político.

Saudações democráticas

miguel(sp)