O problema das elites, da sua qualidade, da sua honorabilidade, é muito relevante num sistema democrático que se apoia fortemente na componente representativa da democracia. Melhor dizendo, um sistema democrático em que a componente representativa tem uma natureza hegemónica e claramente repressiva da participação dos cidadãos. Nesse sentido é muito adequado fazer a afirmação que Guterres fez. Por certo que esta percepção já o assaltava quando resolveu abandonar o pântano, que então já tolhia as energias do país. Passados vinte anos a síntese é esclarecedora: a elite não presta.
Claro que os portugueses em geral são francamente melhores que os políticos que temos. Mas, há um pequeno problema: quem tem o poder são os políticos e os que eles representam [não estava a pensar no povo]. Ora esta elite dispõe de privilégios que apenas são alcançáveis pela via da política. Foram obreiros em causa própria. Porque razão iriam eles mudar? Porque razão iriam mudar a relação que os Governos, os partidos que os suportam, os organismos regionais em que esses partidos exercem influência, estabelecem com a coisa pública? Com o interesse superior dos cidadãos? Ao longo de décadas não encontraram razão nenhuma para o fazer. Com um maior ou menor "acerto" o modus-operandi manteve-se, no que ao essencial se refere.
Talvez por isso sejam tão acertadas as palavras de Pacheco Pereira, no Público, sobre os riscos que corre este Governo e tendam a ser tão ignoradas. Sobretudo quando ele se refere à atracção - que será fatal - para o PS governar como sempre fez
"(...)dá umas coisas a uns e espera sentado pela sua fidelidade; tira umas coisas a outros e depois assusta-se, recua e avança como pode. (...)".
O que essa opção revela, se nenhuma mudança acontecer, mesmo com a aprovação de um Orçamento socialmente muito mais justo do que os anteriores, é a vontade de exercer o poder como ele sempre tem sido exercido: pelos nossos, em representação dos outros, mesmo que seja, ainda que pontualmente, contra os seus interesses. A formação de um Governo de coligação teria a vantagem de obrigar a olhar para o aparelho de Estado de uma outra perspectiva. Obrigaria a uma abordagem menos aparelhística das políticas públicas e da máquina do Estado. Obrigaria a menos "elites" no sentido habitual do termo. [Quem aqui perde algum tempo a ler o que escrevo, sabe que não atribuo ao PS responsabilidades maiores no falhanço da coligação. Antes pelo contrário]
As elites serviram-se, ao longo de décadas, a si próprias. Não tiveram necessidade de emigrar, não perderam os empregos, não ficaram à margem dos ajustes directos do regime, nem da "relação social dinâmica", que é o sal da democracia. Tiveram uns percalços, aqui e ali, com a justiça, mas tudo dentro da margem de risco admissível. Não foi uma tarefa pequena. Deu muito trabalho. Até aqui mostraram ser boas a executá-lo. O País pagou um preço elevado por essa indesejada competência. Tudo indica que irão continuar pelo mesmo caminho.
23/02/16
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7 comentários:
Caro José Guinote,
Reconheço que ha muitas considerações interessantes no post, e que infelizmente este problema (?) tem sido tantas vezes levantado que parece indelicado afirmar que se trata de uma falsa questão. Ainda assim, gostaria que me explicassem, como se eu fosse um Marciano ou um Tupi com acesso a dicionarios de lingua portuguesa, que raio de sentido pode ter, em primeira analise, a afirmação :
"As elites nacionais não estão à altura dos Portugueses"...
Lembrete :
e·li·te
(francês élite)
substantivo feminino
1. O que há de melhor e se valoriza mais (numa sociedade). = ESCOL, FINA FLOR, NATA
"elite", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, http://www.priberam.pt/dlpo/elite [consultado em 24-02-2016].
(Nota : Ha também um sentido 2, mas é tão parvo que, por consideração pela Priberam, não o reproduzo aqui)
Talvez tenhamos aqui um debate que ganha em ser colocado de maneira simples...
Abraço
A menos de uma abordagem mais detalhada - porque julgo que este debate faz sentido - acrescento dois ou três pontos ao comentário do João Viegas. Em primeiro lugar a frase, assim só, não faz sentido nenhum. Caso tivesse sido o parceiro de Guterres a perorar, acho eu que teria sido ridículo ou quiçá provocatório.
Sendo as elites "o que há de melhor e se valoriza numa sociedade" podemos defender que as elites são o reflexo de cada sociedade. Mas, atendendo à história da personagem falante -passada [abandono do Governo, invocando o pântano] recente [recusa da candidatura à Presidência da República]- podemos estar perante uma outra análise. Podemos estar a falar de uma elite, com um apurado sentido de classe, que ascendeu ao poder e que o exerce contra os interesses daqueles que supostamente representava. Mais, que o exerce em benefício próprio, além dos beneficiários usuais. A declaração tem um carácter de denúncia, feito no coração do sistema democrático, e por isso a única resposta que suscitou foi o silêncio.
Ola,
Salvo erro, estamos a dizer coisas perfeitamente complementares.
Admitindo que existe um problema, sera que faz sentido dizer que se trata de um problema "das elites" ? Com efeito, se as elites são mediocres (como se afirma), o problema so pode vir, não delas mesmas, mas do processo de escolha. So vejo duas explicações possiveis, das quais não sei qual é a pior : ou não sabemos escolher os melhores, ou não queremos fazê-lo. Num caso como no outro, podemos afirmar que a origem do problema NAO esta "nas elites".
Quanto à questão da casta dominante que usa e abusa do poder que lhe foi concedido sem a minima responsabilidade, trata-se com certeza de um problema grave, mas o problema deriva, precisamente, de não se tratar de uma "elite" no verdadeiro sentido do termo, a menos que derive da circunstância de ser perfeitamente angélico e ilusorio pensar que podemos entregar a coisa publica a uma "elite" na esperança de que ela saiba administra-la em beneficio de todos...
Seja como for, o que podemos deduzir do exposto é que os grandes apelos a uma limpeza por cima, na esperança de que saibamos finalmente encontrar a pura elite que vai salvar a nação, são uma completa contradição nos termos e são perigosos. Sem esquecer a urgência de encontrar uma nova forma de administrar a coisa publica em sintonia com a democracia verdadeira, devemos sempre manter-nos vigilantes em relação a este tipo de falacias, que podem desembocar facilmente no fascismo. Em Portugal, depois de 48 anos de uma ditadura de continuos, e dada a nossa ancestral propensão para transformar tudo em telenovela e confundir a discussão politica sobre as causas com a encenação dramatica sobre as culpas, temos que um dever de vigilância acrescido.
Sair da fulanização demagogica levaria por exemplo a colocar a questão de Guterres da seguinte forma : sera que os problemas que o pais enfrenta estão à altura dos Portugueses ? Ha dias em que esta questão me parece claramente retorica. Ha dias em que nem por isso...
Abraços
" Um povo não deve ter somente a necessidade de viver, deixando um livre sulco a todos os instintos: a justiça e ordem publica surgirão por si mesmos e naturalmente da sua vida, e o Estado cessando de ser a providência, o tutor, o educador, o regulador da sociedade, renunciando a todo o poder repressivo e caindo no papel subalterno que lhe aponta Proudhon, não passará de ser um simples bureau de consultadoria, uma espécie de caixa de reclamações ao serviço da sociedade. Sem dúvida, uma tal organização politica , ou melhor uma tal redução da acção politica em favor da liberdade da vida social, seria um grande bebeficio para a sociedade, mas, tal, não agradaria de forma nenhuma aos partidários do Estado apesar de tudo. Eles precisam absolutamente de um Estado-providência, um Estado-director da vida social, que gira a justiça e regule a ordem pública. Isto é, que o confessem ou não, e mesmo que se denominem republicanos, democratas ou mesmo socialistas - precisam sempre de um povo mais ou menos ignorante, menor, incapaz ou, para chamar as coisas pelo seu nome, um povo mais ou menos canaille a governar;tendo em vista,sem duvida,violentando o desinteresse e a modéstia populares,que possam guardar os primeiros lugares para si, afim de terem sempre a oportunidade de se devotar à coisa pública; e com o seu virtuoso empenhamento tenham sempre a oportunidade de serem os guardas orivilegiados do rebanho humano, fazendo os impossiveis para o seu bem e conduzindo-o à salvação, mesmo que os possam reprimir(...) uma espécie de pobre república do Paraguay que se deixou governar imenso tempo pela Cia de Jesus. Uma tal sociedade não evitaria descer em breve ao mais baixo grau do idiotismo ". Michael Bakounine, OC. I e III,1872. Niet
Bom, meu caro João Viegas, vamos lá ver. As elites – se é que existem, eu acho que não - não resolvem os problemas de uma dada sociedade. Aqui estaremos de acordo. Sejam elas boas ou más, corruptas ou não, os problemas da sociedade em sentido amplo, aqueles que se relacionam com a qualidade da democracia, a justiça social e espacial, o progresso, não se resolvem apenas pela sua acção ou omissão. Na hipótese benévola, sendo elas boas, combatendo a corrupção, perseguindo elevados padrões de progresso e de justiça social, ajudariam a que a sociedade fosse mais justa, e a que todos tivessem o seu lugar. Mas, uma sociedade justa constrói-se com os cidadãos a assumirem o seu papel na governação da pólis, é o que eu acho. Podemos discutir o papel dos partidos, das organizações sociais, dos sindicatos etc. Mas, sem uma politização da vida das pessoas, isto não vai lá. Dito isto o que eu estava a salientar era a peculiar leitura de Guterres. Num momento em que se juntam dois portugueses famosos – parte da tal elite, sem dúvida - para louvar a “produção nacional”, essa nossa capacidade para darmos ao mundo “vários melhores”, como o ex-presidente da CE e o futuro Secretário-Geral da ONU, Guterres veio dizer que as elites - de que ele ali, sentadinho, constituía um primus-inter-pares - que temos tido não prestam. Não deixa de ser notável esta desfaçatez, esta capacidade de Guterres para desconstruir o momento, retirá-lo das estrelas por onde ele andava, introduzindo os portugueses na conversa. Admitindo eu que Guterres não equaciona uma forma alternativa de governar a sociedade, preferindo a actual – uma democracia formal, de base fortemente representativa, com os cidadãos razoavelmente afastados da política, pontualmente mobilizados para um ou outro acontecimento, e para as grandes realizações do regime – julgo que ele quis dizer coisas importantes, sobretudo ditas ali. Quis dizer que em Portugal a casta dominante está longe de aspirar ao estatuto de elite. É que, se medirmos a qualidade da nossa classe política - podemos deixar de usar o termo elite - pelos resultados obtidos, a conclusão a que se chega é péssima. Julgo que Guterres quando refere que as elites não estão à altura dos Portugueses, é a isso que se refere. Elas não são capazes de responder eficazmente às suas aapirações/necessidades. Mas ele sabe que essas "elites" prosperaram e fizeram tudo o que podiam para tratar de si próprias e dos seus. E a ele isso parece-lhe mal, quer do seu lado católico, quer do seu lado republicano, quer da sua peculiar visão do socialismo democrático, seja lá isso o que fôr.
Meu caro José Guinote,
Sera assim como dizes, não ponho isto em duvida. Apenas acrescento um ponto : se a classe politica é como é, não é por obra do mafarrico. Todos temos responsabilidades nisso e a responsabilidade começa, provavelmente, na crença ingénua e politicamente insustentavel nas virtudes de uma "elite" (vejo que não cais nesse erro e ainda bem). Tenho pena mas na frase de Guterres, ainda que ele a possa ter dito com boas intenções, o cinismo e a ingenuidade estão de mãos dadas.
O problema é de corrupção ? Ora ai esta : a corrupção não se combate combatendo os corruptos (a não ser muito maginalmente). A corrupção combate-se combatendo a corrupção. Em desaparecendo ela, desaparecem também os corruptos. Talvez isto fique mais claro se invertermos os termos : combater os corruptos, muitas vezes, não é combater a corrupção...
Um abraço
Claro que sim meu caro João. A classe política é o que é em grande parte pela nossa responsabilidade colectiva de sermos incapazes de trabalhar em conjunto em defesa do bem comum. A incapacidade para as causas comuns, mesmo ao nível local, o da suposta proximidade, é chocante.Voltando ao tema e ao que acrescentas não podia estar mais de acordo. Em Portugal mediatiza-se o combate à corrupção como um combate aos corruptos, em cada período legislativo, há sempre um bode-expiatório, que permite ao regime manter a consciência tranquila e ter a sensação de ter feito o seu trabalho. Entretanto as alterações que tornariam a actividade dos corrutos uma inutilidade "superveniente da lide",como dizem os advogados, não são feitas. Durante anos denunciou-se o papel das mais-valias urbanísticas na promoção da corrupção. Alteraram a lei de solos mas nesse particular não mexeram em nada. A esquerda nãotugiu nem mugiu. Alteraram o Código da Contratação Pública - no Governo PS - e permitiram que a aquisição de bens e serviços fosse feita através dos ajustes directos. É um escândalo nacional. A corrupção e o tráfico de influências acessível a cada freguesia, a cada autarquia a cada instituição da sociedade civil daquelas que mexem em dinheiros públicos e fazem obra. É uma peste. A esuqerda não reparou ainda na "coisa". O que interessa é mediatizar a detenção de um caramelo daqueles que o regime já não quer chupar.
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