02/02/16

Ainda sobre o multiculturalismo

Uma coisa que acho que complica as discussões sobre o "multiculturalismo" é que a palavra parece-me ser usada para designar várias coisas, algumas até potencialmente contraditórias. À primeira vista, vejo logo quatro sentidos possíveis para "multiculturalismo":

- Coexistência de várias culturas no mesmo espaço geográfico

- Coexistência de várias culturas, largamente independentes umas das outras, no mesmo espaço geográfico

- Opinião que não há valores universais, e que cada cultura tem os seus próprios valores

- Opinião que não há culturas melhores ou piores que outras

Para já, uma ressalva - confesso que não sei se há alguém a defender o multiculturalismo no segundo sentido; alguns críticos do multiculturalismo costumam fazer uma oposição entre "cosmopolitismo" (que significaria mistura de culturas) e "multiculturalismo" (em que as várias culturas funcionariam numa espécie de "separadas mas iguais"); mas não se isso não será uma espécie de "homem de palha" (uma caricatura do multiculturalismo pelos seus oponentes).

Agora, a respeito do terceiro e quarto sentido - efetivamente, o terceiro sentido (negar a existência de valores universais) implica o quarto (achar que não há culturas melhores ou piores - afinal, se não há um padrão universal, não é possível hierarquizar culturas); mas a inversa não é verdadeira: indo ao extremo oposto, alguém que ache que no essencial as várias culturas (ou a natureza humana em geral) são fundamentalmente idênticas, apenas com algumas diferenças superficiais como vestuário, também achará que não haverá culturas fundamentalmente melhores ou piores que outras. Ou também podemos ter a posição de defender valores universais e achar que todas as culturas, de uma forma ou de outra, violam esses valores, e portanto não se pode dizer que uns são melhores ou piores: compare-se a pessoa que, perante uma referência à situação da mulher em vários países muçulmanos responde "e as violências que os países não-muçulmanos também fazem? Veja-se todos os civis mortos - a titulo de «dano colateral» - nas guerras que os EUA fazem, sem que a opinião pública supostamente humanitária do Ocidente se incomode muito" com a que responde "Não podemos querer avaliar outra cultura pelos nossas valores" (e mesmo este posição pode ter variantes mais "hard" - estilo "todas as culturas/sociedades/países têm ou fazem coisas más, logo não se pode dizer que uns são melhores que os outros" - ou mais soft - estilo "todas as culturas/sociedades/países têm ou fazem coisas más, logo não vale a pena andar a quer ver quais são os melhores e quais são os piores")

Diga-se que eu até tenho alguma simpatia pelo multiculturalismo no primeiro e e nas variantes mais universalistas do quarto sentido, mas teria mais simpatia se os defensores dessas versões se demarcassem das versões mais relativistas do multiculturalismo.

Ainda a respeito da forma como neste assunto às vezes as mesmas palavras podem ser usadas para significar coisas quase completamente opostos, um texto de Kevin Carson (especificamente feito a atacar os neo-conservadores, mas a mesma ambiguidade semântica aparece noutras áreas políticas):
Moral Relativism. Aka historicism. The denial of any unified, objective standard of value. The diametric opposite of Moral Equivalence (q.v.).

Moral Equivalence. Judgment of the United States government by the same unified, objective standard of value as the governments of other countries. The diametric opposite of Moral Relativism (q.v.).

Moral Clarity. The Zen-like state of mind from which it is possible accuse the same political enemy, simultaneously, of both Moral Relativism and Moral Equivalence.
Finalmente, a respeito da situação das minorias culturais no "Ocidente", e de que direitos ou obrigações devem ter, acho que a melhor maneira de ver isso é pensar em termos de indivíduos em vez em "culturas"; sobretudo adotando a regra de que cada indivíduo deve poder fazer tudo o que não prejudique terceiros, penso que muitas pseudo-polémicas à volta do multiculturalismo resolviam-se por si - por exemplo, eu sou  a favor da liberdade de usar o hijab (atenção que o niqab, a burka e as máscaras do Guy Fawkes são casos mais complicados), não em nome de um suposto respeito pela "cultura", mas simplesmente em nome do direito de cada um se vestir como bem quer e lhe apetece (seja com um hijab ou com uma crista à moda dos punks dos anos 70) - já as minhas objeções ao niqab, à burka e às máscaras (e atenção que eu não estou a dizer que seja necessariamente a favor da sua proibição - sinceramente não sei; apenas que o caso pela sua legalidade não é tão óbvio como no hijab) é que podem contribuir para perigo para terceiros (p.ex, alguém escondido por um desses apetrechos pode matar alguém, misturar-se na multidão - sobretudo se houver muita gente usando-os - e depois é difícil descobrir quem foi o assassino).

3 comentários:

joão viegas disse...

Ola Miguel,

Texto interessante mas, na minha opinião, tributario das falacias que procurei denunciar no meu post recente sobre o relativsimo moral. Repara que o relativismo não implica o cepticismo, nem implica tão pouco renunciar a um padrão comum que permita "hierarquizar", não culturas (o que não me parece fazer grande sentido), mas valores. Dizer que não tem sentido falar em valores "universais", porque as questões éticas não se colocam no céu, mas num contexto determinado com incidência fundamentais sobre a resposta (tese defendida pelo relativismo), não significa de maneira nenhuma que estejamos impedidos de ter um debate objectivo sobre os valores, apenas significa que o debate deve ter em consideração a natureza concreta da dificuldade a vencer e, por conseguinte, o contexto.

Por exemplo : os valores que estão na base do pluralismo (e também, julgo eu, do "multiculturalismo", mas aceito que a palavra carece de definição rigorosa), tais como a tolerância e o respeito da autodeterminação dos povos, levam necessariamente a aceitar que certas comunidades prefiram ficar completamente à margem da comunidade internacional e não entrar em contacto com outros povos, mas esses valores não justificam que os individuos oriundos desses povos mantenham os seus valores, e sobretudo, os seus comportamentos completamente intactos quando estão em contacto com outros povos, por exemplo porque vivem de forma integrada no meio de outras comunidades. Dito de forma mais simples : a tolerância não tem o mesmo conteudo consoante estamos a reflectir sobre relações externas, com outros povos, ou sobre relações internas, dentro de determinada comunidade.

Portanto a dedução que fazes entre a negação de valores universais e a impossibilidade de "hierarquizar", é quanto a mim uma falacia, que assenta precisamente numa recusa tacita dos pressupostos relativistas preconizados por aqueles que procuras criticar. Logo para começar, falas de "hierarquizar culturas", mas que sentido pode ter tal hierarquia, e alias que utilidade tem ? Quanto a mim, nenhuma. Na pratica, o que temos que saber fazer é hierarquizar valores, e isto torna-se precisamente imperativo quando o contexto é "pluralista" ou "multiculturalista". E repara que, em democracia, por definição, o contexto é necessariamente pluralista...

Os principios que exponho permitem, a meu ver, resolver a esmagadora maioria dos problemas concretos que temos em mente quando nos referimos ao problema do "multiculturalismo". Por exemplo, as reclamações sobre o véu não assentam numa vontade de impor valores exteriores às nossas sociedades, mas respondem à vontade, por parte de cidadãs originarias de outras culturas de poderem beneficiar de um tratamento igual na nossa sociedade, em nome do principio (tido como essencial nas nossas sociedades) que proibe discriminar as pessoas em função das suas origens ou em função da sua religião.

Bom, vou procurar escrever um texto para responder de forma mais pormenorizada, a ver se me faço entender melhor...

Abraço

Miguel Madeira disse...

"Repara que o relativismo não implica (...) renunciar a um padrão comum"

A mim parece-me que renunciar a principios universais é a própria definição de "relativismo".

joão viegas disse...

Ola Miguel.

Certo, mas "comum" não é "universal" e para decidir basta um padrão "comum". Eu posso comprar um café em Euros e este pagamento é considerado objectivo e aceitavel em muitos paises da Europa. Outra coisa é pretender fazê-lo numa moeda aceitavel no universo inteiro...

O relativsimo nega que existam valores universais, pois isso não faz sentido uma vez que niguém experimenta problemas "no universo", mas não nega que seja possivel chegar a conclusões racionais e objectivas - a um padrão - num contexto determinado. O relativismo aceita perfeitamente que exista uma carta das nações unidas (que alias supõe uma adesão dos seus membros e não pretende impor-se a quem o não queira), onde estão definidos valores objectivos validos entre um grande numero de comunidades. O que ele nega é que seja "racional", logo eficaz, pretender afirmar valores absolutos e eternos. Isto choca com a nossa ânsia por valores solidos. Todos gostamos de pensar que Hitler e o nazismo são "absolutamente" maus. Mas é um erro de método. Eis, apenas, a tese defendida pelo relativsimo.

A tua reacção, ao pressupor inconscientemente que um padrão comum deve ser universal, é alias sintomatica da dificuldade que pretendo denunciar. Todos nos, todos os dias, regemo-nos por padrões comuns "relativos", e não "universais". Isto não impede que eles sejam "relativamente" bons (por isso a eles aderimos). Alias, levemos a provocação mais longe ainda : como é que se chama o impeto que nos leva a querer por força que as nossas convicções morais mais intimas sejam absolutamente universais ? Não tera nada a ver, precisamente, com algo de "religioso" ?

Um abraço.