25/08/16

Acerca do arrependimento

Confesso que quando olhei para a edição do passado domingo do Público e li a manchete da entrevista a Catarina Martins fiquei desconfiado que se tratava de uma de duas coisas: uma declaração politicamente incompetente ou, hipotese mais forte, uma manchete criativa e eventualmente  infiel ao afirmado pela entrevistada. Li e reli a entrevista - a parte não pessoal, que não me interessa sobremaneira - e devo confessar que achei o título muito ajustado ao conteudo da entrevista. A entrevistada mostrou o seu arrependimento, quase diário, por ter viabilizado a geringonça. Esse arrependimento é depois atenuado e anuladas as suas - desastrosas, digo eu - consequências pela consciência de que os dois objectivos perseguidos pelo Bloco estão a ser cumpridos:  travar o empobrecimento do país e afastar a direita do governo.
Não percebi a lógica da entrevista. A menos que a líder do Bloco tivesse sentido necessidade de mostrar distanciamento do PS, e das trapalhadas que estão a marcar -em demasia - a governação. Todos sabemos que a geringonça apenas foi possível por um conjunto de circunstâncias que a colocaram como uma inevitabilidade. Todos sabemos que nenhum dos participantes a desejava. Todos sabemos que apenas sectores minoritários em cada um dos partidos a desejava. Todos sabemos que os eleitores que a viabilizaram apenas lamentam que a geringonça não seja dirigida a três mãos, em vez de ter apenas e só António Costa no comando. Todos vamos percebendo que a travagem do empobrecimento do país, sendo real, fica muito aquém do necessário e do desejável. Todos vamos percebendo que não ter integrado o Governo foi uma solução péssima e que daí não resulta nada de bom para a qualidade da democracia e para o futuro dos portugueses.
Entretanto passados uns dias a entrevista voltou à tona, pela pena de JV Malheiros, que reflectindo sobre o jornalismo -amplamente dominado pela direita do pensamento único e defensor da liberalização/austeridade - acusava o jornal de ter escolhido um título que não prestava homenagem ao pensamento e às declarações de Catarina Martins. Fui ler a entrevista outra vez. Não percebi essa contradição entre as opções editoriais e as declarações da líder bloquista.
Entretanto, a própria sentiu necessidade de vir a terreiro defender-se dos  mal entendidos que a sua declaração suscitou. Fê-lo mantendo no essencial a declaração anterior e identificando-a com a seriedade politica que a caracteriza. "O arrependimento basear-se-á " nas dificuldades de um trabalho de maioria com partidos que têm divergências conhecidas", disse ela.
Não entendo este arrependimento. Julgo que a generalidade dos que, como eu, contribuiram com o seu voto para tornar possível a geringonça, não percebem este tipo de declarações. Recorde-se que estamos perante um Governo que resultou, como escrevi na altura, de uma vontade imensa e de um programa mínimo. Um Governo que pecou desde o ínicio pelo facto de o BE e o PCP se colocarem  fora da governação.
Face ao que se tem passado ao longo destes meses este deveria ser o arrependimento que deveria ser agora exibido.Arrependimento por não ter sido capaz de expandir o acordo, alargando os seus horizontes.  Até porque, como Catarina deveria saber, o melhor dos dois mundos não existe na politica concreta: estar firmemente envolvido no apoio ao Governo  e, ao mesmo tempo, confortavelmente na oposição, nem nas mais alucinantes comédias dos Monthy Python.






2 comentários:

Niet disse...

Corajosa análise de J.Guinote,que colocou as questões justas. De qualquer modo, fiquei agradavelmente surpreendido com a subtileza e moderação enunciadas por Catarina Martins... Um pensamento de Rosa Luxemburg: " A realização do Socialismo por uma minoria está excluida à partida, porque, justamente, a ideia do socialismo exclui a dominação de uma minoria ". Acrescentando Rosa,minoria governamental ou maioria alargada, está sempre obrigada, quer o queira ou iluda, em "cumprir as funções que exigem, a todo o momento, a conservação e actividade regular da máquina do Estado - em cada patamar do governo - isto é, a não ser de facto socialista -pelo menos,nos limites da acção governamental ". Salut! Niet

Niet disse...

Referências dos textos de Rosa Luxemburg: Infelizmente só localizei muito tarde a " Crise da Social Democracia( 1015), no labirinto da minha biblioteca.Trata-se de um texto pujante e na onda do "sonho leninista" renegado em blitz em 1918, " O Estado e a Revolução " ou melhor,talvez, o equivalente do grande texto politico sobre a " Revolução Traida", de Leon Trotsky. E era importante também ter citado " A critica dos criticos( 1013)". Fiquei-me pelos textos " Blanquismo e social democracia " e " Questões de táctica ", ambos de 1906. É indispensável ler...Niet