12/10/17
Soberania?
por
Miguel Serras Pereira
Através da página do Zé Neves no fb, cheguei a um artigo de Wallerstein sobre as ambiguidades do conceito de soberania. Ora bem, o artigo é claro, mas o verdadeiro problema não está na incerteza do conceito de soberania (bem demonstrada, de resto). O verdadeiro problema está na oposição que devemos estabelecer entre soberania e democracia. A democracia é o poder, igualitariamente participado, dos cidadãos comuns sobre as condições da sua existência comum. Não tem a ver com a independência nacional e, mais ainda, sendo um poder alternativo e contrário ao do Estado, terá de combater desde o início a divisão (social) do trabalho político que é própria do Estado-nação. Assim, poderia talvez falar-se de "soberania" democrática dos cidadãos. Mas não creio que isso nos leve muito longe, uma vez que, não havendo soberano sem súbditos, parece um tanto contraditório e equívoco falar de soberania democrática. É certo que a cidadania governante que caracteriza a democracia pressupõe que os cidadãos saibam governar-se e ser governados por si próprios. Simplesmente, é evidente que estaremos a falar assim de uma forma de governo que exclui a divisão — ou, se se quiser, a existência — de soberanos e súbditos.
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6 comentários:
Ola Miguel,
E' sempre possivel pôr em causa a terminologia habitual, sobretudo se ganharmos com isso em clareza e discernimento, mas creio que ha aqui um erro conceptual. A soberania não pressupõe subditos e é possivel, e mesmo bastante comum, encontrarmos uma concepção "democratica" da soberania, a chamada "soberania popular" que esta implicita no artigo 3° da nossa constituição ("A soberania, una e indivisivel, reside no povo, que a exerce segundo as formas previstas na Constituição"). Esta "soberania" é de resto inteiramente compativel com a ideia de que, se uma parte do povo quiser fazer secessão, passa-se para outra ordem constitucional (o povo pode sempre mudar a constituição), e também com a ideia de que é possivel delegar poderes a nivel supranacional, desde que isso seja decidido em conformidade com a constituição e com a lei (de resto, a nossa constituição afirma reger-se também pelo direito internacional geral ou comum).
O que acontece é que a soberania de uma colectividade politica - que se confunde com a sua independência - é também um dos atributos do Estado na ordem internacional, que hoje é uma comunidade de Estados "soberanos". Para quem acredita que os Estados vão tendencialmente reger-se cada vez mais pelo principio da legalidade democratica, a regra do respeito da soberania estatal (na ordem internacional) tende, idealmente, para um horizonte democratico, uma vez que cada Estado exprime (em teoria) as aspirações do seu povo. Isto é inteiramente compativel com o exercicio conjunto de poderes soberanos para reger a ordem internacional (por exemplo atravês do sistema das NU). E é também compativel com o respeito do principio de auto-determinação dos povos, que é alias um dos raros direitos que gozam hoje de um reconhecimento quase unânime e relativamente pacifico (de jure), sendo consagrado por inumeros tratados internacionais.
Portanto a ideia de "soberania" não tem necessariamente de se identificar com a época absolutista em que nasceu. Hoje, apenas remete para o poder de decisão e de autodeterminação inerente à independência "estadual" ou "nacional", o que pode ser considerado como um facto objectivo (não existem instituições supra ou infra nacionais, por enquanto, com verdadeira autonomia). Ninguém diz que a situação não pode evoluir no sentido de um melhor equilibrio entre os poderes "locais", "regionais", "nacionais" e "internacionais", mas trabalhar neste sentido não me parece possivel se olvidarmos que, hoje, os poderes "democraticos", pelo menos conceptualmente, exercem-se primariamente a nivel "nacional", por razões historicas, e talvez economicas, que podem estar a desaparacer progressivamente, mas qua ainda são bem vivas.
Os abusos retoricos do conceito de "soberania" têm a ver com a sempiterna questão da complexidade do conceito de "autonomia" (na medida em que se traduz por um poder, deve poder impor-se, mas esta "imposição" é supostamente fundada no exercicio da liberdade, etc., etc.). Se a terminolgia mudasse e deixassemos de falar de soberania, os mesmos discursos demagogicos apareceriam, usando as ideias de "democracia", de "independência", de "liberdade", etc.
O que dizem os Trumps e muitos quejandos é :
- Eu fui eleito democraticamente para "representar" o eleitor do Texas (Trasmontano, etc.) e garantir que ele exerce o seu poder de cidadão
- Logo, "posso" legitimamente estar-me nas tintas para os interesses do Chinês (Mexicano, etc.)
Infelizmente, de um ponto de vista retorico, isso é incontestavel. E' como a liberdade de ser estupido. Trata-se de uma liberdade sagrada e absoluta. Seria vão procurar nega-lo. A questão é mais saber se ganha em ser exercida...
Um abraço soberano (mas não soberanista)
Viva, João. Muitas das tuas previsões são, sem dúvida, pertinentes. Mas creio que, por culpa minha decerto, o propósito central da minha nota te escapou. Tratava-se de denunciar a exaltação do conceito de soberania enquanto exaltação da "liberdade do Estado" enquanto — como Marx dizia — era inversamente proporcional à liberdade dos cidadãos. Acrescento que, por "Estado", entendo, não qualquer comunidade política minimamente organizada, mas uma forma de poder assente na divisão estrutural e permanente entre governantes e governados — uma divisão do trabalho político solidária da desigualdade classista e geradora dessa desigualdade.
Abraço
miguel (sp)
Ola Miguel,
E' provavel que algo me tenha escapado, quanto mais não seja porque não li o que diz o Zé Neves (não tenho facebook). Mas olha que o conceito é o mesmo. O Estado exerce a "soberania" em nome do povo e entre os orgãos de soberania encontram-se também os tribunais, que julgam em nome do povo, defendendo (teoricamente) as pessoas contra os abusos, incluindo os cometidos pelo Estado.
No fundo, a soberania não exprime muito mais do que a velha ideia de jus imperii, ou de poder publico (por contraposição ao poder "privado", que originalmente, em Roma, significava apenas "privado do apoio da força publica"). A existência de um poder "publico" é justificada pela necessidade de impor soluções em nome do interesse colectivo (por exemplo nos serviços publicos). A moderna "soberania" apenas representa a concentração (de mérito discutivel) desta força nas mãos de um "Soberano"/Estado. E' certo que esta concentração acarreta o risco de abusos, e por isso hoje os Estados "democraticos" proclamam que a raiz da soberania esta no povo, e dizem subordinar-se ao "Direito".
Mas a total ausência de jus imperii, de poderes publicos, ou de "soberania" vai por sua vez dificultar, e talvez mesmo impedir, a realização de objectivos colectivos tais como a redistribuição, ou a correcção das desigualdades entre os cidadãos, ou (melhor dizendo) vai deixa-la apenas ao critério e à discrição de cada um, que é o mesmo que dizer à iniciativa e ao capricho do mais forte.
Abraço
João, sim, tudo bem. O problema que eu ponho é o da natureza hierárquica das relações que sustentam, no Estado, o "poder público", tornando-o menos igualitário e, nesse sentido, menos "público", do que pressupõe o exercício pelos cidadãos comuns do poder político democrático. É diferente que os cidadãos se dividam entre governantes e governados ou que sejam,enquanto cidadãos, governantes ao mesmo tempo que governados. Quanto às ambiguidades do conceito de soberania, o texto do I. Wallerstein (que o Zé Neves se limitou a pôr no seu mural, sem lhe acrescentar comentários da sua lavra) não te merecerá grandes objecções. Tu tendes talvez a adoptá-lo numa versão mais precisa e pondo de lado, para esse efeito, o seu lastro histórico, que, no entanto, não ignoras. Finalmente, quanto a mim, não confundo a participação igualitária de cada nas deliberações e decisões colectivas que se referem a todos com o capricho individual deste ou daquele — ou com a resultante da totalidade dos caprichos individuais.
Abraço
miguel(sp)
Ola de novo,
Concordo com tudo, claro. Estou so a pensar em voz alta e a constatar que, ironicamente, a nossa conversa evoca-me um exemplo emblematico de perversão da divisão entre "governantes" e "governados". E esta perversão, no caso, não é devida a abusos de autoridade, mas apenas a alienação burocratica.
O que eu vejo, é que as tuas interrogações sobre o conceito de "soberania" e os seus limites são muito proximas de questões que se discutem nas altas esferas quando se preparam decisões politicas da maxima importância. Para não ir mais longe, a questão de saber se se justifica, e até que ponto, que o poder "soberano" enquadre e dirija a produção de bens e serviços de utilidade geral, tais como a electricidade, o abastecimento de aguas, a recolha de lixos, os correios, os transportes, a saude, a propria educação, etc. são debatidos entre tecnocratas que procuram definir (e delimitar) a ideia de "serviço publico". No fundo, as questões envolvidas, muito longe de serem técnicas, têm precisamente a ver com as tuas preocupações : sera legitimo impôr limitações (aceitando a acção de um poder exorbitante em nome do interess publico) para obter uma melhor repartição (ou mais justiça social, territorial, etc.), ou devemos antes deixar a liberdade operar e respeita-la inteiramente ? Até que ponto ? Com que garantias, etc.
No entanto, quando estas questões são realmente debatidas, em vez de o ser entre representantes de todos os quadrantes, de forma aberta, de maneira a que todos possam formar a sua opinião e fazer ouvir a sua voz, são-no entre "técnicos" que representam a 95 % uma opinião que julgam proceder da ciência. Porque é que isto acontece ? Não porque o segredo seja imposto, mas porque na hora H ninguém esta la (a não ser os lobbies das grandes empresas, com pessoas que obedecem às mesmas carcateristicas)). Porque os sindicatos, as associações de consumidores, etc. não estão atentas, não têm meios, ou então não têm a devida audiência junto do publico...
Portanto temos um paradoxo : por um lado, os cidadãos, atravês da chamada "sociedade civil" (e não so), aparentam querer cada vez mais uma participação efectiva no processo de decisão ; por outro, quando se trata de participação concreta, responsavel, consequente, ja são praticamente invisiveis e inaudiveis. Tudo se passa como se a força publica, a tal "soberania", estivesse condenada a ficar paralisada pela sua força de inércia.
E o pior é que este problema é precisamente uma das razões da grande audiência de que gozam hoje as teses ditas "neo-liberais". As pessoas deixaram em grande parte de acreditar nas virtudes da acção colectiva, ou publica, e de ter a noção de que a igualdade, e as suas virtudes, têm um preço que merece ser pago, pelo menos até certo ponto.
Bom, desviei um pouco. E' como digo, estou so a pensar em voz alta...
Abraços
Caríssimo, ora bem, pensando também em voz alta e deixando de parte o tema inicial da nossa discussão, eu diria que, justamente, "pensar em voz alta" e, também, "pensar para consigo" é um hábito e/ou uma aprendizagem que a formação do cidadão democrático não pode dispensar. O facto de a filosofia, como exigência ao mesmo tempo íntima e pública de dar conta e razão do que se diz em voz alta ou de si para si, ter nascido ao mesmo tempo que a democracia, como reconhecimento da responsabilidade de nos darmos enquanto cidadãos a nossa própria lei e comum — esse facto é mais do que um feliz acaso. E há mais: o elemento filosófico da reflexão e da exigência de dar conta e razão é condição necessária da construção social e da criação histórica da cidadania como condição daqueles que só reconhecem como legítimo um governo em cujas deliberações e decisões participem. É a esta luz creio que boa parte dos problemas que levantas devem ser reexaminados hoje — e oxalá não seja tarde demais — em novos termos.
Abraço
miguel (sp)
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