O parecer da Procuradoria Geral da República vai muito mais longe do que simplesmente limitar a atual greve dos enfermeiros.
Na prática vai limitar fortemente greves rotativas e o recurso a fundos de greve, e também abrir caminho a que trabalhadores em greves prolongadas possam ter que pagar à entidade patronal muito mais do que apenas o ordenado dos dias que fizeram greve - no fundo, está-se a caminhar na direção de o único tipo de greve aceitável serem as greves à CGTP ("grande jornada de luta no dia 22!"): greves simbólicas de um dia, eventualmente acompanhadas de uma manifestação.
Sobretudo, a avaliar pelas notícias, o argumento contra o crowdfundig parece-me entre o idiota e o perigoso: « “a ausência de regras no nosso ordenamento jurídico” que regulem a concessão de donativos às associações sindicais e a constituição de fundos de greves» e «Nesta parte, pode vir ainda a apurar-se que há donativos ilícitos, frisa-se, lembrando que isto pode também provocar a ilicitude da greve.»; o que foi feito do "inocente até prova em contrário" (ou isso é só para ex-primeiros-ministros?) ou até do "o que não é proibido é permitido" (pelos vistos, os sindicatos só poderiam recolher dinheiro via crowdfundig se houve uma lei a dizer mesmo que podem fazer isso), que costumam ser regras numa sociedade livre?
Penso que nunca o governo do Passos Coelho tentou tal coisa - restringir o direito à greve.
Se não fosse o governo já estar no fim, acho que seria motivo para o Bloco retirar o seu apoio (do PCP não há muito a esperar, porque os sindicatos tradicionais, por este largamente controlados, também são contra greves a sério) - alguém imaginaria o Socialist Workers Party ou o Revolutionary Communist Party of Britain (Marxist–Leninist) a apoiarem as políticas anti-liberdade sindical dos governos de Margaret Thatcher?
Não sendo viável deitar abaixo o governo nesta altura do campeonato, ao menos algum partido ou deputado da esquerda que apresentasse uma proposta de lei que acabasse com os "vazios legais" que o governo e a PGR estão a tentar usar (mas não tenho esperanças disso - como disse, isso quase só poderia vir do Bloco de Esquerda, mas pelo menos algumas figuras de topo do BE também se colaram à campanha contra a greve dos enfermeiros).
Adenda: a ideia que eu tenho é que o Ministério Público (de que a Procuradoria-Geral é o topo) é uma espécie de "advogado de acusação" do Estado; que deveria decidir se greves eram ilegais ou legais não deveriam ser os tribunais?
19/02/19
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3 comentários:
Oh! Miguel, não seria mais fácil enviar, cirurgicamente, os doentes para o corredor da morte em nome de um procedimento que configura um atentado à Lei da Greve ?
João Pedro
Cada vez entendo menos este blogue, que parece ignorar olimpicamente a natureza claramente terrorista de uma greve com as características que esta tem assumido, de pura terra queimada, sem o menor respeito pela vida e a saúde dos doentes, com o único objectivo político de causar os maiores embaraços ao governo. Isto da parte de uma classe que passou os terríveis da Troika sem piar.
E ainda branqueando, por omissão, a anomalia de uma Bastonária de uma Ordem se ter erigido em mentora e dinamizadora de uma greve!
Francamente, senhor Madeira, chegar ao ponto de elogiar Passos, o homem que jurou ir além da Troika, que convidou os portugueses a emigrar, saindo a sua zona de conforto (conforto?), que mesmo nas últimas eleições prometeu cortar à cabeça 600 milhões na Segurança Social, isto depois de, em 2012, ter querido transferir os encargos sociais do patronato para os trabalhadores, desculpe mas não entendo. Ou o blogue passou a ser para esquecer como obra de um conjunto de gente de esquerda? Algo de estranho por aqui passa.
Miguel Madeira.
Achei este seu texto muito pertinente e transcrevi-o no meu blog aparenciasdoreal@blogspot.com
Como era de esperar, os efeitos da greve dos enfermeiros ainda estão começando a fazer sentir-se. O comentador de serviço diário que ocupa a presidência da república já lançou os avisos necessários aos sindicatos para que se cuidem. E a campanha mediática do governo acerca desta greve e da requisição civil que contra ela ilegalmente decretou e do acórdão do tribunal administrativo que rejeitou o recurso sindical que pretendia suspendê-la, estão atingindo um nível tal de deturpação dos factos e de manipulação que não prenuncia um futuro nada promissor para o direito de greve.
Isto não surpreende, porque o PS tem sido o motor do ataque aos direitos que os trabalhadores conquistaram nos dois anos a seguir ao 25 de Abril de 1974. Lembremo-nos do lançamento da Carta Aberta e da criação da central sindical amarela que acode por UGT, visando destruir o movimento sindical unitário, e das alterações mais gravosas da legislação laboral. Porque como também é sabido “quem se mete com o PS leva”. E sob a direcção deste Tó da Costa do Malabar, a coisa está fiando fino. O artista não olha a meios (lembremo-nos de quando foi ministro da Justiça nos tempos do escândalo Casa Pia e de como chegou à chefia do partido) para atingir os seus fins.
O mais vergonhoso deste estado de coisas é a posição dos partidos ditos de esquerda BE e PCP que ajudaram a formar o governo do PS e lhe têm dado cobertura nestes quase quatro anos. Além de não apoiarem a greve dos enfermeiros ainda embarcaram na campanha mediática difamatória desta classe profissional fomentada pelo governo. Uma situação insólita. Mas também não de todo surpreendente, porque estes dois partidos estarão esperando um pouco mais do rescaldo eleitoral para se sentarem à mesa do orçamento.
Hoje, no fórum da TSF, ouvi as intervenções do advogado dos sindicatos dos enfermeiros, Garcia Pereira, e do secretário-geral da CGTP, Arménio Carlos. Um abismo de conhecimento jurídico e de clarividência política entre as posições de um e do outro, e também a denúncia clara da actuação ilegal do governo em todo o processo da greve e dos comentários infundados e dos recados a que se atreveu o presidente comentador populista de direita, por parte do advogado Garcia Pereira, e um notório comprometimento com o governo geringonço, por parte do secretário-geral Arménio Carlos, que apenas “não acompanha esta posição do sr. presidente da república”.
Uma tristeza, reveladora dos tempos conturbados que correm…
JMC.
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