21/06/10

O camarada Galileu

Mesmo o que parece fixo se move. Admirou-me, aprendi e gostei ao ver aqueles militantes de antes quebrar que torcer a chamarem-lhe camarada no adeus a Saramago. O mesmo camarada que, pouco antes de 89, proclamou publicamente, numa Feira do Livro de Frankfurt, a necessidade da ditadura checoslovaca de então libertar Vaclav Havel da prisão; que foi empurrado para fora da presidência da Assembleia Municipal de Lisboa quando dissidiu; que disse a Fidel, perante a sua orgia senil de repressão, que deixava de ser seu companheiro de jornadas; que repudiou a fraternidade com as FARC; que apoiou Zapatero e António Costa nas suas apostas eleitorais; que foi solidário com Garzón. Ali, um camarada Nobel não sofre a erosão do carinho militante, enquanto fôr património. Saramago foi uma espécie de camarada Galileu. Portanto: “contudo, move-se”.

(publicado também aqui)

4 comentários:

Anónimo disse...

Excelente e devastador post, parabéns João Tunes.
Se me permite, creio que a lista de feitos político-partidários de Saramago de Saramago
está incompleta.
É que foi esquecido que, sobre os «renovadores» do PCP de 2000,
ele enxovalhou-os até mais não por comparação com o tom contido e medido das posições do PCP.

João Tunes disse...

A lista foi feita de memória, sem googlar. Seria sempre incompleta mas julgo que chega, chega até muito bem. Mas as achegas, cvlaro, são sempre bem recebidas. É o caso.

João Valente Aguiar disse...

Então explique lá porque Saramago se manteve sempre no PCP até ao final da sua vida, foi sempre candidato do PCP ao Parlamento Europeu desde a década de 80 até 2009, porque saudou efusivamente os construtores da Festa do Avante (e o seu Partido) em 2008, etc.? É verdade que ninguém pode dizer que ele era uma pessoa comprometida com todas as tomadas de posição do PCP. Sempre tomou as suas posições ao sabor do que lhe dava na tola: ora criticava (e bem) a política genocida de Israel, ora dizia barbaridades sobre as FARC. Mas o facto inquestionável é que, para além de um escritor genial, foi militante do PCP até ao fim. Para um Prémio Nobel, ainda por cima constantemente assediado para participar em eventos com realezas europeias, aristocratas e burgueses, é inquestionável que Saramago sempre se reivindicou como comunista. Ou seja, para um Prémio Nobel que mais "facilmente" se poderia deixar levar pelo status quo, a verdade é que ele continuou no seu Partido de sempre. Mas o "facilmente" só funciona para quem não tem carácter e acharia que um Prémio Nobel teria vergonha em se afirmar como comunista. E nisso, como até o próprio José Neves (que está mto longe de ser comunista e com quem eu mto raramente concordo) escreveu basicamente o mesmo: Saramago foi um grande escritor e, a não esquecer, comunista. O resto é conversa de um escribazito doente e obcecado em dizer mal do PCP.

João Tunes disse...

Ó senhor navegador Valente (e, provavelmente, Imortal), ao chamar-me "escribazito" tem toda a razão. Quanto ao "doente", é verdade que lido com achaques vários, frutos da idade. Mas "obcecado", olhe que não, antes não intimidado com tabus e sacristias. Quanto ao "Então explique lá", já tem um lastro pidesco disfarçado de autoritarismo de radicalidade pequeno-burguesa de fachada socialista, que não merece resposta.