Algumas cabeças mais recidivamente obtusas da nossa direita continuam a queixar-se de uma perseguição "moralista" ao pobre Berlusconi. Para deixar claro que não estão em causa nem moralismos nem escusadas devassas da vida privada do homem, relembre-se que foi o seu governo que há pouco endureceu de forma significativa as leis relativas à prostituição. Isto sim é moralismo de fachada.
15/02/11
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18 comentários:
De acordo quanto ao fundo.
Mas noto que mais uma vez estamos a confundir "moral" com "pudibundo".
Continuo sem perceber porque é que a esquerda tem tanto medo da "moral". Ja ha muito tempo que esta se distingue do catecismo ! Penso que hoje em dia é pacifico que a liberdade individual, que implica nomeadamente a liberdade nos comportamentos sexuais, é uma regra basica que so uma minoria contesta. Uma regra MORAL, diga-se, antes de ser uma regra politica e uma regra juridica...
O que tu queres dizer, não é que a contestação seja alheia a argumentos morais, mas que esses argumentos nada têm a ver com uma censura pelo facto de Berlusconi ter relações sexuais com quem bem lhe apetece.
Não é ESTA (pseudo) regra moral que esta em causa.
Mas o que esta em causa não deixa por isso de ser uma regra, ou um conjunto de regras "morais". A censura que recai sobre o abuso de funções, sobre a mistura das esferas publica e privada (e dos respectivos poderes), a hipocrisia politica, tudo isso é censuravel por ser imoral. Qual é o problema em admiti-lo ? Estaremos com isso a pôr em causa a liberdade individual (que presumo que seja o que têm em mente os que protestam contra o "moralismo") ?
As consequências de vacilarmos nesse ponto, que devia ser simples, são incalculaveis. E os tristes Berlusconis deste mundo sabem-no muito bem...
João, além de assinar por baixo o seu comentário, acrescento apenas que libertinagem com menores é uma coisa que me chateia e em relação à qual tenho convicções morais profundas.
Sim, o "com quem bem lhe apetece" ficou um bocado curto e deve entender-se "desde que isso seja livremente consentido", o que no caso de menores é, no minimo, problematico...
O que eu quis dizer é que o anatema lançado contra o "moralismo" assenta (quase sempre) numa falacia e que muitas vezes caimos na esparrela por não termos as ideias claras a esse respeito.
Ana e João,
esperemos que o Luis venha aqui prêter main forte ao amassar do pão que o vosso échange deixa para amassar.
A mim, parece-me que é uma identficação precipitada da moral com o individualismo que preside à desconfiança da esquerda politicamente correcta perante a segunda.
O que se escamteia assim é o facto, que devia entrar pelos olhos dentro, de que é toda uma instituição global da sociedade que instaura, investe e valoriza, forma ou cria um domínio que é prioritariamente o da consciência individual ou (o que vem a dar no mesmo) da intersubjectividade entre consciências - ao mesmo tempo que forma e socializa os indivíduos exigindo-lhes que sejam portadores e agentes de uma capacidade de juízo "íntima" ou de pensamento pela própria cabeça, de uma atitude reflexiva sui generis, que implica a interlocução de cada um consigo enquanto age e comunica com os outros, tornando a autonomia moral do indivíduo condição e elemento do regime de participação no comum (convivial, social, etc.) que pressupõe a presença de um indivíduo autónomo em cada um dos seus membros (cidadãos).
E, do mesmo modo, que o cidadão é uma criação social-histórica original e não uma invariante antropológica ou natural, também a "autenticidade" individual ou a capacidade de formulação de juízos morais autónomos não são investidas positivamente ou estipuladas como "bens" por quaisquer leis ou automatismos antropológicos ou naturais.
Saltando aqui alguns importantes passos intermédios, mas que vocês poderão restituir facilmente, eu concluiria aprovando o que o João diz e adiantaria a conclusão de que temos aqui um círculo virtuoso: o desenvolvimento e educação da capacidade de autonomia moral do indivíduo é condição da figura política e tendencialmente democrática do cidadão, do mesmo modo que esta última figura, com os seus direitos políticos instituintes, é a garantia última ao nosso alcance (garantia absoluta não temos) da liberdade de consciência indispensável ao exercício da autonomia moral de cada indivíduo singular.
Ou não?
msp
Miguel, acho que percebi tudo o que disseste mas eu prefiro sempre a literatura. Para mim, a desconfiança, ou a falta de à-vontade, em relação ao conceito de Moral, conduz-nos simplesmente a isto, por muito que se inventem justificações teóricas ou atenuantes ideológicas. Cito Cormac:
“Há uns tempos li nos jornais que um grupo de professores encontrou por acaso um inquérito que foi enviado nos anos trinta a um certo número de escolas de todo o país. Incluía um questionário sobre quais os problemas mais graves que aconteciam nas escolas. E encontraram também os formulários de respostas, que tinham sido preenchidos e devolvidos dos quatro cantos do país. E os problemas mais graves que os professores apontavam eram coisas como conversar nas aulas e correr pelos corredores. Mascar pastilha elástica. Copiar os trabalhos de casa. Coisas desse género. Então eles policopiaram uma data de exemplares e enviaram-nos para as mesmas escolas. Passados quarenta anos. Bom, algum tempo depois receberam as respostas. Violações, fogo posto, homicídio. Drogas. Suicídios. E eu ponho-me a pensar nisto. Porque muitas das vezes que eu digo que o mundo está a ir direitinho para o Inferno ou alguma coisa do género, as pessoas limitam-se a fazer-me um sorriso e dizem-me que eu estou a ficar velho. Que este é um dos sintomas. Mas cá no meu entender, se alguém não vê a diferença entre violar e assassinar pessoas e mascar pastilha elástica é porque tem um problema muito mais grave do que o meu. Quarenta anos também não é assim tanto tempo. Talvez os próximos quarenta anos façam acordar algumas pessoas da anestesia em que caíram. Se não for demasiado tarde.” (in Este País não É para Velhos)
E vamos deixar de lado que o facto de uma certa esquerda lidar mal com o conceito, enquanto outra se afunda num moralismo politicamente correcto e rançoso, tem dado trunfos à direita que, ao contrário do que muita gente pensa, não é parva e, muitas vezes, absolutamente amoral.
Olá,
Subscrevo o que vocês dizem, claro.
Tentando (não sei se conseguindo) ser mais simples, eu diria que na esmagadora parte das vezes em que ouvimos bradar contra o « moralismo » a acusação está mal formulada (às vezes propositadamente) e o que os críticos procuram atingir é um « preconceito », ou seja uma convicção moral que tende a ser imposta sem deliberação.
De facto, caro Miguel, julgo que assim acontece por causa do individualismo reinante, de que derivam a sacralização da liberdade individual e os seus corolários, entre os quais a ideia de que as convicções morais se localizam no reduto mais recôndito da consciência e que, por esse motivo, seria perigoso pedir ao indivíduo que preste contas a este respeito (as raízes religiosas desta ideia são conhecidas).
Esta sacralização impede-nos de ver que o respeito da liberdade individual é, também ele, uma regra moral, cujo fundamento e cujos limites devem poder ser debatidos à luz da razão. Ou seja, o que nos faz temer a imposição de preconceitos é, na raiz, também um preconceito, que muitas vezes nos paralisa e tem efeitos contraproducentes. Voltamos à pseudo-dificuldade bem conhecida : quem admite que a liberdade individual tem limites não está a pôr em causa essa liberdade, está antes pelo contrário a delinear o espaço de que ela precisa para existir…
Descendo à terra, de um ponto de vista prático, o que eu constato é que na esmagadora maioria dos casos, o progresso, e todos nós, ganhamos em debater moralmente acerca das questões morais (e todas as questões políticas são questões morais), em vez de recusar fazê-lo a pretexto da protecção das « liberdades » (muitas vezes vazias, outras vezes meros artifícios servindo para encobrir a ilegitimidade de poderes arbitrários). O exemplo paradigmático, a este respeito, é o caso do referendo sobre o aborto em Portugal. O resultado foi alcançado porque ninguém fugiu ao debate moral, virando-se assim o feitiço contra o feiticeiro (« estão aos gritos a dizer que a despenalização é imoral ? Ora bem, vamos lá ver de perto essa vossa moral e debater a sério… »).
continua...
continuação do comentario anterior :
Na medida em que esquerda assenta, do meu ponto de vista, numa exigência fundamental de plena realização, material e concreta, dos princípios que cimentam a sociedade e que a dinamizam, ela não pode ter medo da moral, e deve mesmo lembrar constantemente que o combate em favor da protecção das liberdades só tem sentido na medida em que é, e continua a ser, moral. Ninguém combate eficazmente a má moral, se não aceita combater no terreno onde ela se esconde, que é o da moral…
Para não ir mais longe, o texto citado pela Ana Cristina inspira-me as seguintes reflexões, que julgo serem morais :
1. Se podemos ter algumas certezas em relação às mudanças que ocorreram nas nossas sociedades nos últimos quarenta anos, elas dizem respeito ao grau de permeabilização da escola em relação à sociedade, e não à evolução dos comportamentos violentos ou antosociais.
2. Ninguém ignora, ou menospreza a diferença de gravidade entre uma violação (ou um assassínio) e mascar pastilha elástica, pelo que o sorriso dos colegas do autor não me parece ser de incompreensão. Melhor dizendo, parece-me ser antes um reflexo, de facto preocupante (mas não pela razão que diz o autor) da incompreensão suscitada por esse tipo de inquéritos. De facto, não fazermos a mais pálida ideia do que eles significam, e ainda assim continuarmos a encomendá-los e a comentá-los sem nos prestarmos ao esforço mínimo de elucidação e de inteligência que eles deviam encorajar, eis o que é preocupante.
3. Se em vez de nos comprazermos na leitura dos jornais levássemos mais a sério o nosso interesse mórbido pelos « faits divers », a ponto por exemplo de abrir um manual de criminologia (o que é bastante mais acessível do que ler Agamben) veríamos que não sabemos rigorosamente nada acerca da evolução da violência nos últimos quarenta anos, a não ser talvez umas generalidades ocas sobre nós próprios, como seja o facto de envelhecermos.
4. Quanto ao que se passa na escola, embora também nessa matéria impere a irracionalidade, penso que não existe questão mais importante, politicamente, economicamente e, logo, moralmente. Não existe hoje consenso maior do que o que nos manda operar a redistribuição dos bens atravês da escola. Mas isso não impede que encaremos sem grandes dificuldades a perspectiva que ela fracasse na sua missão. Onde está a coerência ?
5. Não procurem mais, a coerência está na cruzada contra o « moralismo », situação confortável em que eu sou perfeitamente « livre » de roubar aos filhos dos outros para dar aos meus, já que ninguém tem pretensamente o « direito » de se imiscuir na maneira como educo os meus rebentos. O dever de me prestar auxílio, não digo que não, agora o « direito » de exigir alguma coisa de mim, ‘tá quieto !
Abraços aos dois (e também ao autor do post).
Caríssimos (de novo)
A questão moral não é nada fácil, digo eu, e daria pano para vários casacos.
Permitam-me apenas uma achega. A mim apenas me faz espécie que depois de Auschwitz (usado aqui na qualidade de facto histórico e de metáfora) se continue a tratar do problema com a leveza de um chá das 5.
Lévinas traduziu bem o problema qd escreveu: «A questão metafísica primordial já não é a de Leibniz, de saber porque existe algo em vez de nada, mas porque existe mal em vez de bem.»
E David Rousset traduziu-o em palavras ainda mais simples: «os homens normais não sabem que tudo é possível».
O escritor Cormac McCarthy não trata de outra coisa nos seus livros.
Eu, que sobre o tema apenas tenho intuições, acho que se nos recusarmos, por muito pouco que saibamos sobre o assunto, a encarar de frente o facto que mascar pastilha elástica já foi chão que deu uvas (e que assistimos a um salto moralmente catastrófico nos comportamentos - roubando o conceito a René Thom)não só estamos lixados como andamos a lixar as gerações futuras.
Para finalizar este pequeno comentário, acrescento só que me cheira que existe um fundamento biológico para a moral (e que se não for assim, o melhor é fazermos as malas e ir para casa esperar, como dizia a duras, que le monde aille à sa perte).
Para roubar um exemplo citado pelo João - a questão do aborto. O problema de fundo, acho eu, é que por muito que se legisle sobre o assunto, no limite, do ponto de vista biológico é impossível obrigar uma mulher a ser mãe se ela se recusar a isso. Esse poder não lhe é conferido pelas leis nem pelo estado - é, simplesmente, fruto da sua condição biológica diversa da dos homens.
Porque qq outra fundamentção - é crime, não é crime, o embrião/feto é um ser vivo desde a concepção ou só a partir dos 3 meses, o embrião/feto será um ser vivo mas não sente dor nem tem consciência, etc., etc., etc. - cai por terra perante esse poder radical que a natureza atribuiu às mulheres. E, contra isso, meus caros camaradas de espécie, batatas!
Ola,
Pequeno eco ao comentario da Ana Cristina :
Nutro por Levina o imenso respeito que tenho para com todos os autores que não li, ou que li pouco, mas pela citação fiquei a saber uma coisa :
Se ele tivesse lido Leibniz com mais atenção, saberia que o mal não existe, combate-se, e que o que nos permite reconhecê-lo, alias, é precisamente o facto de o conseguirmos combater...
Les faits sont têtus.
(Este ultimo, sim, li com atenção, eu e todos os verdadeiros reformistas)...
Ana,
faço minhas as tuas preocupações e apreensões, subscrevo-as e sublinho-as, mas não me parece que a naturalização biológica da moral seja a melhor via para lhes dar mos resposta as considerarmos.
Não sei bem o que entendes por "fundamentos biológicos", mas parece-me que tanto a necessidade da moral como da política - e da própria cultura que corresponde ou decorre da instituição global de cada sociedade - começa porque não há fundamentos biológicos que nos poupem à necessidade de legislar. Ainda que, considerando a história no seu conjunto, descubramos que os humanos têm uma espécie de relutância em reconhecer que é isso que fazem - darem-se as suas próprias leis -, alijando em Deus, nas leis naturais, noutros mecanismos objectivos independentes da sua acção, a responsabilidade pelas leis e instituições que são obra sua.
Isto, em tese geral. Mas, passando a considerar o exemplo do direito à interrupção voluntária - por vontade individual - da gravidez, não me parece que a tua ideia dos "fundamentos biológicos" da sua justificação moral saia reforçada. A tua linha argumentativa, se bem a entendi, é mais ou menos a seguinte: a mulher está moralmente na posse do direito a abortar porque tem biologicamente esse poder. Digamos que, pela mesma ordem de ideias, os pais seriam moralmente titulares do direito ao infanticídio porque biologicamente a sobrevivência do filho está nas suas mãos. Se inflectires o argumento invocando que não é moral proibir a interrupção voluntária da gravidez, uma vez que esta, sendo uma realidade trans-histórica e, por assim dizer, "universal", é legitimada, não pela instituição, mas pela natureza, as coisas não melhoram: terás de admitir que o homicídio, também ele amplamente trans-histórico e universal, não deve ser proibido pela moral nem pelas leis, que, de resto, nunca lograram erradicá-lo, nem mais do que condicioná-lo ou limitá-lo.
Já quanto ao teu comentário anterior, sinto-me inclinado a concordar contigo sobre a ideia de que a literatura na esteira da tragédia ateniense e, depois, da "tradição de Cervantes", é moralmente mais inspiradora e formativa do que a subdisciplina da "filosofia moral". profissional ou académica. Mas não menos "filosófica" ou "reflexiva" do que ela - e, sim, pelo contrário, mais capaz do que ela de entabular esse convívio de cada um consigo num registo explícito, esse diálogo da alma consigo própria, que é ao mesmo tempo resultado e condição de uma cidade cujos usos e costumes são uma questão em aberto e em debate, em que consiste a invenção da filosofia. É que, tal como a política, enquanto "a mais arquitectónica das artes", excede largamente a "cena política" dominante e os seus profissionais e não se deixa definir também por qualquer "ciência política", assim, do mesmo modo, a melhor e mais efectiva filosofia transborda os manuais da disciplina e é fora deles que reencontra as suas encruzilhadas nascentes.
Não me parece que esgotemos o tema da conversa tão cedo - o que, de resto, seria moral e politicamente desastroso. Por isso, por agora aqui me fico, à espera de aqui ou noutro lado o discorrer continue.
Sumpnoia panta, meus amigos, sumpnoia panta...
Eu acho que o que a Ana Cristina quer dizer acerca do aborto é muito mais simples, e muito mais exacto, reconduzindo-se ao que eu digo que o Levinas devia ter lido em Leibniz e que, por acaso, também esta no Quixote (a seguir ao combate com o cavaleiro da branca lua) e provavelmente em muitos outros sitios...
E esta também na frase que volto a citar (desculpem ser em francês, mas não sei russo) :
LES FAITS SONT TETUS.
Não faz parte dos menores paradoxos da nossa cultura - literaria e filosofica - que quem reputa os factos cabeçudos seja um materialista. Com efeito, ja para os materialistas antigos a ambiguidade existia a esse respeito.
Cabeçudos pode também querer dizer que têm cabeça !!!
Ora bem, correndo o risco de ser redundante, volto a sublinha-lo, porque este é o ponto de partida de toda a reflexão moral, logo de toda a filosofia, mas também de toda a politica :
OS FACTOS SÃO CABECUDOS
Quando a esquerda compreender que a moral consiste, apenas, em reflectir a partir desse pressuposto, deixara de ficar burguesmente inibida perante a acusação de "moralismo"...
Não tenham medo, meus amigos, até porque contrariamente ao que se diz por ai, a "moral" não chegou por fax ao monte Sinai...
só para clarificar, porque esta é uma discussão interessante e importante para mim:
quando a ACL diz que a moral tem fundamentos biológicos não quereria dizer que a moral tem fundamentos biológico-sociais?
ou seja, quero com isto dizer que a moral seria um conjunto de regras que várias e variadas sociedades/tribos/clãs (plano social) foram instituindo ao longos dos anos como forma de assegurarem a sua sobrevivência (biológica?). Assim, comportamentos que fossem contrários ao desenvolvimento e prosperidade da sociedade em questão, como o assassínio ou o aborto, eram condenados e comportamentos que a tornassem mais "forte" eram reforçados. Obviamente que tudo isto fica mais complicado apartir do momento em que as narrativas utilizadas para transmitir estas regras passam a ser lidas literalmente e imbuídas de misticismo...
Olá a todos!
Em primeiro lugar, isto é uma chatice por causa do formato dos comentários em tripa. Uma pessoa só vê um bocadinho dos argumentos em cima da mesa e perde-se...
Tentando não me perder muito, avanço umas ideias, a partir deste comentário do Miguel.
A tua linha argumentativa, se bem a entendi, é mais ou menos a seguinte: a mulher está moralmente na posse do direito a abortar porque tem biologicamente esse poder. Digamos que, pela mesma ordem de ideias, os pais seriam moralmente titulares do direito ao infanticídio porque biologicamente a sobrevivência do filho está nas suas mãos. Se inflectires o argumento invocando que não é moral proibir a interrupção voluntária da gravidez, uma vez que esta, sendo uma realidade trans-histórica e, por assim dizer, "universal", é legitimada, não pela instituição, mas pela natureza, as coisas não melhoram: terás de admitir que o homicídio, também ele amplamente trans-histórico e universal, não deve ser proibido pela moral nem pelas leis, que, de resto, nunca lograram erradicá-lo, nem mais do que condicioná-lo ou limitá-lo.
Ora bem. Ponto 1. Tanto é moral permitir o aborto como proibi-lo.
Ponto 2. Tanto é moral proibir o homicídio como proibi-lo.
Dito isto, o que eu digo, na linha do João, "os factos são cabeçudos", é que, dado que nenhuma mulher pode ser obrigada a ser mãe contra sua vontade (no limite, pode ameaçar suicidar-se - exactamente o que fez uma jovem irlandesa que acabou por poder ir abortar a Londres, por decisão do tribunal de Dublin, já que no seu país o aborto é interdito) legislar contra a IVG estará sempre condenado ao fracasso porque as mulheres têm o poder biológico de decidir sobre a sua maternidade. Ou seja, a biologia é prévia e condiciona.
Temos tendência a esquecer isto. Ou seja, a esquecer que "somos filhos das estrelas", como dizia o Hubert Reeves, um homem sábio.
Nesta minha convicção, o homicídio não entra (apesar de ser para o reconhecimento da sua legitimidade aplicada ao recém-nascidos que nos empurra a argumentação de Peter Singer), precisamente porque me recuso a discutir ideias em abstracto. E o que nos dizem os factos é que quanto mais de sobe na escala biológica mais importância vai ganhando a moral. Os crocodilos comem-se uns aos outros, já os elefantes têm comportamentos próximos do altruísmo. Se o homicídio fosse favorável à sobrevivência da espécie (como, já agora, o incesto) não seria condenável, com excepção de algumas situações. Talvez por isso é que o Malthus dizia que quando há gente a mais surgem umas guerritas para desanuviar o ambiente.
Naturalmente, a complexidade humana (capaz do melhor e do pior)não permite explicações unas. Mas o que com certeza não vale a pena é contrariar a "natureza humana", seja isso o que for. Se se lembrarem do "homem novo" do século XX, alemão, soviético ou chinês perceberão onde quero chegar. Ou, já agora, da persistência absurda da Igreja contra o uso dos preservativos. Não é por ser retrógada que não funciona; não funciona porque contraria uma pulsão original - o sexo. Proibissem eles aos católicos comer bróculos e as coisas seriam bem mais simples.
Enfim, Ana, se o que queres dizer é que a moral tem de levar em consideração a realidade biológica da espécie, nada a objectar. Mas não pode ser deduzida dela e pode levá-la em conta de várias maneiras. Quer dizer, não há conhecimento das "leis da natureza" que nos dispense da deliberação e da imaginação morais.
O termo "funadmentos" é muito ambíguo e o seu uso, facilmente impreciso.
Mas estou esclarecido.
Bom a questão do aborto da pano para mangas. Em complemento do que diz a Ana Cristina, quero apenas lembrar o seguinte :
A questão moral, ou para todos os efeitos a questão politica, tem de ser colocada com rigor. Não se trata de saber se o aborto é um bem ou se é um mal. Trata-se apenas de saber se é admissivel considerar que a mulher que o decide fazer, nas primeiras semanas, de forma livre e esclarecida, por considerar que é um mal menor, deve ser castigada.
Isto debate-se com método :
1) Podemos aceitar que o aborto seja um mal menor ?
2) Nas duas hipoteses, tem sentido sanciona-lo penalmente ?
Etc.
Outro assunto (embora relacionado) : a questão batida dos fundamentos "naturais" da moral é quanto a mim, e desculpem a imodéstia, uma falsa questão.
Se lêssemos e meditassemos o que a tradição nos legou em termos de reflexão ética, ou moral, tanto quanto pretendemos que a questão nos preocupa, perceberiamos que tão "natural" quanto os "factos" (praticam-se homicidios), são as valorizações que fazemos dos factos (os homens censuram o homicidio).
Ai é que jaz a matéria prima da moral, e da politica, e do direito. A justiça praticada pelos homens (não conheço nem sonho com outra)serve-se da vontade e do arbitrio dos homens, de todos os homens (isto também vem no Quixote, mas como o Miguel sabe TUDO vem dito no Quixote). Se não estão convencidos disso, sugiro que se levantem e vão assistir ao que se passa nos tribunais. Verão que em mais de 95 % dos casos, as pessoas que são condenadas não contestam a regra em virtude da qual o juiz decidiu aplicar a pena, concordam com a regra...
Quanto a mim, a referência à "natureza", muitas vezes, obscurece o debate em vez de o clarificar. Até porque remete para a questão de saber o que se entende por "natureza".
Ora, para ser simples, simplista mesmo, sugiro que na esmagadora maioria dos casos, aquilo a que chamamos, comodamente, "natureza", não é mais do que a casmorrice que atribuimos às coisas e aos factos, que é o travestimento do "para quê" e do "porquê" que precisamos para lhes pegar.
Portanto não estamos a falar "das coisas", ou da "natureza das coisas", mas sim dos nossos pontos de orientação para agir.
Boas
Muito, muito bem, João. Só há um deslize: estou longe de saber tudo do Quixote - bastante menos do que V., por exemplo. Mas é verdade que - as mais das vezes obliquamente, quer diaer, a propósito de outra coisa que vem à baila - não paro de o descobrir.
Abraço
msp
Miguel, o horizonte da moral não se esgota nos factos da biologia; embora, algures, no nosso cérebro a evolução nos tenha dado capacidade para a formularmos e entendermos.
A questão levar-nos-ia muito longe, até porque, aqui a propósito do que diz o João sobre os trubunais, a Moral (ou a Ética) não possam ser confundidas com as Leis.
De qualquer modo, mesmo se percebo a relutância acerca de palavras como "natureza", "fundamentos", etc., diz-me a intuição (outra palavra ambígua) que a recusa, ou o desinteresse, pela condição natural do homem, entendido aqui como "filho das estrelas" (ou seja, feito da mesma matéria do universo - sumpnoia panta, sumpnoia panta) corre o risco de nos conduzir (ou, na verdade, já conduz) a um estado de depressão acelerada (de infelicidade, para usar o termo feliz do GRANDE Espinosa), como se vem assistindo, por exemplo, nas crianças, cada vez mais afastadas do "natural" e submersas num mundo tecnológico desde pequeninas - e isto parece não ser político, mas é. Vejam-se os disparates acerca da inclusão do Magalhães nas escolas primárias como ferramenta de aprendizagem, dizem eles...
Cara Ana Cristina,
Repare que até o Grande Espinoza (concordo com o epiteto) distingue entre natura naturans e natura naturata.
Julgo que v. esta preocupada com o artificialismo como se ele implicasse que nada é intangivel.
Não implica nem penso que seja isso que diz o Miguel.
Mas a natureza não nos da muito a saber sobre o intangivel. Nem a "natureza" é completamente imutavel, nem o artificio consegue verga-la ao arbitrio do homem. A moral (e a politica também), so têm consistência porque temos que navegar entre os dois.
Vamos então voltar aos antigos, às cavalitas de quem estão todos os grandes, de Espinoza a Cervantes (ja aqui mencionei o Cervantes ?). Então é assim :
Non potest artifex mutare materiam.
Se me pedissem para lecionar filosofia no secundario (que não pedem, podem ficar descansados), a minha primeira aula havia de começar assim :
"Meninos, se vocês estão à espera de aprender aqui citações da moda para brilhar em sociedade, podem tirar o cavalinho da chuva, porque a unica coisa que vos prometo, é que se vocês trabalharem muito, assim umas dez horas por dia, sete dias por semana, sairão daqui com uma ideia geral um pouco nitida acerca daquilo de que falam as quatro grandes escolas antigas".
Boas
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