23/06/12

Resposta de João Valente Aguiar ao meu post anterior sobre o seu ensaio "O Nacionalismo, a Esquerda Anticapitalista e o Euro"

Demasiado longa para ser publicada como comentário, aquio fica a resposta do João Valente Aguiar ao meu post sobre o seu ensaio,  publicado no Passa Palavra, "O Nacionalismo, a Esquerda Anticapitalista e o Euro".


Caro Miguel,

obrigado pelas tuas observações e vou tentar aprofundar a discussão desses pontos.

1) Em primeiro lugar, é para mim óbvio que uma saída do euro levaria a uma exploração ainda mais violenta. E ela seria ainda pior por dois motivos fundamentais. Por um lado, a saída de um país periférico europeu da zona euro não só teria problemas socioeconómicos impossíveis de resolver de forma autónoma, como as tentativas de resolução de tais problemas pelos governos (fossem eles dirigidos por QUALQUER partido) assentariam em medidas que só conseguiriam passar pelo incremento da mais-valia absoluta. Se as medidas de austeridade na actual conjuntura já assentam em muito nessa modalidade de extorsão da mais-valia (aumento do horário de trabalho, aumento dos dias de trabalho, corte nominal de salários, etc.), então num quadro de forte descapitalização económica, não vejo como países como Portugal ou a Grécia pudessem remodelar a médio prazo o seu aparelho produtivo e a sua força de trabalho no sentido de uma elevação da produtividade. Pelo contrário, o aperto terrível que a nova situação colocaria aos governos de países colocados fora do euro, faria com que a sua política económica tivesse de assentar em medidas que colocariam a predominância nos mecanismos da mais-valia absoluta. Não há desenvolvimento económico possível portanto, não há modernização capitalista possível quando se aposta fortemente nos mecanismos da mais-valia absoluta. A mera saída do euro não representaria um corte com a austeridade mas, pelo contrário, seria um prolongamento ainda mais pronunciado.

Por outro lado, existe a tese de que a saída de um país do euro sob a direcção de um partido de esquerda levaria a experiências de poder popular. O Partido Comunista da Grécia defende isso nos seus comunicados. Contudo, como sempre, importa comparar o discurso com a prática efectiva. E nesse plano a verdade é que o que aconteceria seria a nacionalização dos meios de produção e da banca, com o Estado como representante de todos os trabalhadores. Não há muito a acrescentar a esta tese política pois ela não se distingue em nada da formação de uma nova camada de gestores conforme ocorrido noutras experiências lideradas por partidos comunistas. Ainda hoje a esquerda dessa tradição quer implantar um capitalismo de estado, precisamente porque confunde estatismo com a transformação das relações de produção. Ou, para ser mais preciso, confundindo relações jurídicas de propriedade com as relações sociais de produção e de apropriação do excedente económico. Por isso, mesmo que disso não tenham consciência, os aspirantes a gestores políticos presentes nos sindicatos e partidos de esquerda são a vanguarda da implantação de uma futura classe de gestores tecnocratas.

2) Em segundo lugar, é evidente que a federalização é um mal menor. Mal menor porque só existem duas alternativas reais em cima da mesa no curto-médio prazo: ou a saída do euro e o regresso às moedas nacionais e ao recrudescimento de nacionalismos; ou a integração política, orçamental, fiscal e financeira da UE. Muitos críticos de esquerda desta integração baseiam-se nas palavras de Lénine acerca da impossibilidade do estabelecimento de uns Estados Unidos da Europa. O que a utilização dessas palavras de Lénine não tem em conta é o duplo facto de que já não vivemos num tempo em que as economias nacionais ainda detinham um grau elevado de autonomia económica, financeira, comercial e política, e de que não há nada mais mecânico do que aplicar palavras de ordem dirigidas para contextos concretos bastante distintos. Do meu ponto de vista, e porque estamos numa fase de crise económica no capitalismo e não numa crise de dominação das classes dominantes (vd. a quarta parte do meu artigo no Passa Palavra) a escolha é portanto entre a volta atrás, ou desenvolver-se as lutas sociais no quadro europeu.

E isto por duas grandes razões. A primeira porque entre a modernização capitalista ou um capitalismo de estado (vulgo socialismo) da miséria eu prefiro, de longe, a primeira. Não por uma questão ideológica, como fazem os nacionalistas de esquerda, mas porque é inconcebível para comunistas, anarquistas e outros anti-capitalistas preferirem modalidades de exploração muitíssimo mais violentas e degradantes do que uma modernização capitalista baseada na elevação da produtividade e na correspondente melhoria salarial e das condições de vida. Em vez de defenderem o progresso civilizacional, é inacreditável como a esquerda nacionalista prefere uma versão ainda mais miserável do capitalismo de estado, pois que realizada já não mais em condições de desenvolvimento nacional das economias e em territórios exíguos e sem aparelho produtivo razoavelmente desenvolvido. Pior ainda, essa esquerda considera que tal capitalismo de estado seria um socialismo, portanto, uma sociedade onde os trabalhadores estariam emancipados. Muitos comentadores ficaram ofendidos com esta minha crítica, mas a verdade é só uma: não há liberdade efectiva para os trabalhadores se estes passarem fome e se estes não controlarem a produção da vida social e política. Chamar socialismo a uma sociedade capitalista de estado, mesmo que denominada de socialista, não só não melhora as condições de vida dos trabalhadores, como muito menos lhes daria condições para o controlo da vida social.
Portanto, eu não entendo a modernização capitalista como objectivo político da esquerda anti-capitalista mas como a única alternativa no actual quadro presente. Em suma, esta minha posição que é aqui formulada em termos políticos já foi fundamentada em termos objectivos e económicos nos artigos do Passa Palavra pelo que só foquei os primeiros.

A segunda razão tem a ver com o futuro que se quer dar à luta da classe trabalhadora. Ou queremos integrar os trabalhadores numa comunidade nacional, misturando gestores políticos, gestores tecnocráticos e trabalhadores numa amálgama ideológica e que se edificaria em portugueses e gregos contra alemães e suecos. Ou queremos aproveitar o espaço europeu para ampliar a solidariedade internacionalista e se trabalhar para formas de luta europeias. Não há outra solução para a classe trabalhadora. Ou deixar-se afogar no nacionalismo - o que comprometeria a luta contra as barreiras nacionais por décadas - ou aproveitar a integração económica europeia para facilitar o intercâmbio e solidariedades internacionais. Longe vão os tempos em que toda e qualquer luta da classe trabalhadora era considerada apenas como parte de um processo global de emancipação social.

15 comentários:

Xavier disse...

(Havia escrito essa mensagem no sábado para o post anterior - e antes dessa resposta do próprio João Valente. Como penso que ser da vontade do Miguel que o debate prossiga, eis aqui o havia redigido naquele momento)

Xavier disse...

Os capitalistas - gestores e burguesia - pretendem resolver logo essa questão, e achar um caminho possível para a unidade política que retome e coloque nos trilhos o desenvolvimento capitalista europeu. Nossa aposta, assim parece-me, não pode ficar apenas baseada na torcida para que tudo dê errado da parte deles e que, assim, a nossa alternativa seja consultada e acatada para resolver a referida crise. Devemos desenvolver, desde já, caminhos efetivos de inter-relacionamento internacional das lutas e mobilizações europeias (e em todo mundo, evidentemente). Essa é, como pontapé inicial, a nossa proposta de federalização - que foge, como o diabo da cruz, de qualquer flerte com o "nacionalismo de esquerda".

Xavier disse...

Olá,

O segundo comentário, publicado acima, era - na verdade - o último parágrafo de um comentário com uma extensão muito maior. Vou tentar inseri-lo aqui aos poucos, numerando os parágrafos - já que não estou conseguindo colocá-lo aqui em sua integralidade.

Xavier disse...

1) Quanto à primeira questão - relativa à via nacionalista como uma forma econômica e política que aprofunda a exploração e opressão da classe trabalhadora europeia como um todo (e não apenas na Grécia, Espanha ou Portugal) -, parece óbvio que é somente possível reverter esse quadro por meio da organização coletiva de uma perspectiva internacionalista que lute efetivamente contra as medidas de austeridade (e não faça essa batalha bradando, aos quatro cantos, o nacionalismo dos pobres estados mirrados contra os alemães poderosos) em nível continental.

Xavier disse...

Com efeito, e como bem se sabe, entre a palavra de ordem (que pouco vale) e a sua efetivação existe um milhão de passos a trilhar. Essa é, na minha opinião, a grande contribuição dessa série de João Valente. João esclarece concretamente o terreno político, econômico, social e ideológico com o qual hoje as forças de esquerda anticapitalistas devem se defrontar na apresentação de suas propostas.

Xavier disse...

Sobre esse ponto, ainda, peço-lhe a liberdade para citar um trecho (que expressa bem o que estamos aqui a discutir) de uma outra série de artigos sobre o Euro - também publicada no Passa Palavra, mas que é da lavra de João Bernardo:

<> (Crise na zona euro: 3) ai, ai Portugal… - http://passapalavra.info/?p=55993).

Xavier disse...

No que diz respeito à federalização efetiva dos Estados Europeus - incluindo a proposta apresentada pelo Miguel Serras, de uma espécie de "carta de direitos coletiva" dos cidadãos europeus -, acho interessante realmente avançarmos nessa discussão, mesmo que as nossas soluções apresentadas sobre esse ponto ainda não sejam precisas.

Xavier disse...

Ainda não pensei tanto no assunto em seu nível mais reivindicativo, para além da já citada luta unificada contra as medidas de austeridade.

Xavier disse...

Com efeito, parece não haver dúvida de que a questão central que está subjacente à toda essa discussão é a de que "A crise na periferia meridional da zona euro deve-se, em última instância, ao facto de ter sido feita uma união monetária sem uma total união política" (Crise na zona euro: 1) um historial de problemas - de João Bernardo).

Xavier disse...

Aí, depois de tudo isso que escrevi, se iniciava o parágrafo final - o segundo publicado aqui - "Os capitalistas - gestores e..."

Peço desculpas pelo longo comentário. E, claro, lhe parabenizo Miguel pelos textos e discussões que anima em vosso espaço aqui no blog.

João Valente Aguiar disse...

Caro Xavier,

só pelo teu comentário, já valeu a pena a discussão aqui encetada. Comentário com o qual estou de acordo e que gostaria de salientar sobretudo quando dizes que «as nossas soluções apresentadas sobre esse ponto ainda não sejam precisas». Esse é fundamentalmente o caminho que a prática das lutas sociais fará emergir de modo mais premente e mais vísivel. E sem a coordenação (a possível) internacional das lutas, nada disso será possível. Essas propostas concretas surgirão sobretudo da pauta que os trabalhadores europeus forem lançando precisamente à medida que forem rejeitando o nacionalismo autárcico que alguma esquerda teima em os querer conduzir.

Um abraço!

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Xavier,
sou eu que agradeço o seu contributo para o debate. Só espero que reincida sempre.

Abraço

msp

Xavier disse...

Meu comentário que se inicia com o parágrafo "Sobre esse ponto" saiu sem o referido trecho de citação de João Bernardo:

"Mas enquanto a maioria dos trabalhadores recear que as lutas não abram qualquer nova alternativa e se limitem a desestabilizar uma situação económica já de si tão insegura, as vanguardas mais activas não contarão com um respaldo de massas. Por outro lado, ninguém sabe, ninguém nunca soube, a partir de que décima percentual as situações se invertem e o receio e a resignação dão lugar a um sentimento de saturação em que qualquer alternativa é considerada melhor do que o presente"

Xavier disse...

Olá Miguel e João Valente,

Agradeço demais o espaço aqui concedido e o bom debate travado entre vocês - coisa rara, como bem sabemos, em nossa esquerda por todo o mundo.

Mesmo com essa primeira colaboração da minha parte bastante truncada, por minha culpa (é claro), também espero que essa não seja a única ocasião para o nosso debate coletivo de ideias.

Abraços.

Anónimo disse...

Ando há dias a tentar compreender( e interpretar) o texto(s) excelente do J. Valente de Aguiar sobre como vencer o Nacionalismo e a lógica política actual do Euro, o que obriga, segundo o que penso, a uma mutação radical da Esquerda Anticapitalista no seu conjunto. Pannekoek no seu famoso " Marx e Keynes ", citando e contradizendo Sweezy,sublinha que a teoria de valor de Marx não confunde o preço versus tempo de trabalho: " (...) é com efeito o movimento contraditório da produção de valor e a produção de valor de uso que explica a anarquia do sistema, isto é, a sua incapacidade em organizar de uma maneira racional a produção e a reprodução do capital "...gerando " movimentos anormais, fautores de crises, já que o equilibrio- vista a forma expontânea desta produção- é ele mesmo fortuito ". Mas tal desideratum levar-nos-ia a narrativas excedendo o espaço/tempo limitado desta intervenção, como é evidente. O que não invalida, no entanto, que nos deixemos embalar face aos perigos vários, insidiosos e múltiplos do legado estaliniano e burocrático, como Castoriadis nos alerta: " Os equívocos criados sobre o programa socialista pelas organizações " operárias " degeneradas, reformistas ou estalinistas, devem ser radicalmente destruidos. A ideia de que o socialismo coincide com a nacionalização dos meios de produção e a planificação; que visa essencialmente- ou que os homens deveriam atingir- o aumento da produção e do consumo, estas ideias devem ser denunciadas impiedosamente,bem como a sua identidade com a orientação profunda do capitalismo. A forma necessária do socialismo como gestão operária da produção e da sociedade e poder dos Conselhos Operários deve ser demonstrada a cada passo da experiência histórica recente",( conquanto, dizemos nós, o legado extinto das democracias " soviéticas " e a esclerose actual e inadiável do marxismo-leninismo). " O conteúdo essencial do socialismo: restituição aos homens da dominação sobre a sua própria vida;a transformação do trabalho ganha-pão absurdo pelo desenvolvimento livre das forças criadoras dos indivíduos e dos grupos; a constituição de comunidades humanas integradas; a união da cultura e da vida dos homens; este conteúdo não deve ser escondido vergonhosamente como especulação de um futuro indeterminado, mas, pelo contrário, destacado como a única resposta aos problemas que torturam e asfixiam os homens e a sociedade de hoje. O programa socialista deve ser revelado como tal:um programa de humanização do trabalho e da sociedade. Deve ser resgatado ainda pelo facto de o socialismo não ser um terraço de diversões acima da prisão industrial, mas a destruição da própria prisão industrial ". Salut! Niet