15/04/14

Ainda acerca do impasse

Este post do Pedro Viana fez-me lembrar de um assunto que há muito andava a pensar em fazer um post - será que é possivel criar organismos autónomos de base e de duplo poder (como as Comissões de Moradores e de Trabalhadores que surgiram em Portugal em 1975) na moderna sociedade urbana e pós-industrial?

O que eu receio é que, hoje em dia, os locais de residência sejam demasiado grandes e os locais de trabalho demasiado pequenos para ser possível criar organizações de base.

No fundo, criar organizações de base requer agrupamentos humanos que sejam suficientemente pequenos para a maior parte das pessoas se conhecerem umas às outros (e portanto não necessitarem de intermediários profissionalizados para empreenderem ações colectivas) e suficientemente grandes para puderem ter algum importância.

Hoje em dia, os bairros e aldeias/bairros onde quase toda a gente se conhecia foram largamente substituidos pelo anonimato da cidade massificada - isso tem muitas vantagens em termos de uma maior autonomia pessoal, maior facilidade em escolhermos os nossos amigos, etc., mas tem a desvantagem de ser muito mais dificil, p.ex., criar uma comissão de moradores, ou uma "assembleia popular de bairro".

Já no trabalho, as empresas até podem ser muito maiores do que eram há uns anos, mas os estabelecimentos tendem a ser mais pequenos - um banco pode ter dezenas de milhares de trabalhadores, mas cada agência só tem para aí uma dúzia.

Eu suspeito que criar orgãos de poder paralelo ao poder do Estado burguês é muito mais fácil num contexto suburbano e industrial (as famosas "cinturas vermelhas" que antigamente qualquer cidade digna desse nome tinha) - quer os bairros operários (e aldeias suburbanizadas), quer as fábricas tinham muitas vezes a dimensão humana ideal para criar comissões de moradores/trabalhadores, núcleos sindicais, cooperativas, colectividades populares de cultura e recreio, etc.

Se esta minha análise estiver correcta, não sei se haverá maneira de descalçar essa bota - talvez grupos de pessoas organizadas por temas de interesse comuns (como em parte são o caso das "assembleias populares" que tem surgido no ambido de movimentos como os Indignados, o Occupy Wall Street ou o Que Se Lixe a Troika) possam subsituir as formas de organização clássica por local de trabalho ou de residência, mas tenho as minhas dúvidas - a criação (e, sobretudo, a manutenção) desse tipo de grupos parece-me exigir um esforço muito mais deliberado e consciente do que os laços espontâneos surgidos a partir do trabalho ou da vizinhança.

4 comentários:

XXI disse...

Boas
Vamos ver se consigo transmitir a minha perspectiva de forma clara:

Penso que uma das razões para o principio do fim da capacidade (disponibilidade/vontade para participar) de organizar orgãos de poder (contra-poder)de caracter civil (no sentido de não institucional)iniciou-se precisamente com a transformação ocorrida no trabalho, mais concretamente com a emergência e até alguma massificação do "trabalho creativo".

Quando as indústrias fortes eram as industrias "repetidoras" (grandes linhas de montagem com muitos empregados e substancialmente trabalho manual repetitivo)os individuos possuiam uma maior percepção da partilha e igualidade do trabalho efectuado por todos logo maior disponibilidade para defender uma realidade que era muito próxima de ser comum.
Com o desenvolvimento do trabalho creativo, a função individual e a primazia do sector dos serviços essa ligação atenuou-se.

Penso não ser mais possivel esperar que o mundo do trabalho seja o plano de onde nascerá um novo ou de novo uma organização de "poder civil", tendo em conta a cada vez menor necessidade de participação humana no processo produtivo (já se fala em robots com inteligencia artificial nas industrias).

já deixei aqui num comentário a opinião de que deviamos aproveitar as caracteristicas do capitalismo e arremessá-las ao mesmo numa filosofia de sabotagem.

Assim sendo quais são os novos valores comuns que vemos em crescimento, valores com que as novas gerações se identificam, partilham e aspiram?
São esses valores o terreno de batalha do sec.XXI, são esses os agregadores das massas, os valores do sec.XXI são os do "cumprimento do individual" será muito dificil virá-lo contra o capitalismo??

Pedro Viana disse...

Olá Miguel,

A tua análise é de uma grande lucidez. Não me parece possível, no actual contexto histórico, criar uma organização colectiva paralela ao Estado capaz de o subjugar (via marxista-leninista) ou de induzir a sua implosão (via anarquista). Falta um sentimento suficientemente forte de solidariedade colectiva, a diferentes níveis. O individualismo (“eu consigo safar-me sozinho”) e o egoísmo (“ele que se safe sozinho”) estão demasiado difundidos para além do núcleo familiar, em particular nos grandes aglomerados urbanos (que é onde o Poder de Estado principalmente reside), como mencionas. Isto não invalida que esta “massa de indivíduos” não possa agir de modo sincronizado, destabilizando momentaneamente as estruturas de Estado. Tal fenómeno até tem ocorrido com alguma frequência nos últimos anos, vejam-se as várias “revoluções” em resultado da contestação em massa surgida em algumas sociedades. Mas, exactamente devido ao facto de não se terem constituído em mais do que apenas uma “massa de indivíduos”, sem qualquer objectivo comum que não a reacção/contestação às acções daqueles que estão à frente do Estado, todas essas “revoluções” acabaram na re-afirmação do Estado, seja numa versão ainda mais repressiva (vide Egipto) ou numa versão mais benevolente (vide Tunísia).

Como vamos sair desta situação? Quando o actual modelo Capitalista bater na parede. Nessa altura a (re-)criação de redes solidárias, a (re-)aprendizagem da autonomia colectiva, em particular ao nível material, será uma questão (também) de sobrevivência individual. Podemos ir construindo esse futuro desde já. E há quem o esteja a fazer, explorando diferentes vertentes. Serão temas para futuros posts, há muito planeados…

Abraço,

Pedro

Anónimo disse...


Parecem-me importantes as reflexões de um e outro.

Mas o mais importante de tudo disse-o o Pedro Viana: "Podemos ir construindo esse futuro desde já".

É mesmo o que é necessário. Para começar, "já" não é cedo.

O Grupo de Intervenção Cívica do Senhor da Serra (Miranda do Corvo),em que participo,vai fazendo o que pode, nessa senda.

E as limitações que tem não inibem que se faça o que é possível fazer, em nome do que ainda o não é. Aliás, a possibilidade de fazer amanhã aquilo que ainda não é possível fazer hoje, passa por fazer hoje aquilo que é possível fazer hoje.

Estamos disponíveis para debater opiniões e experiências com outros.

abraço para todo o coletivo do blog

nelson anjos


XXI disse...

http://www.dailymotion.com/video/x1oal91_fuck-the-poor-un-homme-milite-contre-les-pauvres-a-londres_tv