31/07/14

Entre a praça e o motim


"Entre a praça e o motim, entre a afirmação mais doce e a negação mais negra - este é o lugar onde nos encontramos. Dois caminhos abertos para nós: cada um, a seu modo, um desvio relativamente ao cerne da questão. Por um lado, o processo interminável de deliberação que, inevitavelmente, à medida que vai-se estreitando na direção dum denominador comum, chega à única exigência possível: a exigência do que já existe, a exigência do status quo. Por outro lado, o desejo que não tem objeto, que não encontra nada no mundo que responda ao seu grito de aniquilação.

Um fogo apaga-se porque extingue a sua própria fonte de combustível. O outro porque não encontra combustível, nem oxigênio. Em ambos os casos, o que falta é um movimento concreto para a satisfação das nossas necessidades, sem recurso ao salário e ao mercado, ao dinheiro e à compulsão. A assembleia torna-se real, perde o seu caráter meramente teatral, assim que o seu discurso se volta para a satisfação dessas necessidades, assim que ele se move no sentido da ocupação de casas e edifícios, da expropriação de bens e equipamentos. Da mesma forma, o motim descobre que a destruição concreta da mercadoria e do Estado significa a criação de um terreno totalmente inóspito para tais coisas, totalmente inóspito para o trabalho e a dominação.

Nós fazemo-lo através da facilitação de uma situação em que existe, simplesmente, o suficiente do que precisamos, em que não há nenhum pedido de "racionamento" ou “constrangimento”, nenhuma exigência de comparação entre o que uma pessoa retira e o que outra contribui. Esta é a única maneira que permite a uma insurreição sobreviver, e continuamente evitar a reinstituição do mercado, do capital e do Estado (ou de algum outro modo económico baseado na sociedade de classes e da dominação). No momento em que nos mostrarmos incapazes de satisfazer as necessidades de todos - dos jovens e dos idosos, sãos e enfermos, comprometidos e indecisos, criaremos uma situação em que será apenas uma questão de tempo antes que as pessoas aceitem o retorno das velhas dominações. A tarefa é bastante simples, mas também monstruosamente difícil: num momento de crise e de ruptura, temos de instituir formas de satisfazer as nossas necessidades e desejos que não dependam nem de salários, nem de dinheiro, nem de trabalho compulsório ou de decisão administrativa, e devemos faze-lo enquanto nos defendemos contra todos os que se atravessem no nosso caminho."

Parágrafos finais, The Wreck of the Plaza, colectivo Research & Destroy (fonte revista ROAR)

Um artigo de opinião longo, de leitura difícil, mas que levanta questões essenciais.

6 comentários:

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Pedro,
o texto cuja leitura sugeres é interessante, mas parece-me um tanto "acósmico" nos seus devaneios sobre a alternativa ao capitalismo, na medida em que incorre numa confusão fatal, um tanto mística, entre capitalismo e mercado, remuneração em dinheiro e salariato capitalista. Com efeito, não vejo maneira de proceder a uma igualização das condições no plano económico, que, numa sociedade complexa, possa dispensar a moeda e um mercado de bens de consumo — a menos que optemos por uma planificação autoritária e hierárquica da distribuição dos produtos, bem como da sua produção. Repara que a insurreição pode ser necessária — é-o sob uma ou outra forma, sem dúvida — mas não é suficiente para a criação de instituições e relações com as instituições alternativas ao capitalismo e à dominação estatal, assente na divisão entre governantes e governados, tomada qui como matriz da perpetuação ou reciclagem de uma divisão classista do trabalho. O mercado, que tanto assusta as almas supersticiosas, pode e deve ser democratizado, radicalmente democratizado, através de uma igualização das remunerações nos antopodas da lógica do salariato que dê o mesmo voto (dinheiro) a cada um, e tal medida de igualização deverá acompanhar a democratização das unidades de produção e, ao nível macro, a direcção (sempre política) da economia. Ora, esta perspectiva — de uma democratização instituinte a todos os níveis de decisão colectiva — não deve ser confundida com a fantasia inconsistente de uma sociedade sem instituições, que, entre outras coisas, regulem aquilo a que chamamos a actividade económica. Ou, em termos que parafraseiam uma ideia fundamental de Castoriadis, teremos não de abolir a instituição e a li, mas de sermos nós, todos e cada um, a darmo-nos a nossa p´ropria lei, a instituirmos o nosso próprio auto-governo — sob pena de abrirmos caminho a que a lei nos seja imposta por uma classe e conjnto de aparelhos hierárquicos que exercerão, ainda que em nome deles, o seu poder sobre a grande maioria dos homens e mulheres comuns que somos, excluindo-(n)os desse exercício governante que é condição necessária da cidadania plena.

Abraço para ti

miguel(sp)

Pedro Viana disse...

Olá Miguel,

Não me parece que o texto tente esboçar uma forma de organização social alternativa ao Capitalismo. O foco incide essencialmente sobre o processo através do qual poderá ser possível construir uma alternativa ao Capitalismo. E, segundo os autores, esse processo não poderá ter como base a mera deliberação, ou a revolta destrutiva. Terá de assentar antes na construção de modos de produção alternativos, capazes de satisfazer as necessidades (em particular, materiais) das pessoas, e que terão de partilhar uma característica crucial: não-acomodação relativamente ao sistema capitalista envolvente. Isto quer dizer, não só que terão de partilhar uma visão expansionista e que não fuja ao confronto, mas também que terão de minimizar a possibilidade de absorção pelo sistema capitalista. O último aspecto passaria pela recusa da adopção de mecanismos essenciais ao funcionamento do sistema capitalista, como mercado, dinheiro, salário. Não há aqui uma recusa da organização, como os autores realçam noutras partes do texto, mas sim o chamar de atenção para a necessidade dessa organização divergir radicalmente da forma capitalista, pelo menos numa fase inicial, de modo a não ser por ela neutralizada e re-absorvida.

Abraço,

Pedro

Miguel Serras Pereira disse...

Viva, Pedro.
Sim, o texto pretende não recusar a instituição enquanto tal, mas, de facto propõe 'uma situação em que existe, simplesmente, o suficiente do que precisamos, em que não há nenhum pedido de "racionamento" ou “constrangimento”, nenhuma exigência de comparação entre o que uma pessoa retira e o que outra contribui' — o que, traduzido por miúdos, significa a ausência de qualquer regulação económica (a não ser através do "suficiente", que é um termo equívoco e indecidível).
Não é do que escreves na tua resposta que discordo. O problema é que confundir o mercado sem mais, a remuneração em dinheiro, a regulação (excepto nos termos do que cada um acha individualmente "suficiente" ou "justo") com o capitalismo (e a sua utilização do mercado e do dinheiro, etc.) é como declarar que o pão é um valor mercantil, que deve ser abolido, invocando a sua condição de mercadoria capitalista. A alternativa ao capitalismo e a sua construção são aspectos inseparáveis, e nunca insistiremos demasiado na exigência, a todo o momento, de responsabilidade e lucidez com que a construção da democracia nos confronta. Creio que poderás subscrever sem dificuldade este meu juízo sobre essa exigência que, a meu ver, o texto que citas faz desaparecer numa espécie de passe de mágica, auto-mistificandose e correndo o risco de mistificar terceiros.

Abraço

miguel(sp)

Pedro Viana disse...

Olá de novo,

Um dos maiores desafios que se coloca à construção duma alternativa ao Capitalismo é a capacidade de co-optação que este tem demonstrado ao longo da sua história. Ora, parece-me óbvio que quanto menos características comuns houver entre o modo de produção capitalista e uma sua alternativa concreta, mais difícil se torna esse processo de co-optação. Esta distinção é particularmente importante enquanto o Capitalismo se mantiver pujante.

Suponho que há quem pense que não é realmente necessário, ou sequer possível, construir um modo de produção (realmente) alternativo e paralelo ao Capitalismo, que ao entrar em confronto com este vai acelerar a sua dissolução. Que basta haver vontade por parte do assalariado para os locais de produção serem colocados em auto-gestão, herdando os trabalhadores os instrumentos e mecanismos do modo de produção capitalista, e a associada produtividade económica. Que bastaria tal para tudo parecer ficar na mesma (em termos de produção material), sem nada ficar na mesma (no que diz respeito às relações de produção). Não creio que assim venha a acontecer, e infelizmente nada no passado sugere que venha a estar errado.

Abraço,

Pedro

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Pedro,
não podia estar mais de acordo contigo. Mas creio que dizes coisa muito diferente do que diz o texto que citas.
Abraço para ti

miguel(sp)

António Geraldo Dias disse...

The greatest offence against property was to have none’ –E. P. Thompson, The Making of the English Working Class
The riot is not a new fact upon the earth. It is a sort of primeval tactic, as old perhaps as civilization itself. In the centuries before capitalism proper the riot was central to the tactical repertoire of the dominated classes. This persists within the generalization of the marketplace that presages industrialization and the formation of a working class. Riots, while sometimes concerning themselves with taxes, land rights, and other traditional privileges, find their modern coherence as struggles in the marketplace over the price or the destiny of foodstuffs, subsistence goods. These struggles often passed over into open insurrection, into the great “risings of the people” of the 18th century. They meet modernity with machine breaking, led by General Ludd and Captain Swing, phantoms from beyond the wage.