12/06/18

Autoflagelações

Carlos Guimarães Pinto, no Blasfémias, escreve que quer autoflagelar-se mas não sabe como, a propósito das declarações de Catarina Martins sobre a responsabilidade portuguesa no tráfico transatlântico de escravos.

O post dele têm vários pontos, mas parece-me que no essencial todos ou quase todos são variações de "o que é que os portugueses atualmente existentes têm a ver com isso? A maior parte deles provavelmente não têm nenhum antepassado que tenha culpa disso".

É verdade - mas o mesmo se passa com todos os factos da história de Portugal (também quase nenhum português atual tem qualquer razão para se orgulhar de seja o que for que "os portugueses" tenham feito*); e, sobretudo, toda a ideia de comemorar um "Dia de Portugal" tem implícita a ideia que somos herdeiros de um destino e um passado coletivos, independentemente dos nossos antepassados biológicos. O CGP fará posts do mesmo tipo sempre que alguém diga que Portugal deve-se orgulhar de alguma coisa da "nossa" história? Aliás, creio que o debate sobre o papel português na escravatura começou quando, há uns anos, o Marcelo Rebelo de Sousa falou qualquer coisa do papel pioneiro de Portugal na abolição da escravatura - ou seja, se para abolir a escravatura, já foi "Portugal" que a aboliu (não indivíduos específicos que por acaso até viviam em Portugal), então também foi "Portugal" que a praticou e estimulou.

Diga-se que eu até nem sou fã dessas auto-identificações com coletivos imaginários designados por "nações", mas se por tudo e por nada se pratica essa identificação, então não pudemos deixar de a praticar quando se trata de coisas más, como o tráfico de escravos.

[Isso faz-me lembrar diferentes "livros de estilo" que as minhas professoras de Históra do secundário promoviam - a minha professora do 7º e 8º ano, sempre que algum aluno dizia "os portugueses", ela corrigia para "nós"; já a do 10º ao 12º, dizia que não gostava da palavra "nós", porque não tínhamos sido nós a participar nesses acontecimentos]

Ainda a este respeito (no contexto inglês, mas praticamente não é preciso mudar nada), recomendo este post de Chris Dillow:
 Should Britain apologize for its role in the slave trade? There's something about this that puzzles me.
Put it this way. Crudely speaking, there are two conceptions of society.

1. We're just a collection of atomized individuals. Though associated with libertarianism, this is also the Rawlsian view.

2. Society is an organism with a history. It's a "partnership not only between those who are living, but between those who are living, those who are dead, and those who are to be born." The quote is Edmund Burke's, but this position seems also that of Gordon Brown, who speaks of a "golden thread" running through history.

Now, you'd expect adherents of position 1 to think it absurd to apologize for slavery, as Longrider does. But supporters of position 2 would be more likely to apologize, because they regard slave traders as a part of British society and tradition.

However, when we look at who's apologizing and who isn't, we see no such correlation. (...) I suspect Rawlsian liberals are more likely to want to apologize than Burkean conservatives.
*Sendo eu de famílias do barrocal da zona central do Algarve (Paderne, Messines, Loulé e São Brás), muito dificilmente terei antepassados que tenham feito algo de especial, seja para o bem ou para o mal (nem sei de que lado estiveram nas guerra liberais, embora fossem de uma região com tradições miguelistas) - afinal, o ciclo dos descobrimentos/escravatura foi feito sobretudo por algarvios do litoral do Barlavento (Lagos e arredores), e os outros acontecimentos da história nacional passaram-se quase todos a norte do Tejo; no entanto um primo afastado meu (mas isso não conta como antepassado) foi uma espécie de ditador militar golpista durante algumas semanas

2 comentários:

Carlos Guimarães Pinto disse...

"O CGP fará posts do mesmo tipo sempre que alguém diga que Portugal deve-se orgulhar de alguma coisa da "nossa" história?"

Eu trato o sentimento de nacionalismo como a religião ou o desporto. Partem todos de pressupostos irracionais, mas existem. Pelo que o melhor é usufruir das coisas boas (os santos populares, as comunhões que são giras para os miúdos, gozar com o Sporting, celebrar as vitórias da selecção, a esperança dos velhos numa vida para além da morte...) porque sendo irracionais, ainda assim têm um contributo positivo para o bem-estar das pessoas. Ao mesmo tempo, ridicularizar o que só traz efeitos adversos (tristeza pelas derrotas do Benfica, violência desportiva, ir a missas chatas, ou autoflagelar-me pelo que uns gajos fizeram há 12 gerações).

Anónimo disse...

"O CGP fará posts do mesmo tipo sempre que alguém diga que Portugal deve-se orgulhar de alguma coisa da "nossa" história? "
É essencialmente a razão pela qual eu não me orgulho dos feitos da selecção de futebol: nem sequer sou parente de nenhum jogador.
Miguel P.