15/06/10

A violência ilustrada


O debate sobre a foto de uma criança morta em Gaza tropeçou, parece-me, em meia dúzia de equívocos, mesmo se os argumentos empregues pelo Renato Teixeira são questionáveis e um pouco ingénuos: a verdade, a eficácia, a criança que não é uma criança mas uma semente, etc...
O nosso olhar e a nossa atenção estão há  muito condicionados por um regime de imagens e representações em que a notícia de uma ou várias mortes pode  seguir-se a uma declaração de Santana Lopes e anteceder uma vitória do Belenenses em Olhão. Um bombardeamento no Médio Oriente pode ser narrado por um qualquer locutor com o mesmo tom de voz usado para comentar o nascimento de uma baleia num jardim zoológico. 
Por isso mesmo, se certas imagens têm o poder de superar esse regime de banalização e transportar-nos para o interior de uma realidade que é frequentemente indizível, elas não podem deixar de ser utilizadas. Esse poder não pode simplesmente ser denunciado como uma «exploração», um «terror», uma «codificação prévia do mundo entre opressores e oprimidos». Ou antes, o uso desta imagem até pode corresponder a tudo isso, mas seria necessário demonstrar que tudo isso seria injustificado quando falamos da situação de Gaza.
É que as críticas ao uso desta foto preocupam-se em denunciar uma «instrumentalização da dor» que me parece um pouco deslocada, num tempo em que as imagens se tornaram a continuação da guerra por outros meios. Não se trata, naturalmente, de concluir que tudo vale e se justifica. Os meios e os fins são inseparáveis, pelo que qualquer cálculo meramente instrumental é inadequado para justificar uma táctica.
Mas o carácter supostamente «chocante» de semelhante imagem parece-me extremamente problemático. É que, se ela é chocante, então há um qualquer problema nas pessoas  a quem ela chocou. Ou seja, se ela é chocante, então o seu uso é necessário, porque de alguma maneira a informação de que centenas de pessoas inocentes foram mortas em Gaza no Inverno passado (ou no Líbano um ano antes) não chegou para que uma imagem destas fosse acolhida com desconforto, mas sem surpresa. A única crítica que me parece válida ao uso de uma fotografia destas diz respeito à relação que estabelece com o conjunto das narrativas e representações do conflito e à  sua legibilidade.


Aqui chegados gostaria de dizer que certas passagens do texto do João Vilaça aqui reproduzidas pelo Miguel Serras Pereira me parecem completamente abusivas. A "pulsão da morte democraticamente distribuída pelos seres humanos", no contexto de um debate sobre a Palestina, resultam facilmente num branqueamento do que ali se está a passar. A narrativa de um fardo colectivo da violência que todos transportaríamos em proporções semelhantes corresponde a uma leitura da história que nada me diz, a não ser pelo facto de diluir as efectivas diferenças existentes nesse campo. 
Levado mais longe, este raciocínio aponta a necessidade de toda a gente se acalmar e sentar-se para beber um chá no deserto, pensar melhor na vida, apertar as mãos e seguir em frente. Só que essa imagem redentora, de final de filme americano, pouca relação pode ter com um conflito desta natureza. Ela limita-se a planar sobre os acontecimentos sem verdadeiramente se pronunciar e posicionar face a eles. Nesse sentido, reproduz a banalização do sofrimento a que nos convida o telejornal: algures num ponto obscuro do mundo, pessoas há que se matam porque se odeiam.
Porque razão nos seria permitido "o espaço necessário para que a morte que uma fotografia regista possa ecoar nas nossas convicções acerca do mundo e do humano"? Porque razão deveria ser essa a nossa relação com aquela foto, de uma ordem literária e artística que nos levaria a reservar as mais fortes emoções e os mais belos pensamentos para os espaços resguardados de um museu, uma exposição, um filme ou um livro? Porque razão o tempo tornaria esta imagem mais fácil de digerir, quando a foto desta mãe palestiniana junto dos seus filhos mortos, tirada no Líbano em 1976, continua a ferir os olhos de quem a vê?
Porque razão surgem, a propósito deste tema, referências depreciativas ao «cavar de trincheiras», ao «obscuro desejo de vingança», como se nos fosse permitida uma distância inteiramente racionalizada relativamente ao que está em causa na ocupação da Palestina? Porque razão deveria ser o «distanciamento» a mais indicada das atitudes relativamente a todas as situações e a condição elementar da racionalidade?
A violência que esta e outras imagens ilustram não carece de qualquer manipulação ou instrumentalização. A semiótica prolonga o conflito, mas não o produz. E como uma das partes do conflito tem a seu favor os mais poderosos instrumentos para operar esse prolongamento, é inteiramente legítimo identificar aí um terreno de combate. Não foi um fotógrafo que produziu aquela imagem. Foi uma violência inteiramente desproporcionada e cinicamente empregue para reduzir um povo ocupado à capitulação. E é sobretudo isso nos deveria chocar. A nossa impotência face ao horror, o frágil suporte daquilo  que nos habituámos a considerar normal apenas porque acontece todos os dias.

11 comentários:

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Ricardo,
os problemas são vários e não têm a ver com a publicação de imagens documentais. Têm a ver com o modo como o post usa a imagem e as conclusões que tira dela.
1. Lê esta troca de comentários:
"Comentário de JDC
Data: 13 de Junho de 2010, 12:05
“Quanto às vitimas israelitas é como disse, o seu sofrimento é incomparável às palestinianas. INCOMPARÁVEL. A todos os níveis: em número, em violência e em moral.”
Isto significa que o assassinato de uma criança israelita é menos reprovável que o de uma criança palestiniana? Isto significa que o valor da vida de uma criança depende do lado da barricada?
Comentário de Renato Teixeira
Data: 13 de Junho de 2010, 12:42
JDC, é inexorável, é triste, mas é mesmo assim".

2. Como disse o Nuno Ramos de Almeida, a imagem, tal como foi usada, é "uma imagem obscena. Não argumenta nada. Não diz nada. Podia ser a imagem de uma criança israelita num atentado e não era por isso que Israel tinha razão no conflito".

3. O João Pedro Cachopo também escreveu certeiramente:
"É preciso resistir ao simplismo que consiste em julgar que quanto mais chocantes são as imagens do sofrimento e da morte, mais eficaz será o modo como através delas se denuncia a acção dos perpetradores da violência. É que se a denúncia tem – deve ter – um sentido político, ela não pode recorrer simplesmente ao terror da imagem.
O “terror da imagem” não é uma questão de mau gosto. O “terror da imagem” – admitindo que a intenção que lhe subjaz é a de denunciar a violência e a contradição entre opressores e oprimidos – é contraproducente e perverso: contraproducente, em virtude de se poder sempre multiplicar as imagens chocantes, num exercício cuja ineficácia argumentativa se afere pelo facto de muitas dessas imagens – como as de uma criança morta – não provarem rigorosamente nada; perverso porque, incitando ao ódio, se aposta no círculo vicioso da violência que se denuncia; a termo, poderão inverter-se os papéis, sem que nunca, porém, se desmantele a lógica que preside ao círculo vicioso.
(http://viasfacto.blogspot.com/2010/06/para-que-se-quer-ver-sangue.html).
(continua)

Miguel Serras Pereira disse...

(continuação do comentário anterior)

4. Finalmente, parece-me que, criticando alguns pormenores e formulações do João Vilaça, deixas escapar o essencial:
"Não queria também deixar de dizer que toda a imagem de violência deve ser usada com a maior prudência (…) Na pior das possibilidades, aprofundam o ódio naqueles se identificam com as vítimas (escolhaem os seus mortos, situam-nos numa escala indizível de valoração da morte), não por uma qualquer sensibilidade à comoção (…) do sofrimento humano e uma reacção à barbárie, mas porque confirmam (…) as razões da sua militância política, dão-lhes mais uma motivação emotiva, primária e acrítica para continuarem o seu combate. As vítimas inocentes do outro lado são indiferentes ao seu instinto de reacção pavloviana e por isso dispensáveis, insignificantes - mas [também] as do seu lado não o são, simbolicamente, menos: meros instrumentos ao serviço de uma causa, cavam trincheiras, nada mais".
5. Trata-se de reconhecer e assumir politicamente o ponto seguinte, que me levou, de resto, a denunciar o post do RT aqui no Vias. Como escrevi então (a passagem entre parênteses rectos é um acrescento introduzido agora para explicitar o que quis dizer):
"O horror seria por acaso menor, deixaria de ser "comparável", se a criança fosse judia - e se, nesse caso, a sua imagem fosse usada, não para denunciar a violência do inimigo, mas para semear o terror nas suas fileiras, para o ameaçar dizendo-lhe: "É isto que espera os vossos filhos, é isto que lhes faremos, é esta a nossa justiça"?
Filha de opressor ou de resistente, filha de judeu ou de palestiniano, ou simplesmente filha de ninguém, qualquer criança assassinada é tão inocente como qualquer outra - e como qualquer outra [temos, também politicamente, o dever de considerar] poderia ser nossa filha".

Abraço para ti

miguel sp

Anónimo disse...

Belíssimo texto. Mesmo com a dose de ingenuidade que comporta.

Renato Teixeira

joão vilaça disse...

Ricardo Noronha,
discordo de quse tudo o que escreveu mas, como é óbvio, os pontos do meu texto que refere são problematizáveis e discutíveis. Vou tentar responder de forma breve até porque, se o Renato entrar na discussão, tenho-lhe prometido um texto para debate, pelo que não vale a pena estar a repetir-me em dois lados.
1. O seu texto come ça com uma afrimação com aqual não posso deixar de estar de acordo: o nosso olhar está condicionado por um regime de imagens e representações - eu acrescentaria que vivemos imersos em imagens e, como tal, num constante desfasamento, num delay de mediação entre nós próprios e o mundo. No entanto, desta constatação o Ricardo retira a conclusão exactamente oposta: a de que a superação deste regime de banalização passa pelo uso de mais e outras, mais chocantes, imagens. Acontece que eu acho exactamente o contrário: ou seja, que a banalização visual conduz, no limite, a que as imagens se tornem totalmente irreconheciveis e ilegíveis e, portanto, incapazes de representar o que quer que seja. Pensar a imagem na nossa relação com a realidade deve então passar por aí, por explodir literalmente com a imagem e os modos de utilização, política se quiser, que delas fazemos, recusar participar neste regime de espectacularização que distorce e mistifica a realidade. Fazer o que o Debord fez com o seu cinema: percebendo que o real se tinha tornado num evento electrónico total (a sala de cinema era o seu paradigma, entretanto desactualizado) e que estavamos enquanto sociedade condenados a uma existencia passiva, ele achava que esta condição poderia ser redimida não por via da velocidade da imagem, de uma escala de emoções ou do seu choque estético mas exactamente pelo seu contrário, a abolição da ilusão de movimento, a lentidão, o recolhimento da imagem.
2. O meu problema não é com o carácter "chocante" da imagem mas com, e estou só a citá-lo, a relação que ela estabelece com a s narrativas do conflito. E aqui acho que seria produtivo abandonar a abstracção e pensar em concreto naquela imagem que o Renato apresentou (também porque esta discussão se pode colocar caso a caso, imagem a imagem, a problematização pode ser infinita). É precisamente porque eu acho que aquela imagem não argumenta nada em relação às narrativas do conflito que eu a acho repugnante, para além do facto de ela própria conter uma narrativa que ninguém autorizou o Renato a usar em seu nome. Ele, o Renato, pretende que ela seja o testemunho "verdadeiro", a revelação nua da justiça de uma parte do conflito, o que é falso - porque nada do que ali se vê argumenta o quer que seja quanto à razão de qualquer um dos conflito: a imagem de uma criança israelita dir-nos-ia exactamente o mesmo se adotarmos o mesmo tipo de simplificação abusaiva no uso que poderiamos fazer dela.
3. Ainda quanto a esta questão das narrativas julgo que sria importante dizer ainda o seguinte. O Renato, e outros comentadores, colocaram em paralelo a fotografia de Gaza com a documentação dos campos de concentração nazis - naquela que me parece ser a mais inoperativa e ignorante das comparações, que depois podemos discutir. Interessa-me neste ponto é dizer que até mesmo essas imagens podem ser questionadas. O Agamben, julgo que no livro Ce qui reste d' Aushwitz, fala precisamente das primeiras filmagens que a BBC fez no campo após a libertação e refere-se à propositada recusa da câmara em captar a imagem dos ciganos e até o desconforto que os repórteres sentiram quando viram que não havia apenas judeus entre os sobreviventes. Ou seja, as imagens seleccionam o real que queremos que seja visível e na maior parte das vezes são usadas, instrumentalizadas, em nome de uma verdade que queremos impor ao mundo. Elas são uma representação simbólica da realidade e incapazes de captar toda a trama complexa de narrativas que o real contém.

joão vilaça disse...

As imagens de choque são legítimas mas extraordinariamente problemáticas. Principalmente quando perdemos de vista aquilo que me parece crucial: o de que a morte circula, encriptada, no nosso próprio dispositivo cultural, social e tecnológico (Brecht, acho, escreveu: a imagem do século XX não é já um rosto mas uma caveira). Faz parte de um cosmos mais vasto do que a política que o Renato quer fazer e é essa que me interessa pensar e desconstruir, fora de uma retórica de denúncia inoperativa e contraproducente. Como diz o William Burroughs, um grande filósofo, acerca de conflitos "políticos": "são meras manifestações de superfície" (que se crescerem, reconfigurando-se as posições das partes, hão-de ser alimentados por outros poderes, noutra correlação de forças, acrescento eu) - "preocupar-se com o conflito politico da superfície é cometer o erro do touro na arena e carregar contra o capote. Quem manipula o capote é a morte" Acho que tu e o Renato cometem este erro frequentemente, e com toda a certeza, nesta discussão.

joão vilaça disse...

4.A tua objecção quanto à "pulsão de morte democraticamente distribuida" não me diz muito - a frase não tem esse segnificado que lhe atribuis e, se o tivesse, seria o primeiro a concordar com o teu argumento. Claro que na história há desproporções de forças e motivações complexas e que dos conflitos podemos tomar partido por aquele que nos parece ter as reinvindicações mais justas. No entanto, o que quis dizer é que me recuso a atribuir aprioristicamente, e em função das minhas opções políticas, valorações quanto a esse aspecto.
5. A seguir sugeres que a minha opinião se limita a "planar" sobre os acontecimentos e a não tomar posição, acusação que já se está a tornar um pouco cansativa. Sobre isto que te posso dizer é apenas que perante a imagem de uma criança morta não tenho nenhuma posição a tomar. Ha uma história, verdadeira, de um músico de blues que reza assim. O gajo foi preso por homicídio, e levado a julgamento. O juiz perguntou-lhe novamente se se confessava culpado e o tipo respondeu: senhor juiz, eu só sei que disparei uma arma - o que aconteceu depois é um assunto entre a bala, o homem e Deus (que é mais ou menos a última frase que o Wittgenstei escreveu no Tractatus mas com mais graça). Há certas coisas acerca das quais não me pronuncio e que estão para além da linguagem da política, para além da retórica da denúncia e da militância - e esta é uma delas. A minha tomada de posição em relação ao conflito israelo-arabe nunca irá ser determinada pela narrativa de uma qualquer morte concreta, algo acerca do qual acho que devemos guardar. O que me incomoda muitas vezes nos teus textos, bem como no discurso de outros activista, e esta constante intromissão do político nas outras dimensões de compreensao do real, com uma linguagem impermeável (e um paradigma cognitivo que está sempre a tropeçar e bloqueado na dicotomia binária do a favor/contra) a outras formas de problematização e questionamento crítico. Este é apenas mais um desses exemplos. E tenho a certeza, no entanto, que a tua posição neste conflito não é nem por um momento moldada ou determinada por mais ou meenos imagens de terror - se o for, como pretende o Renato Teixeira, o aggiornamento dos militantes que reagem a estas imagens, como disse, como perante a revelação das suas razões de combate e militância, estaremos a ser cumplices com um ciclo de perpetuação da violência e do ódio e de, caminho, perdemos oportunidades de compreensão do mundo.
6. Já no final do teu texto adoptas uma postura argumentativa baseada numa dialéctica negativa que me faz um bocado de confusão e que acho improdutiva: a do "porque não?" (tu dizes que as coisas são assim mas porque não podem ser de outro modo?) De caminho dizes uma coisa que denuncia um equívoc: as imagens da morte que ecoam as nossas convicções do mundo não são as imagens da arte - bem pelo contrário. Essas são, claro, muito problematizáveis e pressupõe desde logo um distanciamento simbólico em relação ao real que é condição necessária do objecto artístico. Mas fixando-nos nas imagens jornalísticas: não são apenas os nossos posicionamentos que devem ser "éticos" e "justos" mas também os nossos argumentos e instrumentos de leitura e intrepretação do mundo. Nesse sentido, a imagem tem de ser ela própria ética - como dizia o Godard na sua célebre frase, não é apenas uma imgem, é a imagem justa. São essas imagens que ecoam a realidade sem a distorcer, sem a ficcionar, sem a manipular, aquelas que se limitam a oferecer e a apesentar o mundo sem que sejam usadas para servir uma agenda. Recuso violar uma imagem, principalmente se ela retratar uma criança cuja morte não me pertence nem ela autorizou a invocar em seu nome, para marcar uma posição - e, como disse, quero que essa posição seja o mais distanciada possível dos assuntos, de uma outra ordem quase ontológica, de vida e morte. Essa é uma operação de manipulação cognitiva, a uma guerrilha psíquica na qual não me quero envolver.

João Pedro Cachopo disse...

Ricardo,

eu estabeleceria uma diferença entre o “terror da imagem” e a “violência da imagem”. Esta distinção depende do uso (do contexto discursivo em que é apresentada; não se trata de uma qualidade objectiva da imagem). O “terror da imagem” não reside apenas na violência do real que a violência da imagem representa, mas aponta para aquela violência que uma determinada apresentação da imagem pretende induzir. O problema é a instrumentalização da imagem, mas não uma instrumentalização qualquer. Ou seja, o problema não é a imagem "servir para", mas "aquilo" para que serve, neste ou naquele contexto em concreto.

Dizer que uma criança morta é uma “semente” não é apenas uma metáfora de mau gosto. Ingénuo - e equívoco – seria interpretá-la como simples ingenuidade. A ideia de que uma imagem representando uma criança morta é uma semente serve toda uma concepção da resistência e da luta como vingança. E isto nada tem que ver com o tabu da "violência".

O que me parece criticável - reitero o que escrevi - , não é a publicação da imagem, mas o contexto discursivo em que foi publicada.

Escreves: “a única crítica que me parece válida ao uso de uma fotografia destas diz respeito à relação que estabelece com o conjunto das narrativas e representações do conflito e à sua legibilidade.” Tendo em conta que, em virtude dos quilómetros a que estamos do conflito, podemos fazer pouco mais do que lê-lo, falhar no que toca à sua leitura não me parece pouco.

Posto isto, concordo contigo em que a legitimidade da apresentação de uma imagem violenta em nada depende da passagem do tempo. (Bom teria sido se as imagens dos campos de concentração que deixaram incrédula a humanidade pouco depois do fim da 2ª grande guerra tivessem aparecido mais cedo).

A pertinência (de que a legitimidade será uma condição necessária mas não suficiente) da sua apresentação reside no seu potencial argumentativo. Pertinente não terá sido a apresentação da imagem da criança morta no contexto em que é apresentada no 5 dias pelo RT: como reacção ao blog “Philosémitisme”. Nesse sentido - sejamos justos -, há que dizer que as imagens publicadas pelo Carlos Vidal (das paisagens palestiniana) são mais pertinentes como resposta àquele blog. Expõem a contradição, em vez de entrarem num braço de ferro para ver quem é que jorra mais sangue.

Abraço.

Miguel Serras Pereira disse...

Caro João Pedro,
1. perfeitamente de acordo. Com uma reserva, todavia: se é indubitável que as imagens escolhidas -no post a que te referes: http://5dias.net/2010/06/14/o-cao-raivoso-o-anti-semita-e-o-filho-da-puta-outra-vez/ - pelo CV são mais pertinentes e "expõem a contradição", da prosa que as acompanha e da dos posts antecedentes não se pode dizer o mesmo.

2. Outro problema, que o teu post anterior já sugeria e que me parece importante sublinhar à minha maneira (explicitando as consequências da formulação que recebe no teu post e, em termos diferentes, no do João Vilaça) talvez possa merecer algum acordo também do Ricardo e fazer avançar o debate: refiro-me à necessidade de combater a estratégia regressivamente icônica, adoptada contra a exigência de dar conta e razão, "do irracionalismo mortífero que uma certa apoteose da imagem – a oposição entre a imagem e a palavra, em detrimento da segunda – comporta em termos de comunicação e de elaboração política da experiência".

Abraço para ti

miguel sp

João Pedro Cachopo disse...

Caro Miguel,

só uma nota em relação ao segundo ponto: mais do que opor o regime da imagem ao da palavra, eu insistiria – na mesmo espírito do teu comentário - em que no regime da imagem (contíguo ao da palavra), o uso desta é politicamente pertinente na medida em que dá que pensar (ainda que este pensar seja inseparável de um sentir), mais do que quando é empregue com o objectivo de suscitar uma reacção imediata. A política da imagem consistiria sobretudo nesse tornar “visível”, “palpável”, “perceptível” a contradição – que dá que pensar.

Abraço.

Miguel Serras Pereira disse...

João Pedro, é isso mesmo. Eu não falava de uma oposição por "natureza" - mas de uma oposição "política", ideologicamente construída. Em princípio, num registo que certa arte documenta bem, a palavra e a imagem - ou melhor o ícone - potenciam-se mutuamente. E, de resto, não há linguagem sem imagem.

Abrç

miguel sp

Ricardo Noronha disse...

Caros, gostaria de vos responder como as vossas observações merecem, mas estou assoberbado de trabalho e escrever este post já foi uma irresponsabilidade.
Se entendi mal a pulsão da morte, a minha auto-crítica. Mas não tenho a certeza de ter entendido mal. Em todo o caso, vocês chamaram ao debate demasiadas coisas para que eu vos possa responder como gostaria e, nalguns casos, continuaram a responder ao Renato, mais do que a mim.
Pareceu-me que, à boleia da desconstrução de alguns dos argumentos do Renato, vocês estavam a ir um pouco longe de mais nos vossos próprios argumentos. Fiquei mais esclarecido, ainda que não totalmente convencido. A luta continua.

PS- Caro João Vilaça, "esta constante intromissão do político nas outras dimensões de compreensao do real, com uma linguagem impermeável (e um paradigma cognitivo que está sempre a tropeçar e bloqueado na dicotomia binária do a favor/contra) a outras formas de problematização e questionamento crítico" parece-me um pouco exagerado, não?