26/12/10

Uma discussão necessária

Com o propósito simples de incitar ao aprofundamento da discussão do post do camarada João Tunes e a sua "clarificação a pedido"— embora sabendo bem que há alguns para quem discutir o problema só pode ser abominação e sacrilégio — e de convidar, nomeadamente, o camarada Ricardo Noronha a explicitar melhor o seu comentário a esse post, gostaria de citar aqui, uma vez mais, a seguinte passagem de uma entrevista concedida por Castoriadis em 1991, que me parece pôr o problema com suficiente clareza:

" [o PC] está condenado a dizer uma coisa e a fazer o contrário: fala de democracia e instaura a tirania, proclama a igualdade e realiza a desigualdade, invoca a ciência e a verdade e pratica a mentira e o absurdo. É por isso que perde muito rapidamente a sua influência sobre as populações que domina. Mas é também por isso que aqueles que aderem ao comunismo, pelo menos antes da sua chegada ao poder (…) [e]stão possuídos por uma 'ilusão revolucionária', acreditam de um modo geral que o Partido Comunista visa realmente instaurar uma sociedade democrática e igualitária. É por isso que um comunista que descobre a monstruosidade do 'comunismo realizado' pode soçobrar psiquicamente, ou tornar-se social-democrata, oiu manter um projecto de transformação social radical desembaraçado do mmessianismo marxista-bolchevique. Um fascista ou um nazi não pode descobrir, nas suas crenças anteriores, nada que o incite a mudá-las" (C. Castoriadis, Uma Sociedade à Deriva. Entrevistas e Debates, 1974-1997, Lisboa, 90 Graus, 2006, p. 300).

Depois, sublinhando que hoje manteria todas as reservas que aí enuncio em relação ao BE, gostaria também de repetir o seguinte excerto de uma "apelo ao voto no BE", que escrevi em Setembro de 2009 e que o camarada Zé Neves publicou no 5dias, semanas antes de ele próprio e o Ricardo Noronha, com o apoio do Nuno Ramos de Almeida, me terem convidado a integrar a tripulação desse blogue:

"Votarei no BE porque este é o partido que, apesar de tudo, [é] mais aberto a perspectivas de alargamento da cidadania activa, e o horizonte da minha perspectiva política é o governo igualitário e regular dos cidadãos pelos cidadãos – ou, se quiseres, a cidadania governante contra o poder de Estado e o poder político por ele enquadrado que se exerce através e a coberto da esfera económica “despolitizada”. Votaria no BE com mais convicção se este em vez de insistir tanto na conquista por dirigentes de lugares dirigentes na cena política estabelecida, insistisse na transformação dos modos e lugares de exercício do poder, apresentando a possibilidade de ter deputados na Assembleia da República como um passo não para virmos a ter Francisco Louçã (ou qualquer outro militante do BE) no lugar de primeiro-ministro, mas para avançarmos na construção de uma democracia que dispensasse esse cargo; não para virmos a ter o BE no governo, mas para transformarmos o modo de ser e a lógica hierárquica do governo; não para termos outras medidas políticas, mas outra maneira de fazer política. É, de resto, por isso que, admitindo embora a possibilidade e a necessidade de o grosso dos militantes e companheiros de jornada do PCP virem a integrar as fileiras do combate pela cidadania governante, penso que o PCP enquanto tal é, não só irrecuperável, como continua portador de um projecto de sociedade e tipo de regime que qualquer projecto de autonomia terá de remover do seu caminho. Do mesmo modo, é porque no BE – e apesar dos lugares mais ou menos cimeiros que possam ocupar – o contingente de “revolucionários profissionais”, que pretendem deter a consciência, a verdade histórica e o direito à direcção dos trabalhadores (disciplinando por via policial e militar em sendo caso disso as “ilusões” e “erros” da sua mão-de-obra), me parece […] tender a esbater-se, que – tendo também em vista tornar mais instável a hegemonia da cena política e o próprio regime, pondo a democratização das instituições na ordem do dia – darei ao Bloco o meu voto, estando disposto a apoiar muitas das lutas que trava. Haveria por certo muito mais reservas a pôr ao programa do BE, não só no plano das cedências práticas que tem feito à política profissional (a democracia e a classe política, bem como a distinção permanente e estrutural entre governantes e governados, são incompatíveis), mas também no das medidas concretas propostas (e, entre outras coisas, no que se refere à política internacional)".

Reconhecendo que, infelizmente, a profissionalização e funcionarização no BE, ao contrário do que eu esperava, tenderam, entretanto, não a esbater-se, mas a agravar-se, creio que a discussão sobre o tipo de colectivos capazes de introduzirem na ordem do dia, através de vários tipos de intervenção e proposta nas mais variadas frentes, as perspectivas da autonomia democrática só ganhou, de então para cá, em urgência. E tal é a razão porque retomo aqui o meu apelo a que a vamos fazendo. Tanto mais que a quadra do fim/começo de mais um ano é uma ocasião propícia a balanços e perspectivas. Ou não?

5 comentários:

Anónimo disse...

De acordo com tudo Miguel. E também, e principalmente, com a necessidade de passar a Vias de Facto.

Penso que é importante:

1º - Continuar a avisar a malta, como aliás o vias de facto tem feito, mas de forma mais continuada;

2º - Discutir formas de intervenção, lá onde cada um já participe - escola, família, trabalho, sindicato, actividades autárquicas, outros movimentos - que visem a introdução dos germes de uma nova ordem;

3º - Proceder à avaliação se as novas ideias reúnem já, a nível da sociedade, massa crítica que justifique a criação de uma organização, formatada em conformidade com os novos princípios e um programa mínimo. E que, à partida, mesmo não sabendo ainda tudo o que quer -
e que será sempre o que os seus membros decidirem - saiba pelo menos com clareza algumas coisas que não quer:

a) - um secretário geral
a) - lugares no parlamento;
b) - cargos de ministro;
c) - constituir-se, a prazo, como partido.

Abraço
nelson anjos

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Nelson,

de acordo, no essencial, com a sua proposta, embora alguns dos seus pontos necessitasse de alguma explicitação para dissipar possíveis equívocos.
Mas, se o leio bem, há um ponto fundamental: os partidos, sob as formas que lhes conhecemos, não podem satisfazer as necessidades da democratização das instituições económicas e governamentais existentes; também não podem ser os órgãos do exercício do poder pelo conjunto dos cidadãos auto-organizados. Forjar na acção formas de organização alternativas transversais aos partidos, devolvendo a todos e a cada um dos cidadãos o exercício de um poder "irrepresentável", porque responsável e directo, é, sem dúvida e a meu ver, o caminho a seguir… para abrir caminho à desprofissionalização da política e à cidadania governante.
Quanto a avisar a malta, continuarei a tentar fazer o que posso e a contar consigo e com os restantes interessados para fazerem o que, parecendo ser o mesmo, mudará de qualidade à medida que se for tornando mais comum.

Vigoroso abraço

msp

Miguel Sacramento disse...

Bom texto é este tipo de reflexão que se tem de fazer à esquerda.

Hoje escrevi um texto que se debruça sobre um tema parecido. A burocracia partidária e o desvirtuamento dos partidos de esquerda.

Aqui está o texto que promete polémica:

Leais são os carneiros militantes que seguem a manada partidária

http://arsenaldosinvalidos.blogspot.com/2010/12/entre-deslealdade-e-verdade.html

Miguel Serras Pereira disse...

Caro Miguel Sacramento,

do post que linka sublinho o seguinte: "Não há ninguém mais desleal para alguns, que uma mente livre, crítica e independente". E comento, por meu turno: a generalização desse tipo de mente, a extensão de uma mentalidade comum livre, crítica e independente, é condição necessária da democracia e dos cidadãos responsáveis que, só eles, poderão tornar possível o seu exercício.

Saudações cordiais

msp

Niet disse...

" Nós queremos ser iguais no que se refere à constituição do poder ", refere Castoriadis, a introduz o que apelida de Círculo da Práxis, que precisa fortíssimo: " Para nós, não se trata de atingir a homogeneidade, nem de suprimir as diferenças ou as alteridades na sociedade. Trata-se de suprimir a hierarquia política,a divisão da sociedade como divisão do poder e do não-poder.E sabemos que esse poder não é sómente e simplesmente " político " no sentido estreito. O que ´visamos, é a igualdade efectiva no plano do poder- e uma sociedade que tenha como pólo de referência essa igualdade ". O texto é de 1974 e, Mattick e Pannekeok, desde os anos 40 não cessaram de dizer outra coisa.Há distinções e nuances, claro. Mas o que importa é tentar analisar e ensaiar,retomando sem cessar os clássicos de base- Bakounine, Kropotkine, Trotski, Lénine. E fugir ao canto de sereia- em que caio por boa-fé - dos taumaturgos da social-democracia mais desbussolada...E não existe " teoria política"- no sentido restrito, frisa C. Castoriadis. Niet