13/01/11

Crime e tradição

Quando do seu anúncio, mereceu-me estranheza que a solenidade do programa “grande entrevista” liderado por uma eminência jornalística (Judite de Sousa) fosse canalizada para tratar de um crime cometido em Nova Iorque, mesmo sendo portugueses o agressor (e presumido/confesso homicida) e a vítima. Embora o convite dirigido a um eminente psiquiatra (Carlos Amaral Dias) moderasse o espanto pois o recurso a uma autoridade académica prenunciava certificação de seriedade no tratamento do tema. Equilibrado o espanto com a certificação de qualidade, abri-me a receber e perceber ao que ali se vinha.

Voltei ao espanto quando findo o programa. A jornalista de topo e o psiquiatra eminente conseguiram o previamente inimaginável no tratamento de um crime (crime de violência inaudita, sublinhe-se): trataram do agressor (explicando-o, contextualizando-o, quase o desculpando) e esqueceram em absoluto a vítima. Carlos Castro, o silenciado, a vítima, o assassinado, o do cadáver mutilado, não existiu naquele crime, senão enquanto elemento reflexo e causador de problemas e danos no agressor. Provavelmente, Carlos Castro foi evitado para ser poupado a diagnósticos desabonatórios. Infelizmente, pois estes interessavam ser revelados e muito. Ou seja, assistir-se a que duas personalidades públicas (a jornalista de topo e o psiquiatra de referência) dissessem, com saber sofisticado, cada qual em sua função, o que o senso comum na opinião dominante já decidiu em tomada de partido: o agressor foi vítima, triplamente vítima: da sociedade (nos seus apelos ao sucesso, à fama), das suas debilidades de personalidade e eventuais desvios psicóticos e ainda vítima da vítima (conspurcado que foi pelo “velho, porco e homossexual Carlos Castro”). E na poupança das referências à vítima, entrevistadora e entrevistado até ocultaram o dado essencial que deu o pano de fundo aos acontecimentos: fazendo fé nas teorias pró-agressor, este foi na época antecedente do crime um prostituto (eventualmente, prostituindo a sua heterossexualidade) e, pelo acontecido, um prostituto virado arrependido, insuportavelmente arrependido, violentamente arrependido, um arrependido homicida e profanador de corpos rejeitados. Com o preço de uma vítima, uma pessoa assassinada (com requintes de malvadez).

Este caso mostrou e mostra que a legislação, em Portugal, vai muito à frente da consciência social e cultural. A sociedade portuguesa, pesem as leis de evolução dos costumes, é profundamente conservadora (salazarenta em modalidade cavaquista) e, nos seus atavismos, particularmente homofóbica. Como manda a tradição. Ou seja, a sociedade é, culturalmente, muito mais cavaquista, incluindo em parte importante da esquerda, que aquilo que a esquerda pensa. E, perante isto, um homossexual, mesmo que assassinado, barbaramente assassinado, não pode esperar compaixão, respeito, indignação. Porque o afecto colectivo, a solidariedade de valores, desloca-se inteirinho, no caso, mesmo no caso deste crime horrível, para o agressor, o jovem, bonito, ambicioso, ingénuo/provinciano, transitoriamente equivocado sobre as suas preferências sexuais. Muitos atributos para disputarem inclinações públicas e afectivas relapsas a inclinarem-se para um homossexual, idoso, mesmo que ingenuamente convencido da paixão de um prostituto. Obviamente que Carlos Amaral Dias não partilha da onda homofóbica que se instalou por quase tudo quanto é sítio, o que seria feio em psiquiatra com fama académica. E tanto é assim que cuidou de avisar, apesar de nunca se ter referido a Carlos Castro, num despropopósito revelador, que nada o movia contra a homossexualidade. Exactamente o mesmo que declara, em abstracto, a larga maioria dos homofóbicos.

(publicado também aqui)

6 comentários:

maria disse...

eu cá acho que a omissão da vitima tem a ver com ela ser uma víbora.é mesmoo difícil ter pena duma. se fosse uma víbora heterossexual suponho que o tratamento era o mesmo. não me diga que víboras homo devem ter tratamento especial?

JA disse...

Compreendo, e partilho, a sua indignação com o tratamento que este caso tem tido nos media, sendo as partes apresentadas como iguais, como se não houvesse um assassino e um assassinado (de forma violenta e cruel).
Não direcciono essa sua crítica à intervenção do Amaral Dias. Para um "Psi" (Psicólogos, Psiquiatras, Psicanalistas) a pessoa do Carlos Castro não tem um interesse particular. É uma pessoa normal com uma actividade mediática. Mesmo o facto de se apaixonar por um miúdo não tem nada de extraordinário: todos conhecemos "velhos" que se apaixonam por miúdos ou miúdas muito mais novos/as. Já o Renato Seabra apresenta um comportamento muito mais complexo e muito mais interessante.
Segundo o que se julga saber (baseando-me no que foi dito no programa de ontem), o Seabra é alguém que combateu os seus valores (pareceu-me ouvir que seria religioso / conservador ?) e a sua identidade (pelo menos no que respeita à orientação sexual) com o objectivo de subir num meio que até há pouco lhe era desconhecido. Salvo melhor interpretação ele enganou e manipulou o "velho", aproveitando-se da cegueira do apaixonado, ao mesmo tempo que se enganava a si próprio pensando ser capaz de assumir aquele papel (o de namorado de um homem mais velho) pelo tempo necessário para o cumprimento dos seus objectivos.
Uma pessoa normal (e pouco interessante para um Psi) que estivesse no lugar do Renato, reparando que não era capaz de manter a farsa, saltaria fora da relação, provavelmente envergonhado. Mas o Renato agrediu até à morte o seu companheiro dos últimos meses - uma pessoa que estava apaixonada por si. Cortou-lhe os genitais! E depois afirma que já não é gay e que libertou o Carlos Castro dos demónios. Este comportamento faz com que eu perceba o interesse de um Psi por esta pessoa. Percebo também que a mensagem essencial que um Psi pode passar sobre este caso é a de que isto nada tem que ver com o Carlos Castro, com o que ele era ou com o que fazia. Todo este caso resulta do Renato. À luz do que se sabe até agora, é a sua formação, os seus valores, as suas atitudes, os seus comportamentos, os seus distúrbios que devem ser analisados para compreender este caso.

Miguel Serras Pereira disse...

Já reparou, Maria, que a peçonha, hélas, não é prerrogativa exclusiva daqueles a quem você chama "víboras"?

Um dia uma víbora mordeu num pé
a pérfida Cloé.
Perguntarão:
Que sucedeu à pérfida Cloé ?
Morreu ?
Isso morreu ela...
Mal sentiu a mordidela.
Não teve febre, nem ardor, nem nada.
- A bicha é que morreu envenenada!

Augusto Gil é um poeta que não frequento habitualmente nem considero ser de leitura prioritariamente recomendável. No entanto, o seu comentário teve o condão de despertar estes seus versos na minha memória. Não queira saber porquê.

msp

Anónimo disse...

o tratamento que este caso tem vindo a receber nos media, e apesar de não discordar que pode resultar de preconceitos homofóbicos, parece-me ser influenciado por uma outra suspeita que pessoalmente também partilho: a de que a vítima nesta relação não seria, de todo, o carlos castro. não sei suficiente sobre o caso para ter a certeza disto mas já ouvi suficiente de ambos os lados para que esta dúvida se tenha instalado no meu espírito.
quanto às consequências desta relação disfuncional, não tenho dúvidas: uma tragédia! Com Carlos Castro como a principal vitima, claramente.

João Tunes disse...

Maria,
A crispação que a leva a chamar víbora ao assassinado, anuncia problemas. Tente conversar, calmamente, sobre isso com a sua companheira, antes que haja uma tragédia cama dentro. É que um dos problemas com os crimes fortemente mediatizados como este, é o das suas repercussões por efeito de imitação.

JA,
Concordo com quase tudo do que disse. Mas a sua desculpabilização de Amaral Dias trata da sua intervenção televisiva como se de trabalho em recato laboratorial se tratasse. A intervenção pública deve ter outros parãmetros.
O "cordão humano" em Cantanhede (com centenas de pessoas), os comentários nas edições on-line dos jornais, o grupo de caça aos gays no Face Book, mostra que há uma vaga homofóbica, brutal, que despertou e se manifesta, mostrando a força cultural da herança salazarenta. A "grande entrevista" nada fez contra isso, pelo contrário.

Ana Cristina Leonardo disse...

João, permita-me uma pergunta: mas quem é, afinal, esse Amaral Dias? Na minha modesta opinião, e eu não tenho TV, esse psi está bem para a entrevistadora que refere.
Quanto à morte do Carlos Castro, que por acaso conheci e com quem me cruzei várias vezes, é apenas - e só - uma tragédia (o que não é pouco e, neste caso, é infelizmente tudo). Querer tirar lições ou estabelecer paradigmas deste caso é uma patetice boa para psis que gostam de ir à televisão, e para televisões que gostam de vencer audiências.
Quanto aos comentários que andam por aí e, sobretudo, ao cordão humano de apoio ao rapazola, é o portugal no seu melhor.