03/01/11

Sobre uma investida polémica do Bruno sobre o recente Prémio Pasternak (que se atreveu a elogiar com reservas o desempenho de uma star de Paris)

Depois de, movido por uma talvez demasiado humana curiosidade, ter lido o post em que o Bruno tenta desagravar do elogio com reservas que o Rui Bebiano lhe consagra o magistério do seu mandarim favorito, NÃO pensei dever intervir na discussão. No entanto, ao ver. algumas horas depois, que o mesmo Bruno, noutro post, noticiava a realização de uma mesa-redonda sobre O Espectro da Anarquia, e considerando que, com isso, perpetrara um acto que lhe valeria ou um misericordioso paredão sumário ou uma longa e penosa reeducação num campo "soviético" ou chinês, caso o tivesse feito na condição de súbdito, privado dos direitos de cidadania mais elementares, na Rússia de Estaline ou na China do período heróico do maoísmo, entendi que, afinal, talvez valesse a pena tentar chamar um pouco à razão a jovem promessa do 5dias - para seu próprio bem, claro, bem como para sincero regozijo dos amigos que tem aqui no Vias. Eis, então, o que me ocorre dizer sobre a investida polémica do Bruno.
Não é preciso partilhar dos pressupostos do Prémio Pasternak - que, apesar de a meu ver a sua caracterização pelo Bruno relevar da distorção, escreveu sem dúvida um post inquinado, por um lado, por algumas inexactidões apressadas e, por outro, marcado por algumas das insuficiências críticas recorrentes na sua reflexão -, não é preciso tanto, dizia eu, para compreender que a demagogia diletetante do pobre AB, as suas galantes especulações sobre os "matemas" do comunismo, são alimentadas em profundidade (pouca) por um cientismo à la Althusser - "uma teoria do ser que justifica o ser do poder" (H. Lefebvre) - que exprime, conforta e propagandeia aquilo a que um Rancière chamaria "ódio à democracia". O pobre AB odeia a democracia, a sua radicalização como "horizonte do comunismo" (D. Bensaïd), a doxa, o diálogo (excepto como ardil pedagógico), a ágora e a vontade deliberativa da ecclesia (assembleia ou conselho) igualitária, como um célebre arquitecto odiava a rua. Quer dizer, odeia a sua desordem, indeterminação, ou "potência de metamorfose" de meio propício ao "acontecimento", com que, ao mesmo tempo, vai enchendo a boca.
A questão é simples e não há volta a dar-lhe: se há ciência política e figura particular (de especialista, sábio, pastor, profissional…) que seja sua legítima detentora, a política será quando muito uma técnica especializada, tributária de um saber e da sua hierarquia, e não criação e responsabilidade da gente comum da cidade (reduzida, para seu supremo bem, a objecto dos governantes legitimados pela competência filosófica ou científica). E a essa gente comum, caso a sua relutância à verdade do rei-filósofo ou do novo príncipe-partido ponha em perigo o estatuto hierárquico de AB, o que há a fazer é dar-lhe "para baixo em cima da cabeça com um pau" (Cesariny). Do mesmo modo, se há ciência propriamente dita da história, ordem de determinações que forneça o princípio da sua explicação suficiente, o acontecimento é, quando muito, consequência e ou ilustração edificante, pois que todo o real (todo o ser) é, afinal, como a pescada (que já o era antes de o ser).
Se, como diz o poeta (Sophia), "O primeiro tema da reflexão grega é a justiça. / E eu penso nesse instante em que ficaste exposta. /Estavas grávida, porém não recuaste./ Porque a tua lição é esta: fazer frente", é porque a justiça, não se trata de descobri-la, mas de fazê-la - de criá-la - sem modelo anterior ou garantia última antecipada. Na própria medida, de resto, em que, como diz uma vez mais o poeta (Cesariny): "nada está escrito afinal".

Post-scriptum: Bruno, que este novo ano te traga a phronésis que permita à tua inteligência a sua afirmação mais plena - sendo que esta será democrática, se não quiser ficar a menos de meio caminho e em processo de retrocesso por referência ao melhor do que se intui no seu impulso - e seja, em tudo o mais, um excelente 2011 para ti.

11 comentários:

Niet disse...

Grande texto e fulgurante entrada em 2011: Aristóteles supera Platão,claro!Salut! Niet

Ana Cristina Leonardo disse...

pois que todo o real (todo o ser) é, afinal, como a pescada (que já o era antes de o ser).

... ainda me estou a rir, apesar do louis ter morto a mulher

brunopeixe disse...

Miguel,

És muito simpático comigo, e mais simpático ainda com o Rui Bebiano.
Um excelente 2011 para ti também.
Até já.

brunopeixe disse...

Miguel,

Pretendo debruçar-me de forma um pouco mais séria sobre este teu post, provavelmente na minha tasca, que isto merece um post de resposta. Mas não consigo deixar de te dizer uma ou duas coisas.
Reitero os votos de um bom ano, e os agradecimentos pela simpatia irónica (não me parece sarcástica, mas se calhar é só o meu parecer) com que te diriges a mim.
Mas deixa-me dizer-te que este teu post, apesar dos louvores do Niet e da ACL, não deixa de ser decepcionante. É engraçado que nesta questão em que, para o bem e para o mal decidiste intervir, me escolhas como alvo. E ainda por cima por coisas que eu não disse, nem defendi, e num tom arrogante e paternalista que te desconhecia. E isto para quem prega a verticalidade nas relações e a comunidade dos iguais no aqui e no agora. Miguel, se te desses ao trabalho (eu bem sei que não é fácil) de ler o Badiou, encontrarias nele, desde muito cedo o axioma (partilhado pelo Rancière, que deve tanto, mas mesmo tanto, ao Badiou) de que a igualdade não é um objectivo ou uma doutrina, mas sim um princípio a ser aplicado no próprio processo de luta.
Tu atacas-me, muito simplesmente, por saberes que sou badiouano, e por não gostares do Badiou, ou melhor, da ideia distorcida que tens do Badiou.
É que compreendo mal, porque é que, quando intervéns acerca do meu post sobre o texto do Bebiano, escolhas dar porrada no Badiou, e ser ao mesmo tempo tão condescendente com o Bebiano. Se leste o Bebiano, e se leste os disparates sobre Hobbes e Maquiavel, não me venhas dizer que são inexactidões apressadas. Porque é que o Carlos Vidal recebe insultos e o Bebiano palmadinhas nas costas?
Será porque é um ex-Vias de Facto? Porque partilha o teu ódio ao PCP, de resto esse sim um ódio muito mais real do que o o tal ódio do Badiou à democracia? Porque faz parte da tribo?
Deve ser o exercício livre e igualitário da inteligência de que tanto falas, mas que só vale para alguns. Parece que alguns animais são mesmo mais iguais do que outros.
Queria deixar-te um sincero obrigado por me chamares á razão a propósito de um iniciativa, organizada por um colectivo do qual faço parte desde que começou vai fazer agora três anos, e que já te convidou para alguns acontecimentos. Sempre a contribuir para a plena afirmação das inteligências.

Muito sinceramente, fica com um abraço.

Anónimo disse...

Custa-me que nos comentários não refiram as contribuições do Niet e da ACL, irmãos gémeos blogosféricos Já agora porque não recorrer aos pré-socráticos ou mesmo a Parménides, porque "o ser é".

Ana Cristina Leonardo disse...

Caro anónimo, fui surpreendida, durante o meu interregno bloguista e tarefas tardias, pelo seu enigmático comentário. Asseguro-lhe que não tenho irmãos, muito menos gémeos, e certamente não blogosféricos. Dito isto, acrescento que esta é a pura das verdades e, como diria Parménides, que cita e muito bem, o que é tem uma força do caraças!

Miguel Serras Pereira disse...

Bruno, não te queria ofender e muito menos afectar ares de superioridade em relação à tua pessoa. Limitei-me a aconselhar um pouco mais de reflexão ao teu ardor, como poderia fazer - e tenho feito - em relação também a companheiros mais velhos.
O que me exaspera no teu post não é tanto gostares ou não do Badiou, mas duas coisas: 1.sugerires que, de um modo geral, sem teoria revolucionária e organização que a aplique, substituindo-a à consciência ou sentido comum dos comuns, não há "prática revolucionária"; 2. o contágio a que sucumbes daquilo a que Castoriadis chama o "cretinismo" específico e funcional dos filósofos especulativos profissionais, afectando aqueles que ele próprio considera como maiores: é preciso levar pela orelha, diz ele, o filósofo às câmaras de tortura latino-americanas, e pedir-lhe que diga então o que significa ao certo a frase "todo o real é racional", etc. Claro que se te poderia fazer uma ou várias perguntas semelhantes: o que é que quer dizer que um tiano abjecto como Estaline, ou uma clique de sátrapas corruptos, ávidos e servis como a dos seus eunucos do PCUS, é uma figura da emancipação? O que é que o delírio assassino e de déspota obscurantista do Grande Salto em Frente tem a ver com a construção da democracia real? Ou ainda: como é que a lavagem ao cérebro conduz à consciência da classe para si - e o que quer dizer igualdade quando uns têm o poder de decidir da vida e da morte dos muitos, a pretexto da necessidade de os salvar de si próprios? O que é que quer dizer "socialismo", "fim da exploração do homem pelo homem", quando uma camada de dirigentes (classe dominante) dispõe dos meios de produção e das alavancas de comando da organização e gestão da produção e a grande maioria dos elementos da população é reduzida a mão-de-obra servil ou matéria-prima da sua (da classe dominante) engenharia social?
or fim, deixar a ideia de que uma teoria complexa, de acesso difícil, exigindo um esforço especializado, pode ser um ingrediente necessário da emancipação é confundir esta com o governo dos mais sábios ou mais esclarecidos e consagrar o princípio hierárquico contra qualquer forma de democracia - além de que significa confundir a competência profissional do cientista ou filósofo a tempo inteiro com a consciência e reflexividade políticas comuns, enquanto momento do exercicio combatente ou governante da democracia.

Bom, de momento, por aqui me fico e aguardo com curiosidade as tuas reflexões. Mas, por favor, não me digas que eu ignoro as confusões desastrosas que arruínam o extravagante elogio que o RB faz do AB. O que não significa que, apesar das insuficiências recorrentes a que aludo, o RB não seja capaz de melhor, levantando não raro verdadeiros problemas.

Respondi-te?

msp

brunopeixe disse...

Miguel,

Respondeste mais ou menos e confundiste um bocadinho mais.
Olha, vamos imaginar esta situação hipotética: alguém lia o teu comentário sem ter lido o meu post ou o do Bebiano. O que é que ele pensava? Pensava que eu defendi ou justifiquei as atrocidades que enumeras. Tu decides intervir numa questão levantando questões que não estão lá tratadas e acusando-me de posições que nunca defendi.
Vou, por isso, pedir-te uma coisa, que me digas onde é que defendi que « sem teoria revolucionária e organização que a aplique, substituindo-a à consciência ou sentido comum dos comuns, não há "prática revolucionária" ». É que não escrevi isso no meu post, nem em nenhum outro, e por uma razão muito simples: não acredito nisso. E já agora deixa-me dizer-te que o Badiou também não defende tal posição. Primeiro: porque não é da terceira internacional. Segundo: porque não é sequer leninista. E terceiro, surpresa, porque não é Marxista, nem de perto, nem de longe. Não foste tu que traduziste o Ticklish Subject? Não leste a parte em que o Zizek escreve sobre não-marxismo do Badiou, Rancière e Laclau? Apesar de distorcer sistematicamente as posições do Badiou, ele aí não se enganou.
Além de que és inteligente o suficiente para saber que apesar de se afirmar Platónico, isso não implica que o Badiou defenda o governo dos esclarecidos. por exemplo, o teu pensamento parece-me fortemente marcado pelo Aristóteles. Agora, não é por isso que vou supor que defendes a escravatura.

Um abraço,
Bruno.

Miguel Serras Pereira disse...

Bruno, é difícil saber o que é que tu defendes e condenas - e nisso, sem dúvida, o AB segue-te o exemplo (que acontece ao próprio Zizek, nos seus demasiados momentos mais histriónicos, seguir também). Que natureza social e política tinham os regimes que praticaram as atrocidades a que te re-referes? Eram socialistas, cometendo embora erros, ou foram autores de políticas monstruosamente anti-socialistas?
Como se pode ser platónico sem se defender o primado do teórico-especulativo ou a supremacia de uma figura ou de outra do rei-filósofo e dos funcionários da Verdade? E negar o cientismo pós-althusseriano do Badiou parece-me obra.
Mas, enfim, gostaria, então, que te definisses politicamente, que explicasses um pouco melhor a proposta com que respondes ao "Que Fazer?"

À tua, pá

msp

Niet disse...

Ao anónimo da 1.11 da matina: Creio que não lhe ficava mal, a essas horas de negra reflexão,se se deixasse perturbar por aquela injunção lacaniana que precisa, num melodrama freudo-marxista -dadaísta singular: " Não sabe o que diz porque desconhece o que deve pensar- social, política e culturalmente falando...".Por acaso, até prefiro o " ruminar " do Kantbuch heideggeriano aos matemas sofisticados do neo-materialismo aleatório à la Badiou.Niet

Anónimo disse...

Com efeito, é difícil saber o que Bruno P. condena ou defende porque ele não é nada daquilo que diz ser...

de tal forma que um gajo que faz um ataque cerrado à posição académica de R. Bebiano é incapaz de dizer que está a fazer um mestrado quando o enaltecem por estar a acabar o Phd.