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26/09/11

Das vantagens em ir envelhecendo

Há quem diga que a velhice traz sabedoria; outros que é mais rugas e reumático. Pontos de vista…
Por falar em pontos de vista – não confundir com o relativismo da razão: eu tenho um ponto de vista, tu tens um ponto de vista, ele tem um ponto de vista… porreiro, pá! –, veja-se como a Relatividade permite interpretações opostas. Se o tempo se torna mais lento quando a velocidade aumenta, com a idade devíamos poder ir adiando a morte já que a tendência é, facto incontestável, para perdermos mobilidade. Por outro lado, contudo, também podemos dizer que, à medida que o tempo que resta encurta, a velocidade de aproximação à meta dispara apesar do acréscimo exponencial das artroses.
Seja qual for a forma como olhemos a coisa, a grande vantagem da velhice não parece afastar-se muito da grande vantagem em ser-se rico: poder dizer o que nos vai na gana e o mundo que se lixe (o que não significa que a maioria dos velhos ou a maioria dos milionários tenha por hábito fazê-lo).
Martin Amis não é velho mas também não vai para mais novo (n. 1949). Não sei se no caso dele a idade virá ao caso, mas a forma como critica Saramago em O Segundo Avião faz prova de uma nonchalance só admissível a partir dos cinquenta e muitos.
Cita-o (“Ah, sim, os horrendos massacres de civis causados pelos chamados terroristas suicidas… Horrendos, sim, sem dúvida; condenáveis, sim, sem dúvida, mas Israel ainda tem muito a aprender se não é capaz de compreender as razões que podem levar um ser humano a transformar-se numa bomba.”), mas só para não o poupar: “E se formos ouvir a retórica do delírio e da auto-hipnose, então mais vale que a ouçamos de um laureado de Estocolmo (…) [cuja] linhagem da prosa (…) na verdade é a mais pura e empertigada grandiloquência (poderia chamar-se-lhe nobelês).”
O mais radical encolher de ombros à opinião alheia, vai, porém, para Francis Bacon que, quando interrogado sobre pintura abstracta, respondeu (cito de memória): “É assim como o padrão dos sofás. Fica bem na sala…”.

15/07/11

12/03/11

Já leu?

Estreia na ficção de António Figueira (n.1961), O Filho de Campo de Ourique e Outras Histórias reúne 17, esgalhadas sob o signo da ironia.
Manejo robusto da linguagem e uma construção cheia de piscadelas de olho ao leitor (as histórias lembram “bonequinhas russas” ou “caixinhas chinesas”, conforme — ideologicamente — se preferir) são qualidades evidentes deste primeiro livro.
Duas coisas a destacar, de caras: domínio alargado do português — contrariando a actual tendência para o encolhimento da língua, à imagem e semelhança do que já acontecia ao Deus de Bouvard e Pécuchet —, e desrespeito pelas fronteiras dos géneros, opção que me parece inevitável para quem queira fazer hoje literatura.
As histórias (ou contos, não há que ter medo das palavras...) doseiam com parcimónia imaginação e verosimilhança, construindo personagens e situações reconhecíveis e plausíveis mas, ao mesmo tempo, muito para lá do registo realista, visivelmente contaminado o seu autor pelo mal de Montano, enfermidade cuja sintomatologia foi brilhantemente descrita por Enrique Vila-Matas.
O filho de Campo de Ourique (1961-1986), o próprio (o que dá título ao livro), escritor genial embora tardio e, infelizmente, como Sócrates, o grego, sem herança escrita (não vou contar para não perder a graça...), foge, contudo, à categoria dos “escritores do não” tão querida ao escritor espanhol, espécimen português típico, ou seja, combinação explosiva de preguiça, arrebatamento e circunstâncias infelizes, cumpridor, pois, da máxima lusa: tudo isto existe, tudo isto é triste, tudo isto é fado.
E assim seria, se António Figueira não optasse pelo saudável distanciamento da ironia, enquanto se mostra/esconde nesta espécie de auto-ficção rés-vés Campo de Ourique cheia de saudáveis estrangeirismos.

O Filho de Campo de Ourique e Outras Histórias, António Figueira, D. Quixote

08/03/11

"Isto é leninismo, puro, sem gelo nem aperitivos"

Nunca a Saul Bellow (1915-2005) poderiam ser atribuídos os versos de Rimbaud: Par délicatesse/ J'ai perdu ma vie.
Polemista, cinco casamentos e entrevistado temível, Bellow foi exuberante na ficção e nas ideias. Restará para sempre como autor do extraordinário Herzog, mas também da pergunta Quem é o Tolstoi dos Zulus? O Proust dos Papuas? Ficaria feliz por poder lê-los, sobre a qual se explicaria mais tarde, classificando o escândalo provocado pela sua inconveniência de jornalístico, dado a frase ter sido retiradado contexto... (Saul Bellow, como Karl Kraus, não era grande admirador de jornalistas).
Israel, por seu turno, não é tema que se chame para a mesa, a não ser que se queira correr o risco de azedar o jantar.
O resultado da combinação do homem e da sua circunstância (no caso, judeu americano em visita à cidade santa das três religiões monoteístas) deu origem a Jerusalém Ida e Volta, um título datado de 1976, já lá vão, portanto, 35 anos, sem que nada de substancial se tenha alterado.
Escreve Carlos Vaz Marques, no Prefácio, que se trata de um livro político. Certamente. Em Jerusalém seria impossível fugir a isso, além de que Bellow não é um viajante qualquer — o seu coração bate por Israel:
Está-se numa cidade como muitas outras — bem, não exactamente, pois das cidades antigas que já visitei Jerusalém é a única em que as antiguidades não são expostas como relíquias, mas têm um uso diário. Ainda assim, é uma cidade moderna com serviços modernos. Fazem-se compras em supermercados, diz-se bom-dia aos nossos amigos pelo telefone, ouvem-se orquestras sinfónicas na rádio. Mas, de repente, a música pára e dá-se a notícia de uma bomba terrorista. Mais uma explosão em frente de um café na Estrada de Jafa: seis jovens mortos e trinta e oito feridos. Angustiados, pousamos a nossa bebida civilizada. Apreensivos, vamos para o nosso jantar civilizado. Por todo o lado, explodem bombas. Em Londres, usou-se dinamite ainda há pouco tempo. A diferença está no facto de, quando explode uma bomba num restaurante do West End, não se pôr em causa o direito fundamental da Inglaterra à existência.


Se a política é o fio condutor dos vários textos reunidos, o mais interessante é o enorme talento literário de Bellow a transpirar por todos os parágrafos. É difícil resistir a frases como: A polícia devia ser ‘politizada’ e transformada, na medida do possível, num braço paramilitar e guerrilheiro do governo revolucionário, que o escritor de Chicago remata com Isto é leninismo, puro, sem gelo nem aperitivos.
Como na ficção, também aqui Bellow se mostra capaz de acrobacias estonteantes, passando do tema mais árido ou elevado à comicidade mais livre e inesperada: O julgamento moral, um espectro na Europa, metamorfoseia-se num gigante vigoroso quando se fala de Israel ou dos palestinianos. (…) Como a Suíça está para as férias de Inverno e a costa da Dalmácia para o turismo de Verão, Israel e os palestinianos estão para a necessidade de justiça do Ocidente — são uma espécie de estância moral.
A sua discordância de Sartre — explanada com vigor e ironia — beberá muito dessa recusa em deixar-se levar pelo intelectualismo das ideias, fazendo questão de as chamar à terra. Ou como disse de forma definitiva Allan Bloom (que Bellow imortalizaria em Ravelstein, o seu último romance publicado no ano 2000), he has always understood that even if you are on your way from Becoming to Being, you still have to catch the train at Randolph Street.
O livro é, sobretudo, uma colecção de tipos impagáveis, personagens romanescas desenhadas com profundidade, verdade e compaixão (Philip Roth lembrou uma vez que os retratos do escritor estavam na linha de Rembrandt, uma comparação que vale pelo menos dois doutoramentos em Bellow).
Figuras públicas de topo como Teddy Kollek, presidente da Câmara de Jerusalém, Isaac Rabin, Henry Kissinger, Mahmud Abu Zuluf, editor do jornal árabe de maior tiragem em Jerusalém, etc., mas também John Auerbach, marinheiro kibbutznik que acaba de perder o filho, Moshe, massagista competente que gosta de conversar sobre literatura, Meyer Weisgal, octogenário e pioneiro sionista fundador do Instituto de Rehovoth, Dennis Silk, poeta cansado da guerra…


Enquanto se aguarda a tradução de Letters, compilação da correspondência de Bellow publicada no final do ano passado, este livro é um excelente aperitivo. O tema, dramático, não podia ser ao mesmo tempo mais literário, já que é a própria vida, com as suas contradições, paradoxos, crueldade, beleza, desordem e multiplicidade que se joga naquele pequeno pedaço de terra. Ou como se conta na anedota judaica: Deus guiou o povo eleito no deserto durante quarenta anos, para o conduzir ao único lugar do Médio Oriente onde não petróleo.
Alexandra, à data mulher de Bellow, acompanha-o na viagem. Não é judia e atravessa o livro discretamente, sem chegar de facto a entrar nele. Contudo, ainda a caminho de Jerusalém, o diálogo entre ela e o marido diz tudo sobre a tragicomédia do um conflito que teima em não se resolver.
No avião, a abarrotar de ruidosos hassidim, Alexandra comenta: — Eu gosto deles (…) São tão animados, tão infantis. — Viver com eles não te havia de parecer tão fácil (…) — Mas são tão joviais (…). Adoro aquela roupa. Não consegues arranjar um chapéu daqueles? São lindos. — Não sei se os vendem a gentios.
A vida e Bellow no seu melhor.

Saul Bellow, Jerusalém Ida e Volta, Tinta-da-China, 2011, trad. Raquel Moura