Rui Albuquerque escreveu (há quase dois meses, mas o que era para ser uma pequena resposta foi-se desenvolvendo...) no Delito de Opinião sobre "Esquerda e direita".
Note-se que ele farta-se de escrever passagens clarificando que com "direita" se refere a apenas alguma direita (enquanto com "esquerda" é mesmo a esquerda toda), portanto se calhar o post até seria mais correto chamado de "Esquerda e liberalismo" (já que no fundo não incide sobre a diferença entre a esquerda e a direita, mas entre a esquerda e uma facção - provavelmente até minoritária - da direita).
Mas, de qualquer maneira, aqui vai uma mistura de resposta e de comentário, ponto por ponto:
Re: Esquerda e Direita (II)
Re: Esquerda e Direita (III)
Re: Esquerda e Direita (IIIa) - ainda o Estado, a Propriedade e "direitos naturais"
Re: Esquerda e Direita (IV)
Re: Esquerda e Direita (V)
Re: Esquerda e Direita (VI)
Este post, ainda que indo ao contrário da ordem cronológica, vai ficar em primeiro, por uma questão de orientação
28/11/17
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10 comentários:
Excelente resposta, Miguel. Porque é que será que a ignorância sobre as especificidades, incluindo no que se assemelham e diferenciam, das várias ideologias políticas parece crescer à medida que nos aproximamos da Direita mais radical, nas suas várias formas? Será porque só assim é possível a alguém manter-se crente? É possível. A linguagem dos "direitos naturais" tem forte inspiração religiosa, o que não deixa de ser irónico na boca dum auto-denominado "liberal".
Abraço,
Pedro
Até acho que esse é um ponto em que uma diferença gramatical aparentemente insignificante muda a conotação de uma expressão: "direito natural" evoca algo de fundo religiosos; mas basta passar para o plural ("direitos naturais") para evocar filósofos e revolucionários anticlericais dos séculos XVIII e XIX.
Que excelente conjunto de artigos.
Não que os textos originais parecessem tanto (na sua maioria trata-se de um "credo" tão infantil que até mete dó), mas para terceiros como eu ler estes textos é um prazer e uma oportunidade para aprender mais.
No entanto, não fui capaz de ler o texto «Re: Esquerda e Direita (IIIa) - ainda o Estado, a Propriedade e "direitos naturais"» porque o blogger deu-me o erro: «Your current account (jvgama@gmail.com) does not have access to view this page.
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De resto, só tenho pena que o Miguel Madeira não tivesse também aproveitado para mencionar que até existem à esquerda mais instintos anti-autoritários do que à direita, pelo menos nos EUA mas não só, de acordo com o trabalho dos psicólogos (e não só) que se têm interrogado sobre essa questão:
http://esquerda-republicana.blogspot.pt/2011/07/esquerda-e-mais-liberal-que-direita_02.html
http://esquerda-republicana.blogspot.pt/2011/07/esquerda-e-mais-liberal-que-direita_03.html
http://esquerda-republicana.blogspot.pt/2011/07/esquerda-e-mais-liberal-que-direita_11.html
Experimente ler o texto "IIIa" agora - eu em vez de meter o link para "visualizar" o post, tinha metido o link para "editar"
Olá aos dois,
Acho que vou acabar por fazer um post sobre o que significa "direito natural", quanto mais não seja porque o signficado da expressão é muito variável. Com efeito :
- Na antiguidade romana, o direito natural designava as regras de justiça seguidas por todos os seres animados, incluindo os animais. O ius naturale opunha-se ao ius gentium (direito dos povos, parecido com o nosso direito international), e ao ius civile (o de Roma).
- Com a modernidade e a chamada escola "jus-naturalista" (século XVII), o direito natural passou a designar os preceitos jurídicos fundamentais pretensamente assentes na simples razão, e como tal universais (a nossa "lei da boa razão" de 1769 faz eco a esta concepção). Esta escola, da qual Grotius é uma das figuras totémicas, opõe claramente o "direito natural" ao "direito divino".
A partir destas raízes bastante heterogéneas, desenvolveram-se inúmeras teorias, umas apologéticas, outras críticas, em relação à noção de "direito natural". Todas debatem questões como : a natureza imutável/variável, intangível/adaptável, absoluta/relativa do direito natural. Curiosamente, as oposições em relação à ideia de direito natural e ao seu lugar no ordenamento político e jurídico são muito mais complexas do que uma simples oposição esquerda/direita. Há uma esquerda crítica em relação à noção, e também uma direita hostil à ideia (os conservadores tradicionalistas franceses falam em "droits-de-l'homisme e associam a ideia a uma crença irracional na existências de direitos "naturais" intangíveis do indivíduo). Hoje, provavelmente, existe um certo consenso, entre os sectores mais moderados, no sentido de se reconhecer a existência de um direito "natural" (ainda que relativo e precário) ao qual o Estado se deve submeter, e temos aqui a ideia de Estado de direito, com a qual se identificam largos sectores da esquerda e largos sectores da direita.
Quando o R. Albuquerque se refere à concepção de um indivíduo que possui direitos naturais inalienáveis antes e independentemente da sociedade, ele situa-se clara e assumidamente na tradição jusnaturalista e no espírito dos juristas do século XVII. Mais concretamente, reclama-se de uma tradição venerável e de uma elevada coerência, com raizes em Hobbes e, mais ainda, em Locke, com a qual podemos identificar Stuart Mill (e talvez também J. Bentham), assim como Hayek, que é evidentemente o autor em quem o R. Albuquerque se pretende filiar directamente.
Julgo que é um erro considerar que esta filosofia se reclama de uma concepção "religiosa" (embora seja obviamente compatível com ela, como praticamente todas as concepções são, incluindo o marxismo-leninismo). Não tem nada a ver. Reclama-se com certeza de uma ética que comanda o respeito da pessoa humana, mas esta ideia não precisa de ter uma base religiosa e não é apanágio de uma religião, seja ela qual for. Esta ideia pode ser, e muitas vezes é, suportada por considerações racionalistas completamente ateistas ou agnósticas.
(continuação do anterior)
Finalmente, acho que o que ele diz tem bastante sentido e constitui um muito bom ponto de partida para o debate. Com efeito, a direita (bom, digamos antes, a direita liberal) identifica-se com a ideia do primado do indivíduo e dos seus direitos, como realidade intangível que a sociedade, o Estado ou a colectividade não deviam poder por em causa ou limitar.
A isto, a esquerda (bom, mais uma vez, e de forma reflexa, uma certa esquerda, que eu não me importo de chamar "liberal", desde que isso não nos remeta para o liberalismo económico), contrapõe que a consagração absoluta dos direitos naturais do indivíduo, na sua versão formalista oriunda do jusnaturalismo, com primado do direito de "propriedade" oponível ao monarca e ao poder da colectividade, é um logro que esconde necessáriamente, na prática, e tendo em conta a realidade material, social e económica, o sacrifício dos "direitos" da maioria, completamente esvaziados de conteúdo, em benefício de "direitos" de uma minoria que se apresentam, que se exercitam e que se perpetuam como autênticos privilégios.
Pessoalmente, não tenho problema nenhum em dizer-me "de esquerda" neste sentido. Vocês têm ?
Abraço
Agora está a funcionar, vou ler.
No meu comentário anterior onde escrevi "parecessem" quis escrever "merecessem".
A esquerda atual pode não gostar muito da expressão "direito natural" ou "direitos naturais" (suspeito que por causa da sua associação histórica ao liberalismo), mas, se alguma coisa, até é muito mais dada que a direita a achar que leis em vigor ou tradições estabelecidas podem ser injustas; a mim, só me parece possível defender isso fazendo apelo a uma espécie de "direito natural", como esse nome ou outro (claro que será um "direito natural" diferente do dos liberais, mas aí a diferença será mais no conteúdo concreto do que no principio geral).
Ola Miguel,
Compreendo o que dizes, mas é precisamente nesse ponto que, julgo eu, ganhamos em clarificar a questão.
1. Hoje em dia é provavelmente abusivo falar numa desconfiança da esquerda em relação ao conceito de "direito natural". Esta desconfiança existiu e pode quanto a mim explicar-se por dois factores muito diferentes : i/ a identificação do direito natural com uma "ordem moral" conservadora (neste sentido, trata-se de uma desconfiança proxima da desconfiança da esquerda em relação à moral, que eu julgo um disparate) ; ii/ a desconfiança em relação ao proprio direito, tido como uma instituição formalista propria da super-estrutura que funciona como ferramenta ao serviço dos interesses da classe dominante, ou mesmo da classe burguesa (uma critica de cariz marxista, portanto). Mas o que resta desta atitude critica hoje em dia, quando quase todos os sectores da esquerda reconhecem a superioridade do Estado de direito e batem-se nitidamente para conquistar, e depois para proteger, "direitos" ? Temo que pouca coisa...
(continua)
(continuação)
2/ A reivindicação do "direito natural", ou dos "direitos naturais", como bandeira propria e exclusiva da direita liberal, de que o texto do R. Albuquerque é um muito bom exemplo, oculta um aspecto essencial da questão e assenta numa falacia. Na realidade, a opsição entre "direita" e "esquerda" não é sobre a necessidade de direitos, que todos reconhecem (todos fazem parte da assembleia constituinte durante a revolução). A questão é saber O QUE DEVEMOS ENTENDER POR "DIREITOS": se uma realidade essencialmente formal, que se esgota na garantia negativa de liberdades individuais abstratas (a protecção do poder individual), ou se os direitos devem realizar-se de forma mais efectiva, numa constante procura de justiça social material. Um exemplo emblematico entre muitos : a noção de abuso de direito (ou seja a proibição da utilização antisocial, gratuitamente danosa da propriedade e, por extensão, de qualquer direito) é um instituto do direito natural ? Se fizermos a pergunta ao R. Albuquerque, ele vai ter dificuldades em responder e, provavelmente, entrar em contradição...
Em resumo : a questão do "direito natural" obriga a colocar uma questão politica fundamental, que é a de saber porque queremos "direitos" (não "porque queremos este direito ou aquele ?", mas "porque queremos instituir direitos ?"), em que é que eles permitem uma boa realização dos nossos objectivos sociais, economicos, politicos. Na minha perspectiva, tanto a direita como a esquerda acreditam que devemos lutar por direitos. Separam-se apenas, desde a revolução francesa (é sintomatico que o texto do R. Albuquerque se recuse a ver ai o nascimento da distinção), na questão de saber o que são direitos, e para o que servem. Ora a esquerda não tem nenhum interesse em recusar o debate sobre este assunto essencial, contrariamente ao que o R. Albuquerque procura demonstrar. Pode mesmo dizer-se que a critica da esquerda à direita começou precisamente ai: na constatação de que a concepção formalista e "liberal" dos direitos como meras garantias, acaba na realidade por criar uma realidade social e economica em que o cerco daqueles que têm e gozam dos tais "direitos" é cada vez mais estreito, enquanto se produzem camadas cada vez mais numerosas da população deixadas à margem de qualquer direito e que estão "protegidas" por garantias totalmente desprovidas de conteudo.
No meu post sobre a esquerda e o pragmatismo (ha ja uns messes), tentei analisar esta mesma questão sob um ângulo complementar : a direita contenta-se com direitos "no papel", enquanto a esquerda exige direitos efectivos, concretizados.
Portanto, quando o R. Albuquerque afirma que a esquerda recusa a crença na superioridade dos "direitos naturais do individuo", ha um truque subtil, que é tentar apresentar esta posição como uma resistência à ideia de "direito natural", quando ela apenas emite sérias reservas sobre a ideia de que o direito natural esta exclusivamente virado para a protecção da liberdade individual...
Abraço
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