28/11/17

Re: Esquerda e Direita (II)

Começando o meu comentário ao post de Rui Albuquerque no Delito de Opinião.

"Do que se trata, portanto, é que existem valores que alguma direita ainda defende e que nenhuma esquerda jamais reclamará como seus. Esses valores são os que estruturam o pensamento liberal. Vejamos quais são." (...)

"Em primeiro lugar, a crença no indivíduo possuidor de direitos naturais, inerentes à sua condição humana, e não no indivíduo apenas detentor desses direitos se e enquanto cidadão, isto é, como integrante de uma comunidade política estruturada num estado que lhos reconhecerá e conferirá. De modo algum encontraremos no pensamento socialista a convicção de um direito natural inerente ao indivíduo, que o estado tem de respeitar, mas, quando muito, a de direitos individuais que o estado promoverá e deverá garantir.

O direito natural é uma crença liberal, mas não de todo o liberalismo, e uma convicção da direita, mas não de toda a direita. À esquerda, nunca o será."

Não? Muitos socialistas e outros esquerdistas até podem não usar a expressão "direito natural" (mas de qualquer maneira, frequentemente adoram a expressão "direitos humanos", que acho que vai dar quase no mesmo - à ideia de que as pessoas tem direitos intrínsecos devido à sua pertença à espécie humana, independentemente de esses direitos serem ou não reconhecidos pela sociedade em que eles estão inseridos), mas a ideia de que existe um conceito universal e intrínseco de justiça, independentemente dos que as leis existentes consideram ou não correto, e que leis injustas são para serem, no mínimo, alteradas ou, no máximo, desobedecidas, se alguma coisa até me parece muito mais comum à esquerda do que à direita.



De certeza que o típico "esquerdista"[1] não acha que, antes da aprovação do Obamacare, os norte-americanos não tivessem direito a cuidados de saúde, independentemente do seu rendimento e condição médica; ou, recuando aos primórdios da divisão direita-esquerda, um "esquerdista" na Áustria imperial no principio do século XIX com certeza não deixava de achar que um austríaco de baixa extração social tinha direito a, direta ou indiretamente, participar na governação (apesar de então a Áustria ser uma monarquia autocrática que não reconhecia esse direito). No fundo, era exatamente por as sociedades em que eles estavam inseridos não reconhecerem esses direitos que eles consideram ou consideravam fundamentais que utavam para modificar a sociedade em que viviam.

Aliás, no século passado tentei, mais ou menos, argumentar com o meu professor de Filosofia que a diferença fundamental entre direita e esquerda era exatamente que a esquerda acredita em direitos humanos universais independentes da sociedade realmente existente (e assim as sociedades podem ser consideradas como justas ou injustas, conforme respeitam ou não esses direitos, e nos caso das injustas deve-se tentar mudá-las), enquanto a direita acha que os direitos e deveres são o resultado de vivermos numa sociedade especifica com uma dada história, tradições, instituições, leis, etc, (que nos concedem alguns direitos e impõem alguns deveres) e que atacar as instituições sociais realmente existentes em nome de Direitos Humanos com letra grande é meio caminho andado para ficarmos sem direitos nenhuns (eu digo "tentei" e "mais ou menos" por duas razões: porque a minha capacidade de expressão oral é muito inferior à escrita; e porque a ideia que apresentei na altura - sobretudo no que diz respeito à direita; no caso da esquerda não mudou praticamente nada - não era bem a que apresentei há umas palavras atrás, mas uma versão "beta", parecida mas menos elaborada).

Tenho também a ideia de ter lido algures sobre uma polémica entre Edmund Burke e Thomas Paine sobre os "rights of Man" versus os "rights of the Englishman", com o primeiro, na "direita", a defender os "direitos dos ingleses" (isto é, os direitos derivados de viver numa dada sociedade com dadas instituições) e o segundo, na "esquerda" a defender os "direitos do Homem" (isto é, os direitos naturais que existem mesmo que não sejam reconhecidos pela sociedade existente, e que podem servir como ponto de partida para atacar a ordem estabelecida) - mas fazendo uma busca no google não encontro nenhumas ou quase nenhumas referências, pelo que se calhar estou a fazer confusão.

Ou que dizer de posições que até eu acho um bocado disparatadas, como a teoria tão popular em Portugal que "direitos fundamentais não se referendam" (frequentemente evocada em assuntos como aborto, co-adopção, etc.)? Ou, nos EUA, a teoria do "substantive due process" (a base para as sentenças do Supremo Tribunal legalizando o uso de contracetivos, o aborto, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, etc.), que considera que leis restringindo direitos considerados fundamentais (mesmo que esses direitos não apareçam em lado nenhum da constituição) são inconstitucionais? Parece que são muito mais populares à esquerda do que à direita.

Ou a desobediência civil, que me parece até costuma ser muito mais glorificada à esquerda (veja-se quais os partidos que, pelo menos em Portugal, organizam aulas de desobediência civil nos seus acampamentos de jovens)?

E, no fundo, o que são o "construtivismo", racionalismo e universalismo/internacionalismo tão típicos do pensamento e prática da esquerda, se não a consequência lógica de acreditar que existem direitos universais acima da leis e instituições existentes? Quando se acredita nisso, o passo seguinte mais natural é exatamente querer erradicar da face da Terra todas as instituições e leis que se considera "opressivas" e substitui-las por instituições novinhas em folha, pensadas de raiz para estarem de acordo com o que se consideram serem os direitos universais do Homem (e, pelos vistos, até há quem argumento que o Terror da Revolução Francesa foi consequência da ideia de "direito natural").

Resumindo, eu diria que o refrão desta música até é bastante de esquerda (o conjunto da letra é-o indubitavelmente, mas mesmo só o refrão - "Have you been to jail for justice? I want to shake your hand" - também o é, mesmo que, abstraindo do resto, se calhar até pudesse ser subscrito por alguns liberais).



[É verdade que hoje em dia é sobretudo a esquerda que defende o chamado multiculturalismo, o que irá um bocado quanto a ideia de que é sobretudo a esquerda a acreditar em direitos humanos universais; mas, além do multiculturalismo ser bastante polémico dentro da própria esquerda, é duvidoso que muitos ditos "multiculturalistas" o levem realmente a sério]

[1] a palavra "esquerdista" tem um significado muito próprio: é sobretudo usado na gíria interna dos partidos comunistas para designar radicalismo revolucionário, e nomeadamente para as correntes que romperam com o comunismo "ortodoxo" entre 1917 e 1921; no entanto, como não existe outro substantivo em português para designar "pessoa politicamente de esquerda" (ao contrário de, p.ex., inglês, em que há "leftist" e "left-winger"), vou, por simplificação, usar neste post "esquerdista" em referência à esquerda toda, e não apenas aos discípulos de Herman Gorter, Paul Mattick ou Gavril Miasnikov

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