Ainda acerca da esquerda, direita e "direitos naturais/direito natural", talvez a grande diferença seja que a direita liberal assume um "estado de natureza" ancap, e a esquerda (mesmo a mais estatista) assume um "estado de natureza" ansoc; note-se que isso não implica forçosamente acreditar que alguma vez tenha existido realmente um "estado de natureza" pré-estatal ou pré-social, pode ser simplesmente um exercício intelectual sobre quais seriam os direitos que os individuos teriam se não existisse Estado ou sociedade organizada (e talvez parte da diferença entre os liberais e a esquerda seja que os liberais tendem mais a imaginar um "estado de natureza" apenas sem Estado, e a esquerda - ou pelo menos alguma esquerda - a imaginar um "estado de natureza" sem instituições sociais).
Explicando o que quero dizer: o pensamento da esquerda (ou, no mínimo da esquerda socialista, mas penso que não apenas) tende implicitamente a assumir como ponto de partida um mundo sem Estado e sem propriedade, ou pelo menos sem propriedade do solo (e atenção que digo "sem propriedade", não digo "sem propriedade privada"); um mundo em que qualquer individuo pode ir à floresta caçar ou abrir uma clareira para cultivar a sua comida, sem estar sujeito à autoridade de governantes ou de proprietários - na prática um mundo com algumas semelhanças com o mundo que vemos em qualquer documentário sobre animais (em que a posse é 100% da lei), mas sem o conflito constante e morte a qualquer momento que também vemos nesses documentários. Alguma esquerda achará mesmo que esse é o objetivo a implantar (o anarco-comunismo e certas variantes mais libertárias do marxismo não andam longe disso); a maioria considera que, no mundo real (ou pelo menos a partir de uma certa densidade populacional) é, infelizmente, até devido à escassez de recursos. preciso criar alguma espécie de mecanismo para decidir quem pode fazer o quê e quem pode usar o quê - ou seja, é preciso existir um Estado, direitos de propriedade e/ou algo muito parecido com isso. Mas como o Estado e a Propriedade são visto como instituições criadas ao serviço de indivíduos que à partida não estariam sujeitos a elas, está implícito que o Estado só é legitimo enquanto estiver ao serviço dos governados, e que a propriedade só é legítima enquanto estiver ao serviço dos não-proprietários (ou, eventualmente, se toda a gente for proprietária), e que em última instância os governados e os não-proprietários mantêm sempre um direito a se revoltarem contra os governantes e contra os proprietários (e que o ideal é o poder político e a propriedade serem exercidos igualitariamente - afinal, se o ponto de partida é não haver governantes nem proprietários, e ninguém estar submetido a outro, então o mal menor é todos serem governantes e proprietários/co-proprietários).
Noto que acima digo "no mínimo da esquerda socialista, mas penso que não apenas" - porque tenho a ideia que, mesmo na esquerda "radical" do século XIX (isto é, os defensores do sufrágio universal e do regime parlamentar - que hoje em dia seriam tudo menos "radicais"; imagino que seja mais ou menos a isso que Rui Albuquerque se refere com "liberalismo histórico francês e afrancesado") já havia uma tendência para simpatizar com a ideia de cada individuo ter a sua pequena quinta ou oficina, ainda que sem quaisquer propostas reais para realizar isso (no fundo, tenho a impressão que, no "radicalismo" estava implícito muito uma ideia de que, abolindo-se os privilégios feudais e mercantilistas, uma distribuição relativamente igualitária da pequena propriedade privada surgiria quase por geração espontânea).
Já os liberais (ou pelo menos os que seguem a linha dos direitos naturais) tendem a achar que o Estado é artificial mas a propriedade é natural, e portanto é apenas a autoridade do Estado que deve ser limitada (ou, no extremo, abolida), enquanto a autoridade do proprietário sobre a sua propriedade deve ser respeitada e protegida (frequentemente considerando que a proteção da propriedade é exatamente a principal ou talvez única função do Estado - o que pode ter implicações fora da esfera extritamente económica: a visão do Estado como o protetor da propriedade durante muito tempo teve como corolário para os liberais a defesa do sufrágio censitário, contra o sufrágio universal defendido pela esquerda).
Agora, há efetivamente aqui um ponto - vendo as coisas da perspetiva dos liberais que acham que todos os direitos derivam dos direitos de propriedade (exemplo), a posição esquerdista (ou, pelo menos, socialista) de que a propriedade é uma instituição artificial para, no extremo, ser abolida ou, no mínimo, tolerada por ser (e no limite em que seja...) socialmente necessária, é efetivamente muita parecida com achar que só existem os direitos que o Estado (ou quanto muito a comunidade) reconhecer - provavelmente será isso que Rui Albuquerque quer dizer.
28/11/17
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