19/01/11

Identidade(s): classe e proximidade

O Capitalismo tem como objectivo último a criação duma casta de autómatos, servos perante a oligarquia, que assegurem Poder crescente para esta. Em particular, uma casta subalterna sem qualquer tipo de identificação colectiva, sem noção da sua condição comum. Este objectivo poderá ser atingido por diferentes vias, que noutra altura valerá a pena discriminar. O que me interessa neste momento é tentar demonstrar que ao Capitalismo não interessa a existência de identidades, de fenómenos de identificação colectiva, pois estes podem opôr-se ao interesse do Capital: a existência de mão-de-obra servil, que apenas "pensa" em trabalhar. A única identidade que é hoje, e transitoriamente, permitida pelo Capitalismo, é a de consumidor. E apenas porque tornou-se claro que a produtividade da mão-de-obra humana, a sua capacidade de trabalho, é maior quando ao trabalhador são prometidos bens materiais em troca do seu trabalho, do que quando este é tratado como escravo. De certo modo, o discurso de alguma "esquerda", na sua vã tentativa de incutir algum "senso" ao Capitalismo resume-se ao que acabei de afirmar, e que pode ser dito de modo mais coloquial como: "não sejam burros, paguem bem aos trabalhadores, que eles assim produzem mais, tornando-vos ainda mais ricos!...".

Portanto, a resistência ao Capitalismo passa, como muitos antes já afirmaram, pela construção de fortes identidades colectivas, capazes de impedir ou reverter a alienação individual e a desestruturação colectiva induzida pelo Capitalismo. O problema que se coloca à Esquerda é que, com a excepção da identificação com o género humano, qualquer identidade colectiva é excludente, por definição. Note-se que estou a considerar que uma identidade colectiva é algo activo, que não se limita a um reconhecimento passivo de características comuns, sem consequências na relação com os outros. E sendo excludente, a identidade colectiva cria uma desigualdade, uma hierarquia, entre os que são e os que não são, o que se opõe ao objectivo último da Esquerda: a igualdade. A conclusão lógica é que a Esquerda devia pugnar apenas pela identificação colectiva universal, pela tomada de consciência da igualdade fundamental de todo o ser humano. Há, no entanto, pelo menos, duas constatações que colidem com esta conclusão: (1) não somos, efectivamente, todos iguais nos actos que praticamos; (2) é, diria que geneticamente, impossível ao ser humano não construir preferências, hierarquias, de afecto, que começam nos que nos são emocionalmente mais próximos, e que podem passar por diferentes tipos de identificação colectiva - territorial, de género, étnica, de classe, religiosa, sexual, lúdica, etc - até chegar ao universalismo, invariavelmente o tipo mais fraco de identidade colectiva devido ao grau de abstração exigido. A primeira constatação induz à criação de certos tipos de identidade colectiva, nomeadamente a de classe. Estas nascem da tomada de consciência das relações de exploração, sendo essenciais no desenvolvimento de oposição aos actos que geram desigualdade, e àqueles que os praticam. A segunda constatação sugere que a oposição ao Capitalismo será tanto mais eficaz quanto melhor souber aproveitar a robustez inerente às identidades colectivas assentes na proximidade (não apenas, ou necessariamente, do ponto de vista territorial). Note-se, no entanto, que entre estas, as identidades territoriais são praticamente inescapáveis, pois facilmente se constituem como resultado da necessária existência de níveis de administração (em particular se democráticos) territorial.
 
Chegados aqui, convém lembrar que as identidades colectivas, sendo todas excludentes, podem, no entanto, dividir-se segundo várias características, nomeadamente entre as tolerantes (que aceitam a existência de outras identidades colectivas) e as intolerantes (que procuram de modo agressivo fazer desaparecer outras identidades colectivas), e entre as de cariz igualitário e as de natureza hierárquica (associadas a uma hierarquia de Poder - como é típico entre as identidades religiosas). Tendo em conta o objectivo da igualdade, a Esquerda deve promover as identidades colectivas tolerantes e igualitárias, em detrimento das identidades colectivas intolerantes e hiérarquicas, que muitas vezes possuem um papel central em algumas ideologias de Direita, apesar de estas últimas também servirem como fonte de oposição ao Capitalismo.

A conciliação do ideal universalista, com a utilidade da consciência de classe e a realidade das identidades colectivas assentes na proximidade, só pode ser conseguida pela promoção do conceito de identidades múltiplas, necessariamente (até certo ponto) mutuamente tolerantes. Poderá haver necessidade de hierarquização de identidades, quando em situações de conflito, mas tal deverá ter lugar conforme as circunstâncias. Não me choca por isso que alguém se afirme patriota e de Esquerda. Não acho que seja paradoxal, e diria mesmo que é essencial para a afirmação da Esquerda, a prossecução duma estratégia simultânea de afirmacão da consciência de classe e restruturação, tolerante e democrática, de identidades colectivas assentes na proximidade (em particular, territorial). Vale a pena estudar o trabalho que tem sido feito no seio da Via Campesina, onde se tenta conciliar a defesa da sustentabilidade e promoção da democracia em comunidades locais com um internacionalismo (classista, em grande medida) que procura criar um rede de resistência ao Capitalismo, nacional e global.

8 comentários:

Miguel Serras Pereira disse...

Caríssimo Pedro,

há muitas coisas no que dizes que eu formularia noutros termos ou teria de discutir contigo - mas sem que isso signifique que me sinto menos próximo ou dos motivos que te inspiram.
No entanto, a minha objecção a fazer do "patriotismo", ainda que entendido como o defines, uma palavra de ordem ou bandeira política, mantém-se - que mais não seja pela carga do termo tal como o uso o consagrou. Para te dar um exemplo, se entendo, sem dúvida, que não há antagonismo, antes complementaridade, entre a defesa da língua portuguesa ou outra e o trabalho de universalização requerido pela autonomia democrática, recuso-me a dizer que isso faça de mim um "patriota" ou a definir essa posição como "patriotismo" para não me confundir nem promover que me confundam com um partidário da "independência nacional", das virtudes do "Estado-nação", e por aí fora. Ou, por outras palavras, para manter sem equívocos a minha oposição ao nacionalismo - reverso do internacionalismo e da aposta na mundialização da prioridade da democracia. Outra maneira de dizer que aqui, como em toda a parte, a "identidade" conferida pela afirmação igualitária da "cidadania" deve prevalecer sobre quaisquer outros traços identitários ou "especificidades culturais", ao mesmo tempo que os garante e reformula no quadro geral da extensão autogoverno e da autonomia.

Abrç

miguel (sp)

Pedro Viana disse...

Caro Miguel,

Sim, também não me sinto de todo à vontade com o termo "patriota", devido ao significado histórico que carrega. E por isso não o uso em lado algum, a não ser para chamar a atenção para o post do Manuel Gusmão, que assim se caracteriza. O que pretendi fazer foi chamar a atenção para o que acho ser uma necessidade para a Esquerda: articular o objectivo universalista dos ideiais de Esquerda ("mundialização da prioridade da democracia"), com a consciencialização de classe como motor da mudança necessária, e com a robustez das relações/identidades de proximidade. Em termos simplistas, o universalismo é o ideal do movimento, a consciência de classe o seu motor, e as relações/identidades de proximidade a rede que induz robustez e resistência a esse movimento. Mas, acho que deixo claro, que as relações/identidades de proximidade que interessam à Esquerda devem assentar em princípios de tolerância e democracia, incompatíveis com certas leituras de conceitos como patriotismo.

Um abraço,

Pedro

Miguel Serras Pereira disse...

Claro, Pedro, muito bem. No entanto, o post do Manuel Gusmão, se o li bem, procede a uma justificação do patriotismo diferente e, a meu ver, abusiva: deduz do facto de a exploração ter um quadro nacional e ter de ser combatida também nesse quadro a importância ou necessidade do patriotismo. Num segundo momento, adianta o argumento das alianças a que a classe operária deve proceder para conquistar a hegemonia como justificação suplementar - sugerindo que o patriotismo deverá ser uma espécie de cimento ou agente aglutinador, a figura de um interesse comum progressista, entre grupos sociais diferentes. Ora, nem um nem outro destes dois argumentos, ou linhas de argumentação, me parece aceitável (acrescendo, à margem do tema principal em debate, que o segundo argumento pressupõe uma concepção objectivista e fixista da "classe revolucionária" e do "bloco histórico" muito pouco convincente). Já manifestei, de resto, a minha surpresa pelo facto de o Manuel Gusmão não ter procurado uma argumentação afim da que tu próprio usas, para justificar uma versão mais aceitável de "patriotismo": valorizando a língua e o imaginário histórico, o vocabulário dos usos e costumes, etc.,sempre particulares em que a "vontade revolucionária" de democracia se apoia, ao mesmo tempo que as reformula e transforma. Tudo isto, só para te dizer que não me parece haver, nas boas razões que apresentas em defesa da tua posição, grande coisa que conforte a tese ou leitura proposta pelo Manuel Gusmão.

Abrç

miguel sp

M. Abrantes disse...

O Capitalismo tem como objectivo último a criação duma casta de autómatos, servos perante a oligarquia, que assegurem Poder crescente para esta. Em particular, uma casta subalterna sem qualquer tipo de identificação colectiva, sem noção da sua condição comum.

No ocidente o capitalismo falhou estas intenções by a long shot: não há 'sítio' no mundo onde se tenha mais liberdade de opinião, inclusive liberdade para reclamar quando se acha que falha essa liberdade.

O mesmo não se pode dizer, sem se ser hipócrita, dos países onde abundam bandeiras vermelhas com estrelas, foices e martelos.

Pedro Viana disse...

Percebo o que dizes, Miguel, quanto aos argumentos do Manuel Gusmão. Que realmente não partilho, apesar de assentarem num raciocínio paralelo ao meu. Onde diferimos é no facto dos argumentos do Manuel Gusmão assentarem no pressuposto de que a realidade das relações de proximidade é imutável, e que portanto ou defendemos o patriotismo (porque nos é estrategicamente útil) ou somos "apenas" internacionalistas, descurando o desenvolvimento de alianças de proximidade. Não acho que assim seja. É possível substituir o patriotismo, tal como é entendido, por múltiplas relações de proximidade, em particular de natureza territorial - redes de comunidades locais, tolerantes e democraticamente governadas.

Pedro Viana disse...

Caro Miguel Abrantes,

O seu comentário prova o que escrevi. Claramente não reconhece, como o Capitalismo pretende, a existência, hoje, "duma casta de (...) servos perante a oligarquia (...) sem qualquer tipo de identificação colectiva, sem noção da sua condição comum." É servo sem o saber. Confunde liberdade de opinião com consciência da realidade. O Capitalismo não tem qualquer problema com a primeira, que permite a ilusão de se ser (totalmente) livre, desde que a segunda não exista. Não duvide que assim que uma massa crítica de "servos" tomar consciência da sua condição, o Capitalismo acaba logo com a liberdade de opinião, metamorfoseando-se em Fascismo.

Quanto aos "países onde abundam bandeiras vermelhas com estrelas, foices e martelos", infelizmente, em todos eles foi instaurado o que habitualmente se designa de Capitalismo de Estado: efectivamente a propriedade de todos os meios de produção, antes privada ou pública, foi apropriada pela oligarquia que obteve o controlo do Estado. Ou seja, em tais países a propriedade privada dos meios de produção não foi de todo abolida, como é necessário para acabar com o Capitalismo, mas sim apenas transferida na sua totalidade para as mãos da oligarquia que passou a controlar o Estado. A exploração continuou, e tentou-se efectivamente aprofundar a constituição duma casta de servos obedientes. Mas, para infelicidade dessas oligarquias, não foram capazes de colocar em prática a sua estratégia de dominação de modo subtil. Esqueceram-se que servos conscientes da sua condição são o primeiro passo para a sua emancipação. No Ocidente, o Capitalismo é muito mais súbtil na sua estratégia de dominação. E por isso tem conseguido evitar até agora, mas talvez não por muito mais tempo, que a consciência da servitude ultrapasse o ponto crítico.

Niet disse...

No texto do Pedro Viana falta do meu ponto de vista uma abordagem da Lógica Totalitária nas suas implicações sociais-históricas sincrónicas e diacrónicas. Trabalho de Sísifo? Como pensar o trabalho de " unificação " política, simbolica e repressiva do estado/partido e da Nação incarnada pelo bolchevismo, por exemplo, e onde circula o perverso conceito de nacional patriotismo! Há textos incontornáveisde Marcuse, Lefort e Castoriadis sobre os efeitos e as funções sociais e políticas da Lógica Totalitária, e que se tornaram decisivos e incontornáveis para fazer avançar a libertação e o processo autonómico de todos e de cada um. " Os oprimidos, que lutam contra a divisão da sociedade em classes, lutam contra a sua própria opressão sobretudo; de mil maneiras restam tributários do imaginário que eles combatem por seu turno em diversas expressões( cultura dominante, nacionalismo, patriotismo); e muitas vezes o que visam não é senão uma permuta dos papéis no mesmo cenário. Mas muito dedepressa também, a classe oprimida responde negando em bloco o imaginário social que a oprime, opondo-lhe a realidade de uma igualdade essencial dos homens, mesmo se mantém em torno desta afirmação um envolvimento mítico.(...) o funcional está suspenso/dependente do imaginário: a economia do capitalismo moderno não pode existir senão respondendo às necessiades que ela própria engendra ",C.Castoriadis, I.I. de la Société. Niet

Miguel Serras Pereira disse...

Bem respondido, Pedro. Subscrevo e sublinho.

Abrç

miguel (sp)