07/01/11

Sobre "a transformação da ideia em ritual, do pensamento em catecismo"

Como contributo para situar, por um lado, e, por outro, animar se possível certos temas discutidos neste post do camarada João Tunes e na sua caixa de comentários, aqui fica um excerto do Estaline de Jean-Jacques Marie (Lisboa, Editorial Verbo, 2004, pp. 222-223), descrevendo um episódio precoce da génese do "marxismo-leninismo" oficial. Sem dúvida, a simples possibilidade do episódio é sintomática da natureza já decididamente despótica e classista (de recomposição classista) do regime. Mas haverá outras ocasiões de discutirmos o assunto.

A 28 de Janeiro de 1924, no Xi Congresso dos Sovietes, treze oradores prestam homenagem ao defunto [Lenine]. Estaline fala em quarto lugar (…) pronuncia um juramento a Lenine, espécie de "Pai-nosso que estareis no Mausoléu", onde assume a pose de executor testamentário do deus falecido e de sumo sacerdote do seu pensamento reduzido a fórmulas piedosas. Salmodia seis versículos que começam por "Ao deixar-nos o camarada Lenine recomendou-nos…" e terminam por variantes de um compromisso solene: "Nós juramos-te, camarada Lenine, cumprir com honra a tua vontade […] (…) preservar a unidade do nosso Partido como a pupila dos nossos olhos", etc. Apesar desta homilia devota, que suscita o escárnio dos velhos militantes, Estaline faz adoptar, no dia 30, pela Comissão do Funeral, a interdição (…) de difundir o Testamento de Lenine (…).
Estaline vê prontamente que proveito tirar do cadáver de Lenie. No Politburo cita uma carta de "camaradas da província" anónimos, ditada por ele, que exigem o embalsamamento do defunto. Prepara-se deste modo para edificar o culto do desaparecido, na grande tradição do culto idólatra das relíquias de santos difundido pelos campos russos. Krupskaia suplica em vão, no Pravda de 29 de Janeiro, que não se construam monumentos nem palácios em nome de Lenine, nem se organizem cerimónias pomposas em sua memória. A 22 de Fevereiro, no Pravda, uma carta de 19 comunistas denuncia a vontade de ediciar "monumentos em honra de Lenine, painéis com máximas de Lenine, torres em honra de Lenine, de se construir um mausoléu, de se desbaptizar em sua honra tudo o que pode ser desbaptizado". Mas Estaline tem necessidade de mumificar o cadáver para melhor mumificar o seu pensamento. O rito funerário facilitará a transformação da ideia em ritual, do pensamento em catecismo.

10 comentários:

Niet disse...

MS. Pereira: O J-J- Marie engana-se. E parece que muito. Não tens à mão o Pierre Broué, o do " Partido Bolchevique", meu sage truculento e teórico sem pavor nem temor ?!?... A morte do Lénine- ocorrida em 21 de Janeiro de 1924- surpreende o Trotski numa cura termal na costa do Mar Negro. Estaline e os seus capangas trocam-lhe as voltas e fazem com que ele não esteja presente no funeral. A luta pela divulgação do Testamento de Lénine inicia-se e atravessa a XIII Conferência e o XIV Congresso do Partido Bolchevique, que se realiza em Maio de 1924, e onde Estaline- com a ajuda de Zinoviev-
começa a tomar conta do aparelho com novos recrutas que irão assassinar Zinoviev e Bouhkarine alguns anos depois. O Testamento de Lénine, que só foi lido no Comité Central 4 meses apòs a sua morte,parece que foi rasurado e a viúva, Kroupskaia. alertou para isso atè morrer. Niet

James disse...

Essas estorietas à volta do funeral do VIL enojam-me (e para ser franco, ele também)
Coitada da N. Krupskaya, o que ela deve ter tido que aturar...

E agora para algo completamente diferente, que só podem ler porque eu o deixo aqui:

Tony

Location: Sintra, Portugal
Posts: 1,225

This is unbelivable and I'm somewhat ashamed.
So there is a regiment of a kind of Rangers and Parachutists here nearby where I live (special forces, training is very good, that the guys supposed to be deployed and go behind the ennemy lines, not sure but think we have a few of them in that-Afghani-that war).

10 or so guns disapeared from the stock, I mean G-3, AK's and a few 9mm very potent hand guns.

Not exactly your light weaponry. This is military stuff.

It's «market» target is clear for anyone of us here (drug dealers/gangs, what gives...)

Think I know where I can get my hands on one of those AK's, not sure if I'll do it, just curious, never shot the damn thing ever.

Then again there's this small detail: if I'm caught acquiring one of those I'll be prolly emprisoned for the rest of my viable life.
350 soldiers were arrested, pending investigation, by now released.

Things must be worse than I thought, this is NOT supposed to happen, not within our military.


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Cheezel

(aussie, lives in Brisbane, Australia)
Posts: 831


That is disgusting, but unfortunately there is corruption everywhere.


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Waya

(american cherokee, lives in Denver, Colorado, USA)

Posts: 583


Some people worship a greater power.

Some people worship money.

Some people worship nothing at all.

Of the three, money is the most evil god.

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Sad, said and done.

:-(

Miguel Serras Pereira disse...

Niet: o teu juízo é talvez causado pelo facto de eu citar apenas um excerto isolado da biografia escrita pelo Jean-Jacques Marie. A versão dos acontecimentos apresentada pelo Pierre Broué é a mesma. Conheço bem os seus (deste último) trabalhos e cheguei até a traduzir um dos seus últimos livros - Comunistas contra Estaline - que os gajos que tomaram de assalto a Campo da Comunicação depois da morte do Edgar Correia (que me encomendara o trabalho) nunca publicaram nem pagaram. Um pouco do mesmo modo que fizeram o que piuderam para impedir a continuação da publicação da edição portuguesa do Monde diplomatique… Mas isto são outras histórias que talvez um dia pessoas mais bem colocadas do que eu para a reconstituírem venham a contar.

Salut et liberté

msp

Niet disse...

Oh major Alvega, deixe-se de "estórias "... Acrescente ou desminta factos face à importância dos valores em causa... Como devia saber, a Revolução de Outubro 1917 é a segunda Comuna (1871) que surgiu à face da Terra, dois acontecimentos capitais no processo de libertação da natureza humana. Castoriadis até diz que " existiu uma revolução só em Fevereiro de 1917 e não em Outubro; em Outubro aconteceu um putsch, um golpe de Estado militar".E isso é fascinente de tentar perceber,claro,figindo às delicias de uma retórica inoperante ou niilista. E diz ainda isto de muito importante: " Os autores do putsch não alcançaram os seus objectivos senão contra a vontade popular no seu conjunto- dissolução da Assembleia Nacional em Janeiro 1918 - e contra os organismos democráticos criados a partir de Fevereiro,os sovietes e comités de fábrica" naquela fortaleza operária excepcional que se veio a chamar Leninegrado..." Não foi a Revolução que, na Rússia, produziu o totalitarismo, mas o golpe de Estado do partido bolchevique, o que é totalmente diferente ".Niet

James disse...

Oh caríssimo Niet, oposto de Da (sabia que eu sabia, não sabia ?) deixe-me cá com as minhas «estórias» e efabulações, e tome lá o "seu" (ha ! ha! ha!) Stalin, para mal (ou melhor...) dos seus pecadilhos.
Ainda só li as primeiras e as últimas quinze páginas, tenho outras coisas que fazer, não consegui ainda decidir se é de o ler todo ou se vai ser estacionado no arquivo morto.

Aviso, é compridito...

David Priestland - Stalinism and the Politics of Mobilization (2007)

Oxford University Press, USA | 2007, ISBN 0199245134, 500 pages

Caso tenha falta de espaço nas estantes e livros a rojarem-se pelo chão com eu, pode sempre tentar a sua sorte aki...

James disse...

Ah e ó Niet, substância: sabe tão bem quanto eu que os socialistas-revolucionários por altura de 1917 tinham a maioria dos delegados na maioria das dumas e/ou sovietes e isso, e que os bolsheviks eram ligeiramente mensheviks, mas como tinham na mão os tipos com as Mausers nas unhas... trataram do assunto, o resto é história (não «estória»).

Há anos que não leio Castoriadis, Gorz, Poulantzas e outros, too little time, days short.
Shall have to remedy that.
:-)

Niet disse...

Caríssimo major Alvega: Assim,sim, até dá gosto. A troca de elementos de análise e leitura - nesta cosmovisão de alta qualidade -parece-me ser, contrariando os falsos elitistas e seus pruridos de classe intragáveis, uma das missões (quase) essenciais da Net. Major, tenho o prazer de lhe recomendar uma biografia política de Karl Radek- o intelectual orgânico de vida( e pensamento...) fascinante e que lidou com Lénine, Trotski e Estaline morrendo no Gulag. Autor: Jean-François Fayet, Peter Land Édts. Berne.Salut! Niet

Niet disse...

Errata: Título: Karl Radek(1885-1939).Biographie Politique. Peter Lang Edts.( e não Land), Berne. Suisse. Niet

James disse...

Niet, este é um empréstimo, é grandote, e mal tive ainda tempo de olhar para a capa...

É esta:

http://img717.imageshack.us/img717/7291/stalinandtheselfdestruc.jpg

Origem universitária também, e grandito.

J. Arch Getty, Oleg V. Naumov - The Road to Terror: Stalin and the Self-Destruction of the Bolsheviks, 1932-1939 (1999)

Yale University Press, 1999,ISBN: 0300077726, 0300094035, 672 pages.

This documentary collection, continuing Yale's pioneering Annals of Communism series, tackles questions surrounding the paroxysm of the purges in 1937^-38. One thing Stalin had was a long memory, and the hitherto mysterious Riutin Platform (the contents here at last seeing the light) must have rankled him. The platform was a 1932 call by Bolshevik veterans to remove him. The course culminating in the extirpation of all opposition was complex, and the authors' commentary underscores that a politics of sorts continued up to the point when full-blown terror was unleashed, a politics that pitted the central apparatus of Stalin and his associates in Moscow against the regional party bosses. The authors track one such Stalinist's fate in detail, as they do that of Bukharin, Stalin's opponent in the 1920s. The 200 documents here will astonish anyone familiar with the era, yet it is a specialized tome whose public library appeal could be checked against the circulation stats for the indubitably popular Who Killed Kirov?.

Niet disse...

Major Alvega, caríssimo: Esse prof. californiano é considerado um " revisionista " dos Estudos Soviéticos...Iliba Estaline de grandes resposnsabilidades nas " purgas " dos anos 30 . Aliàs, já foi badalado duas ou três vezes na Net portuguesa, se bem se recorda! O Priestland parece-me mais credível. Eu estou mais ligado ao EHESS- de Paris, onde o Pristeland colabora como convidado especial em seminários sazonais.Sem ser boutade, será preciso um edifício monstro- tipo arranha-céus de La Défense - para colocar todo o material histórico ligado à antiga URSS, em papel e microfilme. Salut! Niet