Voltando à questão das quotas por escolas para a entrada na universidade, muito gente retorquiu que o que é preciso é "fazer um trabalho de base", ou que "as quotas são a fita preta do sistema", o que isso é "desistir e ir pelo caminho mais fácil", blá, blá, blá....
Talvez; ou talvez não. Regressando ao que já disse na publicação inicial, depende muito do que se considere ser o motivo para se selecionar, para a entrada na universidade, os alunos com melhores notas no ensino secundário (ou nos exames correspondentes). É que há pelo menos duas razões possíveis (ainda que não necessariamente incompativeis) para isso, mas, a meu ver, com implicações bastante diferentes no que diz respeito a este assunto.
Uma é assumir que no ensino secundário se aprendem "bases", que vão servir para se aprender melhor o que vai ser ensinado na universidade, logo fará sentido escolher os que têm melhores "bases", porque são esses que em principio vão aprender melhor na universidade. E aí, realmente as quotas para as piores escolas serão tentar tapas o sol com uma peneira, já que esses alunos provavelmente irão ter grandes dificuldades na universidade (por lhes faltarem as tais "bases").
Mas outra hipótese alternativa é achar que, na verdade, muito do que se aprende no ensino secundário pouco ou nada interessa verdadeiramente na universidade, ou talvez até seja contraproducente (p.ex., suspeito que seria mais fácil aos professores das faculdades de economia ensinarem a teoria da vantagem comparativa se os alunos não passassem o ensino secundário a aprender, em economia e história, modelos baseados na teoria da dependência e em sistemas "centro-periferia", ou que o Tratado de Methuen é a causa do atraso económico português) - e realmente já ouvi falar de professores universitário´rios que se queixam que passam os primeiros meses a ter que "des-ensinar" o que os alunos aprenderem no secundário). Para essa hipótese, o verdadeiramente interessa é escolher alunos com características pessoais intrínsecas (provavelmente uma mistura de inteligência, esforço e curiosidade intelectual) que levam a um bom desempenho académico, e escolher os com melhores notas no secundário ou nos exames é apenas porque é a melhor maneira de medir essas combinação de fatores - ou seja, o curso de Matemática Aplicada à Economia e à Gestão até poderia selecionar os seus alunos com um exame de aramaico (ou um exame em aramaico sobre formigas parasitas) que iria acabar à mesma por selecionar os melhores alunos. E, se formos por aí, as quotas já não são uma "fita preta", sem resolver o verdadeiro problema, ou uma espécie de adulteração dos resultados - será ao contrário: a existências de "boas" escolas é que é uma espécie de batota (parecida com tomar doping numa corrida), que distorce o sinal, porque aí as notas já não medem apenas aquilo que verdadeiramente se quer medir (o potencial de cada aluno), passando a estar contaminadas por um fator adicional (a qualidade da escola frequentada); e assim quotas por escola ou um mecanismo similar são uma forma de corrigir esse ruído e medir o que verdadeiramente se quer medir.
(Suponho que na realidade haja uma mistura dos dois efeitos)
E agora mais uma ideia que me ocorre (e com isto que vou escrever agora arrisco-me a ser expulso da esquerda sem sequer me fazer mais bem visto na direita): de vez em quando surgem noticias dizendo que os alunos das escolas públicas, tendo em média piores notas à entrada, depois têm melhores resultados na universidade que os oriundos das escolas privadas; uma possivel explicação para isso é que as escolas privadas sejam mesmo melhores (glup!) que as públicas, mas que o tal segundo efeito seja predominante (isto é, as características dos alunos interessem mais que as tais "bases"), o que leva a que, ceteris paribus, um aluno universitário vindo da escola pública seja mais inteligente/esforçado/interessado/etc. (já que precisou mais dessas qualidades para ter uma boa nota, exatamente por a escola não ser tão boa) que um vindo de uma privada, e por isso tenha naturalmente depois melhores resultados.
[Post publicado no Vento Sueste; podem comentar lá]