« Moral goods and ends exist only when
something has to be done » (J. Dewey)
Há no relativismo moral algo que instintivamente nos repugna, a ponto de
afectar o nosso discernimento. Ao admitir que as nossas convicções éticas e
políticas são relativas, receamos ter
que aceitar que todas as convicções éticas e políticas têm um peso equivalente,
o que por sua vez tornaria radicalmente impossível qualquer discussão racional
acerca de questões éticas e politicas. Abandonaríamos assim o campo da moral e
da política aos charlatães que cultivam, com o adubo dos tradicionalismos e dos
fanatismos mais medonhos, a flor venenosa da íntima convicção.
Este preconceito explica porque olhamos
com desconfiança para os multiculturalistas.
Tememos que estes últimos, apoiando-se numa concepção angélica da tolerância,
construam com pedaços mal digeridos de Levi-Strauss e com um terceiro-mundismo
simplista, um autêntico cavalo de Troia, dentro do qual se esconde a mais pura selvajaria.
Com a sua cruzada cega em defesa das diferenças, convencidos de que o oprimido
é a medida de todas as coisas, estes neo-sofistas parecem-nos ameaçar
directamente os direitos conquistados graças ao longo e paciente combate do
racionalismo contra as forças das trevas. Vamos deixá-los cuspir na cara do
Giordano Bruno e do Galileu ? E a seguir, não seremos forçados a ver importadas
de novo nas nossas sociedades, em contrabando, barbáries tais como a sujeição
da mulher, como a escravatura, talvez mesmo como o canibalismo ou a excisão
generalizada ? Mas anda tudo doido ou quê ?
Calma. Não confundamos
relativismo moral com cepticismo, nem tão pouco com obscurantismo. O
relativismo não nega a razão, nem abdica dela minimamente. Antes pelo contrário,
é em consideração da essência da razão que ele reputa relativas as nossas certezas.
Com efeito, a razão está fundamentalmente na capacidade de perspectiva, na inteligência
da diversidade, na consideração ponderada dos fenómenos que nos rodeiam por
forma a discernir, progressivamente, como é que eles se movimentam uns em
relação aos outros e todos em relação a nós. Platão que me perdoe, mas vejo
dificilmente como conciliar a razão com certezas absolutas, eternas e
universais. Julgo mesmo poder socorrer-me das ciências chamadas “duras” para
confortar esta minha convicção. Certezas sólidas, cientificamente provadas,
daquelas que permitiram ao homem viajar até à lua, não deixam por isso de ser
relativas e provisórias. De resto, a ciência não poderia progredir se assim não
fosse. Cheira-me que o Galileu, por exemplo, não tinha certezas absolutas nem
definitivas, limitava-se a desconfiar que a visão do universo aceite no seu
tempo, tida então como verdade absoluta, era afinal de contas relativa. Quem
tinha certezas absolutas, eram antes os seus adversários, assim como aqueles
que acenderam a fogueira onde morreu o Giordano Bruno…
Não vou maçar o leitor com o que julgo
ser um truismo no domínio das ciências duras. O ponto é que não estamos
dispostos a aceitar esta evidência quando se trata das nossas convicções éticas
e políticas. Neste domínio, queremos por força pisar um chão completamente estável
e seguro, sem o mínimo imprevisto nem sombra de buracos que abram para precipícios
vertiginosos. Carne é carne, peixe é peixe. Talvez. Mas então gostava que me
explicassem, de onde é que nos vêm as nossas certezas ? Se a sua força não
deriva da prova feita atravês da nossa experiência – por definição relativa –
então ela só pode mesmo vir de uma intuição misteriosa que nos põe em
comunicação directa com o Ser Absoluto e Universal que tudo sabe, e que não
padece de uma visão parcelar das coisas… Será esta a fonte da vossa querida
Razão, que pretendem preservar do contacto espúrio com a diversidade do
real ? Concretamente, acham mesmo que é mais prudente, mais realista, e
mais racional caminharmos em cima da
cabeça ? Que o risco de queda é menor ? Eu, não. Eu acho mesmo o contrário.
Quanto a mim, não há razão mais segura, nem mais fiável, do que aquela que
deriva das coisas e que é imanente ao real. Nada mais sólido, nem mais
verdadeiro, do que a razão que nasce do confronto com a realidade e com a alteridade.
Correlativamente, nada mais frágil, nem mais traiçoeiro, do que o falso
conforto da consciência impoluta, tentando desesperadamente proteger as suas
pequenas certezas contra os ventos da adversidade. Ora, tenho pena, mas isto
implica que as minhas certezas racionais são, por definição, relativas.
Relativas à realidade que experimentei e que outros experimentaram comigo. E
implica também outra coisa : espaço para outras certezas, amadurecidas à luz de
outras vivências.
Por que carga de água é que o
carácter relativo das nossas convicções morais e políticas havia de por em
causa a sua racionalidade, ou aliás a sua solidez ? Alguém me explica ?
Haverá melhor garantia da consistência das nossas representações éticas, do que
a consideração que elas resultam da experiência pluri-secular dos povos que se
debateram com a realidade concreta que nos circunda ? Assim sendo, por que
diabo deveríamos temer o confronto (que implica sempre o respeito) com outras
razões mais longínquas ? O pior que poderia advir desse confronto, seria
ficarmos a conhecer-nos um pouco melhor a nós mesmos, como a antropologia
tratou de demonstrar sobejamente. E também não existe o perigo que venhamos a
ser colonizados por Hunos. Ou melhor, a existir esse perigo, ele não deriva com
certeza do relativismo, nem do multiculturalismo que nos predispõe a procurar
compreender o outro. Aprontava-me a demonstrar-vos isto more geometrico com sólidas razões transcendentais mas, no fundo,
porque não começar por considerar a realidade dos factos que temos na nossa
frente ? Vocês conhecem partidos políticos com representatividade que, na
Europa, se proponham trocar as nossas constituições pela charia ? Viram
por aí propostas de lei que visem a substituir a pena de prisão cominada para o
furto, por uma pena de seccionamento do ante-braço e consecutiva fixação na
porta do ladrão ? Têm noticia de movimentos associativos que pretendam
criar uma rede de pastelarias cuja ementa inclua crianças fritas como pequeno
almoço ? Eu não vejo nada disso. O que vejo, são associações de imigrantes que reclamam
deixar de ser discriminados em relação aos outros cidadãos. Para isso, não se
socorrem do Alcorão nem invocam a vingança dos espíritos ancestrais, mas antes
o princípio da Igualdade Republicana, tal qual foi proclamado em 1789, uns meses
após a tomada de um forte cujo nome agora me escapa, mas que não era com
certeza, nem o forte de Ceuta, nem uma pirâmide no Egipto… Por conseguinte, a
haver aculturação, francamente, duvido muito que seja no sentido apreendido por
aqueles que desconfiam do relativismo.
Se a tese do relativismo moral
apresenta um inconveniente, este deve antes ser procurado na sua inaptidão para
impedir completamente a expressão de parvoíces. Por exemplo, no outro dia, numa
conversa aqui no Vias de Facto, chamaram-me a atenção para pessoas que
defendem, pelos vistos, que as agressões sexuais cometidas em Colónia e noutras
cidades alemãs durante a noite de ano novo, seriam desculpáveis porque tal
corresponderia à cultura dos agressores, merecedora de respeito. Esta afirmação
é obviamente uma completa patetice e não encontra apoio no relativismo moral.
Este não conduz de forma alguma a renunciar à aplicação dos princípios
basilares da nossa ordem social e política, nem sequer em beneficio de
estrangeiros que nos visitam. Pelo contrário, se existem regras que a antropologia
tem verificado mais ou menos em toda a parte, são precisamente as da hospitalidade,
que mandam respeitar escrupulosamente quem nos recebe. De resto, se exceptuarmos
um punhado de doentes mentais – há-os em todas as religiões e também entre os
ateus – não consta que o Islão encoraje ou autorize a agressão sexual… Assim
como assim, pus-me à cata das pessoas que defendem uma opinião tão bacoca.
Consegui dar com um Senhor Adalberto Soares de Mendonça, funcionário dos
correios em Bragança, que defende sobretudo que não devemos cometer amálgamas
entre os desgraçados de Colónia e a comunidade muçulmana no seu todo, mas acrescenta
que, se calhar, os responsáveis das agressões eram refugiados irritados com a
forma como são acolhidos na Europa. Não se trata bem da opinião que me
descreveram mas, havendo perigo de complacência, reunimos ontem o Conselho
Mundial dos Multiculturalistas (CMM) e, por unanimidade, decidimos enviar
imediatamente uma brigada de etnólogos à capital de Trás-os-Montes, onde o
problema está já a ser resolvido.
Seja como for, não é porque um ou
dois idiotas se afirmam de uma doutrina, sem a compreender, para proferir a seguir
as piores alarvidades, que a doutrina em questão passa a ser uma alarvidade.
Isto, julgo eu, é pacífico. Portanto tenhamos um pouco de confiança na Razão
que tanto prezamos, e convenhamos que ela não está fundamentalmente em perigo
de desaparecer apenas porque vimos uma mulher com véu na paragem do autocarro. Deixemos
estes pânicos para a Helena Matos, que tem fundados motivos de vergastar
quotidianamente a esquerdista tonta que foi nos seus dezassete.
Quanto a saber se o relativismo
moral é defensável, coerente e convincente, há que responder sem medo, com
firmeza e de forma categórica : depende.