Sobretudo a respeito desta passagem do Miguel Serras Pereira ("a propósito dos incidentes de Colónia, ainda não ouvi ninguém à esquerda dizer que, se são resultado de uma identidade cultural diferente, então, a cultura e a identidade em causa devem ser combatidas"), dá-me a ideia que grande parte da esquerda "multiculturalista" não tem uma visão muito consequente do "multiculturalismo"; isto é, acho que o tipico "multiculturalista", quando confrontado com algum costume bárbaro de outra cultura, não reage dizendo "temos que ver que é outra cultura e que não lhes podemos aplicar os nossos padrões" (os pensadores mais empenhados na construção da ideologia "multiculturalista" - veja-se a reação de Boaventura Sousa Santos aos assassínios no Charlie Hebdo - dizem por vezes isso, mas não a "infantaria"): a reação típica é simplesmente negar que essas diferenças culturais existam, dizer que são "casos isolados" ou até que já são o resultado da influência ocidental (veja-se como muito defensores do "multiculturalismo" tantam negar que a mutilação genital feminina tenha alguma coisa a ver com o islamismo - é verdade que muitas "escolas" teológicas islâmicas não são a favor da MGF, mas outras são-o, pelo que existe realmente uma ligação entre algum islamismo e a MGF).
Em tempos li alguém que escrevia que a visão do mundo dos "multiculturalistas" era algo parecido com a diversidade cultural na antiga URSS (em que a rigida uniformidade ideológica marxista-leninista era conjugada com a promoção dos dialetos, danças e folcores locais): uma grande apologia das diferenças folclóricas entre as várias "culturas", mas ao mesmo tempo uma tendência a ignorar que haja diferenças fundamentais entre elas.
Diga-se, aliás, que nalguma direita mais radical (sobretudo em movimentos como os neotradicionaistas/neoreacionários/"dark enlightenment") por vezes vejo o fenómeno simétrico: um grande discurso de defesa da civilização europeia/ocidental nos seus aspetos mais superficiais ou puramente simbólicos, conjugada com posições em quase todos os assuntos (democracia, direitos das mulheres, herança iluminista, etc.) que, se fossem levadas à prática, eliminariam quase tudo o que costuma ser apresentado como sendo a "civilização ocidental".
15/01/16
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3 comentários:
A sua tese é a de que, porque os atacantes e violadores em Colónia eram (supõe-se porque não é certo) muçulmanos, o Islão é uma religião de violadores. Vamos admitir que os violadores do ataque de Colónia são todos muçulmanos, concluir, ainda assim, que o Islão ou todos os muçulmanos são isto ou aquilo é uma generalização abusiva a que se costuma dar o nome de racismo. Quanto aos criminosos que violaram e maltrataram mulheres, sejam eles de onde forem, devem ser tratados como todos os criminosos, julgados, condenados e presos. Porque raio é que uma discussão legal e criminal se transformou numa questão racial e cultural quando nem se sabe ao certo a identidade dos criminosos? Mais, que daqui se passe para uma discussão sobre o multiculturalismo (assim naturalmente enviesada)parece um argumento repetido pela direita mais retrógrada, que confunde intencionalmente comportamentos criminosos (como a excisão) com diferenças legítimas culturais (como o uso do véu) porque assim pode advogar uma Europa cristã e branca. Ora, ler estas posições aqui é surpreendente.
Ola Miguel,
Calculo que o meu comentario no post anterior te pareça uma boa ilustração do "multiculturalismo". Julgo que estamos a misturar dois problemas :
- As reivindicações dos emigrantes nos paises ricos não têm nada a ver com a pretensão de verem os seus costumes ou as suas tradições sobreporem-se aos das sociedades que os acolhem. Querem apenas não ser estigmatizados e discriminados em razão desses costumes, desde que cumpram as regras fundamentais da sociedade em que vivem, entre os quais esta o principio de igualdade, que esta alias na base das suas proprias reivindicações. Isto passa, como é obvio, por combater reacções do tipo : um muçulmano agrediu uma mulher, logo todos os muçulmanos são por definição refractarios ao principio de igualdade. Mas, como é obvio, nunca poderia servir - e que eu veja nunca serve - para defender que um muçulmano deveria ser desculpado quando agride uma mulher ou quando viola a igualdade, a pretexto que isto lhe estaria na massa do sangue.
- A questão de saber até que ponto devemos impor os nossos padrões a culturas diversas põe-se, por hipotese, fora dos nossos paises e não tem rigorosamente nada a ver com o que digo acima. Excluir por principio que outras culturas, com regras que nos chocam, possam ter a sua consistência, é impedir-se de as compreender e considera-las à partida como barbaras. Que eu saiba, ao longo da historia de que gostamos de nos orgulhar, a nossa propria "civilização" cometeu com toda a certeza atrocidades bastantes para podermos precaver-nos contra esta tentação e para admitirmos, sem no entanto abdicarmos dos nossos principios, que somos todos um pouco "barbaros", ou pelo menos em risco de o parecer aos olhos dos outros...
Abraços
Miguel (M), concordo no fundamental com o teu post, que tem ainda por cima o mérito de precisar melhor certas questões.
Quanto ao que diz o Anónimo, convém lembrar que considerar a excisão um comportamento criminoso e não uma diferença cultural legítima é precisamente o contrário do que afirmam e procuram impor forças, movimentos ou regimes, que invocam como argumento a sua identidade cultural própria. Aliás, qualquer porta-voz desses movimentos ou regimes consideraria irremediavelmente "eurocêntrico" o raciocínio do Anónimo.
Finalmente, tentei já responder aos argumentos do João Viegas na caixa de comentários do post que reproduz a minha troca de mails com o João Bernardo — post que ele, JV, comentou, mobilizando argumentos idênticos aos que aqui utiliza.
miguel(sp)
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