10/03/16

Da sacralização e da veneração atenta e obrigada/obrigatória dos discursos presidenciais

Ontem li um apelo de Hans Küng ao Papa, reclamando que este dessacralize aquilo que possa dizer ainda que ex cathedra e ponha fim à doutrina da infalibilidade papal. Por cá, em contrapartida, assisto com pasmo a uma autêntica campanha favorável, senão a que se decrete a infalibilidade do PR,  pelo menos à sacralização e veneração constitucionais da sua figura. Pessoalmente, não me aquece nem arrefece que os deputados do PCP, dos Verdes e do BE não tenham aplaudido o discurso de tomada de posse de Marcelo Rebelo de Sousa na AR. E também não estou interessado em pronunciar-me sobre a sua habilidade política ou falta dela. Mas, ao contrário do camarada José Guinote, não considero uma falta de educação não se aplaudir um discurso com o qual não se concorda, MORMEMTE quando quem o pronuncia é um Chefe de Estado. É verdade que a leitura do José Guinote não equivale a um desígnio de sacralização e veneração atenta e obrigada/obrigatória dos discursos presidenciais. O caso, porém, muda de figura quando outros escrevem, por exemplo, como faz Luís Menezes Leitão, que a atitude dos deputados referidos os coloca no exterior do regime e da sua legitimidade. Trata-se, é claro, de um catedrático disparate, ainda que, provavelmente, tal aura heróica e "anti-sistema" não desagrade à demagogia que os partidos recém-chegados ao arco da governação não desdenham cultivar. Mas dizer que se trata de um disparate catedrático não nos deve cegar ao facto de o desígnio de sacralização da figura do Chefe de Estado ser solidário de outro, bastante inquietante e transparente. Trata-se, com efeito, de negar a legitimidade democrática às posições que contestam, não esta ou aquela medida do governo ou da AR, mas a natureza do regime (oligárquico, ainda que liberal) que nos governa e as suas instituições emblemáticas.

4 comentários:

José Guinote disse...

Meu caro Miguel pedir-te-ia que me fizesses o favor de não me incluir nos que, de uma ou outra forma, concorrem para a "sacralização atenta e veneração atenta e obrigada" do Presidente, ou dos seus discursos. É um pedido retórico porque eu sei que no teu post salvaguardas a minha posição. Eu, como sabes, não apoiei Marcelo e critiquei asperamente a esquerda dividida por ter facilitado, no limite das suas possibilidades, a sua fácil eleição. Mas, tratando-se de um discurso de tomada de posse, depois de realizadas as eleições, o aplauso, não implica uma aceitação do conteúdo. É apenas uma formalidade, tal como o discurso ele próprio.Acho eu que se trata de uma manifestação de urbanidade democrática. Depois se verá, na política concreta. Aliás, os que não aplaudiram foram depois ao aperto de mão, em fila, uns atrás dos outros. Ou não foram. Aliás, de novo, os que não aplaudiram não contestam a natureza do regime, antes concorreram pela posição, como sabemos.
Os talibans de que falas são outra coisa. Ver neste pequeno acto desrespeitoso, acho eu, uma manifestação de não pertença ao regime vigente, é uma alucinação.

Miguel Serras Pereira disse...

Caro José Guinote,
claro que não te confundo com talibans nem cruzados, como de resto bem sabes.
No entanto, a propósito das pequenas coisas, não devemos esquecer as grandes, ou o que, para o bem e para o mal, arranca à insignificância os pequenos incidentes quotidianos. Entre as coisas grandes de que falo, conta-se a democracia. E esta convém não a confundir com o simples Estado de Direito ou o regime representativo moderado pelo sufrágio universal. A democracia implica aquilo a que chamo a cidadania governante — a participação igualitária de todos na deliberação e decisão das questões colectivas que os afectam ou vinculam. Aponta, portanto, para instituições e para uma relação com as instituições oposta às da ordem estatal, assente na divisão estrutural e permanente entre governantes e governados. Daí que falar do "chefe de Estado" de uma república democrática propriamente dita seja uma aberração. O que não quer dizer que o exercício do poder político pelos cidadãos organizados não possa ou não deva para certos efeitos protocolares ou procedimentais nomear — por eleição ou, de preferência, tiragem à sorte — um dos seus pares "presidente da república", como, noutros casos e para outros efeitos, poderá delegar certas tarefas em delegados, que não se tornem representantes no sentido de superiores hierárquicos dos cidadãos governantes. Por fim, se podemos democratizar as instituições, se não há democratização sem formas institucionais que a garantam e alimentem, a verdade é que outro traço distintivo fundamental da autonomia democrática é poder pôr em questão as próprias instituições e leis que asseguram a democratização — dessacralizando-as e discutindo-as tanto na "praça da palavra" informal da cidade como nas assembleias e instituições do governo dos cidadãos. Dito isto, compreenderás que o meu reparo amistosamente jocoso partiu do pressuposto de um acordo geral e profundo da tua parte com o que acabo de resumir.

Abraço

miguel(sp)

Anónimo disse...

Não sei se repararam bem mas, M.Serras Pereira," obrigou " o staff do novo PR a justificar/perspectivar o sentido do concerto na Praça do Municipio. É obra e reconhecimento racional e objectivo contra a espuma dos dias, diria Hegel.De qualquer forma, Marcelo, com a sua polivante imaginação e audácia- furar protocolos e fazer reuniões com os trablhadores internos do palácio presidencial -projecta-se(nos) na odisseia, como assinala Kundera, de desencadear " um fascinante reino imaginativo onde ninguém possui a verdade e cada qual tem o direito de ser compreendido...".Claro, as ideias têem consequências e esperemos para ver. Niet

Anónimo disse...

Post brilhante, Miguel

abraço
ezequiel