Agora é moda atacar a lei de 2016 que proíbe o abate de animais saudáveis em canis - mas uma coisa que noto é que as pessoas que criticam essa lei (normalmente dizendo "é preciso primeiro criar condições") só começaram a reclamar em 2018, quando ela entrou em vigor - como exemplo temos o João Miguel Tavares, que pelos vistos se orgulha de em 2018 ter falado do assunto (se estava tão preocupado, porque é que não falou logo em 2016?); este post da Helena Matos também parece confirmar isso (dizendo que "quando da aprovação da legislação urbano-fofinha sobre a proibição do abate de animais nos canis foram vários os veterinários e associações do sector que explicaram a inviabilidade da aplicação desta lei", mas depois linkando para artigos de... 2018).
Ora, se numa lei aprovada em 2016 mas com um prazo de 2 anos de preparação para entrar em vigor, só quando acabou o prazo é que toda a gente se lembrou que afinal não podia ser, isso quer dizer que na altura ninguém se preocupou realmente em adaptar os canis para deixarem de funcionar numa lógica de abate, porque se o tivessem das duas uma:
a) Iam pensar que adaptações teriam que fazer nos canis, concluído que não as conseguiam fazer em 2 anos e reclamado logo na altura
b) Ou então teriam concluído que se conseguiria mesmo por os canis a funcionar em 2 anos e não haveria problema nenhum
Claro que há a hipótese de ter havido um erro generalizado de perceção, em 2016 os responsáveis locais terem todos ficado convencidos que 2 anos seria suficiente para reestruturar os canis e afinal não terem sido; é possível - mas quase que aposto que o que aconteceu foi nessa altura toda a gente ter pensado "ah, isso é daquelas coisas que fazem lá em cima em Lisboa mas depois não é para se aplicar" e só quando chegou o ano de 2018 é que perceberam realmente que a lei era suposto ser aplicada - ou seja, se a lei tivesse dado um prazo de 50 anos para entrar em vigor, em 2066 teríamos à mesma toda a gente a dizer "ainda não há condições!" .
O problema da conversa de que só se pode acabar com os abates de animais em canis quando "houver condições" é que o "houver condições" é em parte endógeno, não exógeno - isto é, se os canis poderem abater animais para não ficarem sobrelotados, claro que o incentivo para ampliar canis ou arranjar donos para os animais que lá estão é menor do que se não os poderem abater.
Um exemplo simples - há tempos, no Algarve, alguns imbecis tiveram a ideia de acabar com os canis municipais e fazer um mega-canil regional em Alcoutim; creio que esse projeto foi abandonado, mas no novo quadro legal não faria sentido nenhum (por isso é que digo que os seus autores são imbecis): se o destino dos animais em canis já não é o abate mas sim a adoção, os canis têm que estar relativamente ao pé das localidades; ora, alguém está a ver este diálogo numa família de Faro ou Portimão?
Filho - "Quero um cão pelos anos";
Pai - "Está bem; no fim de semana, vamos fazer uma viagem de duzentos ou mais quilómetros, ida e volta, por uma estradas sinuosas na serra algarvia, para irmos ao canil de Alcoutim buscar um cão."
Claro que não - se já hoje em dia são raras as pessoas que vão buscar cães e gatos a canis, ainda menos as seriam assim (declaração de interesses - nem o Pantufa nem a Íris vieram de algum gatil; foram-me dados por pessoas que os acharam na rua); isso é indicativo que os decisores até há muito pouco tempo não pensavam nos canis como locais de adoção mas de abate, o que significa que sem uma lei ou algo parecido proibindo os abates, os canis continuariam a ser construídos a pensar no abate, e ficaríamos num ciclo vicioso sem solução (em que nunca se poderia acabar com os abates porque ainda não havia condições).
[Eu digo "uma lei ou algo parecido" porque poderá haver aqui efetivamente uma questão sobre se isto deverá ser decidido por uma lei da Assembleia da República para o país todo ou por regulamentos aprovados pelas Assembleias Municipais; o meu ponto é que, sem alguma decisão política de acabar com os abates - independentemente do nivel a que seja tomada - dificilmente haverá condições técnicas para isso]
Quanto há conversa do "é por causa desta lei que aqueles cães em Santo Tirso morreram", é um bocado aquela conversa do "tivemos que a destruir para a salvar" (a respeito da destruição de aldeias na Guerra do Vietname); basicamente o que essas pessoas estão a dizer é que, se aqueles cães (ou outros no lugar deles) tivessem antes sido abatidos, não teriam morrido agora no incêndio - é discutível que essa seja uma grande vantagem; eu imagino que o raciocínio implícito é que é melhor morrer eutanasiado do que queimado, e até é verdade, mas a alternativa não é entre 73 animais serem eutanasiados ou queimados vivos; é entre 73 animais queimados vivos e uns 10.000 eutanasiados por ano.
Um aparte - espero que os canis não andem a recolher gatos vadios; se estão assim tão cheios, não faz sentido recolherem um animal que (ao contrário dos cães) praticamente não representa perigo para os humanos e cuja população pode ser controlado pela método de captura-esterilização-libertação.
Finalmente, algumas pessoas dirão que é uma incoerência ser contra a eutanásia de animais saudáveis mas a favor da legalização da eutanásia em humanos; a respeito disso, eu pessoalmente nem me incomodaria se voltasse a haver abates em canis se feitos de acordo com os trâmites dos projetos de eutanásia que foram apresentados no parlamento (como este-pdf): p.ex., se o cão fizesse um pedido por escrito (revogável a qualquer momento), fosse avaliado por um médico que confirmasse que ele estava consciente no momento do pedido (e eventualmente também por um psiquiatra animal), depois fosse a uma comissão que confirmasse que se verificavam todas as condições previstas na lei, e só depois disso o cão fosse eutanasiado (podendo o cão, como já disse, desistir do processo a qualquer momento). Ok, isto que eu estou a dizer neste parágrafo não faz grande sentido, mas é só para mostrar que a analogia que alguns tentam fazer entre a eutanásia em humanos e a eutanásia em animais também não faz sentido (são duas coisas bastante diferente com o mesmo nome, um pouco como "com o empréstimo que pedi ao Novo Banco, comprei um novo banco para a cozinha").
29/07/20
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1 comentários:
Um empréstimo do Novo Banco para comprar um novo banco para a cozinha? Pronto, era só o que cá faltava! Mais um buraco para os contribuintes pagarem. Nunca mais acaba! Francamente...
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