25/03/25

Encontros do Nadadouro 2025 - a minha intervenção

Texto base da minha intervenção nos Encontros do Nadadouro 2025 (como há coisas que fazem mais sentido na escrita do que na oralidade, a intervenção propriamente dita foi um bocado diferente do texto):

Foi-me sugerido estes Encontros do Nadadouro, para falar sobre o tema “Libertarismo na Imprensa e nos Média”; mas venho falar sobre um assunto que há primeira vista talvez não se enquandre muito no tema, mas no fundo acaba por se integrar – o papel da internet na mobilização de movimentos sociais de protesto auto-organizados; e em contraponto o seu papel na mobilização de forças politicas reacionárias – e se há alguma relação entre isso e a mudança da internet de um espaço largamente descentralizado, aberto e não-comercial para um dominado por 3 ou 4 grandes empresas e por redes sociais fechadas.

Nos primeiros 20, e sobretudo, nos primeiros 15 anos deste século, a internet parecia um meio privilegiado para a auto-organização de movimentos sociais

O ponto alto foi provavelmente em 2010-11, com as revelações da Wikileaks, e depois com a Primavera Árabe, os Indignados em Espanha ou o Occupy Wall Street – em todos as mobilização começou por ser largamente via Internet. Aqui em Portugal, tivemos a manifestação da “Geração à Rasca” em março de 2011.

A ideia que havia era a de uma quase utopia tecnológica, em que estávamos a entrar num mundo em qualquer pessoa ou pequeno grupo, se defendesse uma causa popular, poderia facilmente convocar um movimento de massa, sem necessidade de lideranças formais ou organização, numa espécie de democracia direta eletrónica.

Diga-se que, desde que a internet se começou a popularizar nos anos 90, muito antes da erupção dos movimentos sociais alimentados por ela, que era corrente a ideia entre alguns entusiastas, que seria o ponto de partida para uma sociedade libertária, devido às suas características de ausência de autoridades centralizadas, e também à aparente quase impossibilidade de estabelecer direitos de propriedade sobre o principal “bem”, a informação, que por lá circulava. Há, aliás, um artigo interessante de 1999, sobre o software livre, em que a dada altura o autor escreve “Há um mito, como todos os mitos em parte com algo de real, que os programadores informáticos são todos libertários. Os de direita são capitalistas e detestam impostos, sindicatos e leis anti-discriminação; os de esquerda odeiam o mercado e todos os governos, acreditam na comunicação encriptada mesmo que isso cause terrorismo nuclear, e não gostam do Bill Gates porque ele é rico.”.

Agora, nalguns pontos esta passagem (recordo, de 1999) está claramente datada – o mais óbvio (e menos importante) é o Bill Gates (hoje em dia o vilão seria talvez Elon Musk ou o Zuckerberg). Mais relevante é que a moda ultra-liberal, anarco-capitalista, entre os informáticos de direita parece ter sido substituída pela tendência neoreacionária, com algumas luminárias de Sillicon Valley a se declararem abertamente a favor de algo parecido com uma monarquia absoluta.

Agora, a partir de certa altura (eu diria que a partir de 2016, com o Brexit e a primeira vitória de Trump) o tecno-otimismo nos círculos progressistas parece ter morrido – a narrativa dominante passou a ser a que a internet (nomeadamente as chamadas redes sociais) está nas mãos de 2 ou 3 milionários, cujos algoritmos favorecem o discurso de ódio e a desinformação.

Qual o porquê desta aparente mudança?

Bem, os centristas do establishment provavelmente dirão que não é mudança nenhuma, que é tudo “populismo” (eu diria logo que uma grande diferença é que no primeiro caso tratou-se das pessoas saírem para a rua, e no segundo apenas de votarem)
Outro angulo é que se pode questionar essa narrativa que o recente acenso da extrema-direita tem realmente a ver com as redes sociais; afinal, quase todas as sondagens parecem indicar que onde a extrema-direita tem mais votos é no eleitorado mais idoso, nas pequenas localidades e nos com menos habilitações académicas. À partida não parecem as pessoas mais dadas a passar o tempo no mundo virtual.
Mas vamos admitir que realmente a internet e as redes sociais se tornaram o grande centro de mobilização da extrema-direita. Poderá haver alguma razão especial para isso? E as respostas a isso serão as mais adequadas?

Em primeiro lugar, é tentador associar isso à explosão dos “walled gardens” nos últimos 15 anos – aqueles sites em que é preciso estar mesmo lá dentro, ter uma conta, para puder usufruir ou participar, como é o caso do Facebook, ou do Twitter. Nos sites pessoais dos anos 90, ou nos blogues dos “anos 00”), qualquer um podia ir ler um site no Geocities ou um blogue no Weblog, e (se o site ou blogue tivesse essa opção) deixar os seus comentários. Isso dá aos proprietários das plataformas atuais um poder que não tinham há uns 20 anos atrás – podem banir utilizadores, determinar que posts aparecem em primeiro lugar, etc.

No entanto, por mais que se queira romantizar a internet pre-walled gardes, as mobilizações de massas que falei no princípio ocorreram já no tempo das redes sociais empresariais – a verdade é que os blogues e as páginas pessoais eram um fenómeno largamente elitista, que implicava algum esforço para configurar o site, e depois mantê-lo atualizado. Foram as redes proprietárias que, bem ou mal, puseram milhões de pessoas com algo parecido com uma página na internet, sem nenhum esforço para a configurar, e bastando a motivação “manter o contacto com os colegas da faculdade”. E foi isso que permitiu que depois esses milhões de pessoas, entre as fotografias de gatinhos, se mobilizarem para causas politicas e sociais via internet.

A criação de redes sociais distribuídas, como o Diaspora ou o Mastodon poderiam ser o melhor de dois mundos – com quase a mesma facilidade de criar um perfil e depois procurar/encontrar amigos do mundo real que o Twitter ou o Facebook (a única dificuldade adicional é descobrir e escolher uma instância), e sem estarem nas mãos de uma entidade única. No entanto, nenhuma delas ganhou gás para se afirmarem como alternativa.

De qualquer maneira, a critica às redes sociais e ao seu alegado papel na divulgação de movimentos reacionários nos últimos anos tem muitas ambiguidades. Não se percebe muito bem se essa critica tende a ser a ações ou omissões – o problema é os algoritmos promoveram ativamente posições racistas, xenófobas, machistas, etc.? Ou é sobretudo as redes não terem moderação suficiente e deixarem passar esses posts e comentários? Ou seja, o mal é as empresas proprietárias das redes gerirem-nas de mais ou de menos?
Sobretudo do ponto de vista dos que reclamam que as redes sociais não fazem suficiente moderação, combate à desinformação, etc., parece-me que um mundo sem redes sociais proprietárias seria pior – num mundo de sites, blogues e fóruns independentes é que não haveria mesmo quase ninguém para fazer a tal moderação de conteúdos.

Até suspeito que algumas posições que chegaram a estar na moda, tipo “temos que partir as grandes redes sociais para combater o discurso de ódio e a desinformação” têm origem numa polinização cruzada entre várias correntes de esquerda:

– Por um lado a tal esquerda libertária que passou os primeiros 20 anos da WWW entusiasmada, vendo a internet como uma espécie de paraíso anarco-comunista, quase sem autoridades ou hierarquias, em que todos podiam participar, numa produção simultaneamente individualista e comunitária; para estes, a internet ficar dominada por capitalistas e empresas é uma tragédia – é o fim do seu “verdadeiro socialismo”

– Por outro, uma esquerda moderada que nem tem particularmente nada contra o grande capital, desde que este pague impostos para financiar o estado social e tenha suficientes mulheres e minorias étnicas em altos cargos; e como vimos, a partir de 2015-16, variantes desta esquerda tiveram várias derrotas eleitorais aparentemente inesperadas e, por qualquer razão, convenceram-se que o problema tinha sido as “noticias falsas” e o “discurso de ódio” das redes sociais. Esses não terão grandes objeções em abstrato à existência de redes sociais centralizadas e monopolizadas, apenas ao que lá circula

E como disse, o que suspeito é que essa conversa que associa o suposto aumento do “discurso de ódio” e da “desinformação” com o domínio da internet por monopólios é o resultado não muito coerente de uma fusão entre essas duas narrativas à partida idistintas.
Já agora, poderíamos refletir porque é que a maior parte dos dissidentes do Twitter têm preferido ir para o Bluesky do que para o Mastodon; a minha suspeita é que uma razão é que grande parte dos que abandonam o Twitter não têm nenhum problema com uma rede social sujeita a uma autoridade central (pelo contrário, o problema deles com o Elon Musk parece por vezes o ser demasiado permissivo), apenas não gostam do atual decisor central, logo preferem uma rede social alternativa que na prática apena muda quem está a mandar.

É verdade que o argumento dos algoritmos pode ser usado para tentar conciliar as duas coisas – se o problema dos multimilionários que controlam as redes sociais não for apenas passivo, de não fazerem nada contra a desinformação ou o discurso de ódio, mas de o ativamente o promoverem, dando-lhes mais visibilidade do que o que resultaria simplesmente das pessoas partilharem esse género de artigos, aí, sim, já teríamos um problema especifico das redes sociais centralizadas que não existiria num mundo de blogs, foruns, etc, não coordenados.

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