29/01/14

A conversa da praxe


A minha última crónica no jornal “i” acertou num nervo que não adivinhei na anatomia desse corpo estranho que são os leitores. Entre likes, partilhas e tweets, deu azo a mais de 36 mil reacções online. Só os comentários ultrapassaram o milhar e meio.
Percebo que não foi culpa (nem inspiração) minha. Muitas pessoas com certezas sobre as praxes resolveram pousar no texto e conversar um pouco. Entre si, mas também comigo; apareceu malta angustiada com o paradeiro do meu cérebro (“será possível que este acéfalo é pago para escrever coisas destas?”) e quem até já tinha solução para a maleita: “Sr. Luis Rainha, vá é tomar uns supositorios pelo anus acima, a ver se lhe passa a diarreia mental”. Isto sem esquecer os 15 prestáveis comentadores que me verberaram pelo uso da palavra "prontos". Enfim, longe de mim fazer coro com quem por ali decretou que “há pessoas que nem direito a opinião deviam ter”...
Após um esforço valente, li todos os palpites, mais ou menos partidos a meio entre a defesa e a rejeição das praxes. Cedo reparei que os “prós” se agregavam em três grandes temas: 1- a praxe é tradição; 2- trata-se de um ritual que integra o caloiro; 3- só participa quem quer.
Vamos por partes. Apesar de antepassados que remontam ao “foro acad, que instaurava um regime especial para  tudo)rovinham de entusiastas das praxes acadsoas com ideias fortes sobre o tema da praémico” de Coimbra, de 1408, certo é que o termo “praxe” só começou a ser usado nesta acepção há século e meio. Como o Miguel Cardina nota, os sedimentos de passado em que os praxistas actuais julgam ancorar-se resultam de uma “invenção da tradição”, para usar a fórmula de Hobsbawm: cada etnia com manias emancipatórias, cada nação que nasce, tende a ficcionar um passado glorioso e ininterrupto, raiz imaginária de onde só podem crescer grandes feitos. Surgem assim símbolos como os kilts e os tartans, emblemas nacionais dos escoceses que, afinal, datam dos séculos XVIII e XIX (obras de ingleses, ainda por cima). À escala nossa, percebemos por que é que os clubes de futebol se empenham em “descobrir” datas de fundação cada vez mais recuadas e estapafúrdias: a Tradição é património tão valioso que não pode ser confiado aos caprichos da História.

Depois, a mitologia suave, benfazeja, da integração, das amizades eternas forjadas no lume das praxes. Os ritos de passagem incluem sempre o ordálio, uma medida de dor que marca como tatuagem a narrativa de vida do iniciado e igualiza veteranos e novatos; todos ultrapassaram as provas, todos são adultos/soldados/veteranos (riscar o que não interessa), irmãos na robustez, na partilha de um ideal heróico, de uma vida distinta.
Repare-se que no início as fatiotas negras sinalizavam uma pertença especial: “nós somos estudantes, futuros doutores” – assim se separava a estudantada dos sujos “futricas”. Só depois da proliferação de universidades-proveta é que as praxes alastraram, talvez almejando redimir alunos do estigma de viverem no fundo do barril académico, em fábricas de diplomas que montavam doutores do calibre de um Relvas. Lembrem-se: os rituais mais ferozes (que já causaram pelo menos uma vítima mortal) eclodiram em faculdades de prestígio académico algo esconso.
A praxe é a membrana através da qual se processa a metamorfose de outsider em eleito; uma “experiência de vida” que começa por separar o novato da sua vida anterior e depois o guia na transição para uma incorporação plena na elite académica. Mas não duvidemos: a obediência é sempre o produto desejado dos rituais da praxe. A festiva aquiescência à vontade do chefe, aos ditames da tradição, espelha os rituais castrenses, que ainda assim têm a atenuante da preparação para o campo de batalha, onde a hesitação significa morte.
E serão os nossos filhos adolescentes invulneráveis a coacções, aos caprichos de tiranetes de ocasião? Não. Mas podemos sempre protegê-los mais. Como o fazem, só por exemplo, as normas antipraxe do Texas, ao proibirem “as ameaças de ostracismo ao estudante ou a sua sujeição a ignomínia, vergonha ou desgraça ante os seus colegas”. Talvez um dia tenhamos leis assim.
De já para já, vogamos entre memórias e desejos antagónicos: “eu fui praxado, tive de apanhar um porco num lamaçal. É das melhores memórias que tenho” vs. “a praxe começa com ameaças. só a evitei quando encostei uma garrafa partida ao pescoço do dux ou conde ou o raio que o parta.” Francamente, espero que os meus filhos não hesitem em escolher a segunda atitude.

2 comentários:

Libertário disse...

Pertencendo à geração do 25 de Abril que se opôs activamente à praxe e ao seu regresso no final dos anos 70 - e recordo que outra geração de 70 a de Antero tinha já posto em causa os rituais reaccionários da Universidade de Coimbra - não deixo de achar ridículo a ideia de u ma certa esquerda tudo resolver através do Estado e da legislação.

Os estudantes podem pura e simplesmente afirmar a sua liberdade e autonomia recusando a praxe e todos os abusos e humilhações a ela associados e se necessário pela força colocar no seu lugar os estúpidos pequenos tiranetes que acham normal e correcto humilhar os colegas em nome de uma falsa tradição académica que universidades particulares e institutos criados à meia dúzia de anos evocam. Mas que as universidades mais antigas também gostam de manter. Foi isto que fizemos nos anos 70.

Imaginar que é a polícia, o Estado leis especiais que têm de nos proteger é persistir no caminho da dependência, e da incapacidade, das pessoas determinar o seu próprio destino. Talvez por isso temos a sociedade que temos.

Anónimo disse...

Concordo inteiramente com o autor.
Não concordo com o anterior comentário. Necessitamos sim, de regras e de leis especiais, dado que não sabemos comportar-nos.

A constituição da republica portuguesa não provoca nem incapacidade nem dependência.