26/01/14

Ainda não li nada que me parecesse tão inteligente e certeiro acerca do referendo sobre a adopção gay…

…como este post do Filipe Nunes Vicente. O texto deve, é claro, ser lido na íntegra, e levanta de passagem e en creux, questões decisivas, que terei de deixar para outra ocasião (telegraficamente, por exemplo: a exigência de auto-limitação da democracia directa, ou a impossibilidade de uma política puramente "arendtiana" que exclua a deliberação/decisão da ecclesia, entendida como conjunto dos "conselhos" ou assembleia dos cidadãos, sobre "assuntos de natureza social" — ou também, numa medida ou noutra, sobre o que se passa na esfera doméstica e privada, ou oikos). No entanto, e para já, qualquer dos seus poucos parágrafos pode validar razoavelmente o juízo que o título deste meu post formula. Senão veja-se, a título de amostra:

Que fique claro que se queremos  combater a violência organizada do Estado, temos de desenvolver armas poderosas, apropriadas à magnitude da tarefa ( Delo Truda N°17, October 1926, pp. 5-6). Esta pequena declaração de Makhno  descobre o terreno. Se é entendido pelos defensores das causas LGBT que em todo o lado o   Estado  tem exercido violência sobre os homossexuais, então não pode ser o Estado, através  do poder legislativo, emanado  dos mecanismos  de representação  partidária, a libertá-los. Significa isto que referendar a adopção gay é bela e maravilhosa participação popular ? Não. É desnecessário utilizar um possível referendo à adopção gay como bandeira de uma governação participada, porque ela não existe. 

10 comentários:

joão viegas disse...

Ola,

Não segui a discussão desde o inicio, mas o texto do Filipe Nunes Vicente parece-me simplesmente absurdo.

O que ele diz é que se consideramos que ha leis ou normas estaduais opressivas, ou contrarias à igualdade, não é coerente pedir "ao Estado" que as revogue ou que as modifique... Então como é que fazemos ? Ha regras injustas, ou ilegitimas, logo os mecanismos de aprovação das regras são maus e não os podemos utilizar, restando-nos apenas a luta armada contra o Estado ? Que raio de raciocinio...

E porque é que um referendo seria a priori uma forma mais adequada, ou mais racional, de garantir que a decisão representa a vontade do povo ? Eu consigo pensar em n razões que apontam exactamente no sentido inverso...

As regras democraticas são imperfeitas, concedo isto sem dificuldade. Mas à falta de melhor, não consigo compreender porque é que não podem ser usadas. Ora neste aspecto, a questão é simples : sera que o referendo, admissivel nalgumas situações, é a forma mais adequada de resolver a questão à luz dos princpios democraticos que inspiram a nossa constituição e o nosso ordenamento juridico ?

Abraço

Miguel Serras Pereira disse...

Caro João,

parece-me que não leste bem o que escreveu o Filipe. Em primeiro lugar, não há uma apologia nem uma rejeição incondicional do referendo. E, em segundo lugar, não me parece que a ideia seja também rejeitar em absoluto a conveniência desta ou daquel reforma. Trata-se, sim, e justificadamente a meu ver, se leio bem o Filipe, de alertar contra a ambivalência eas ameaças que a tutela de minorias pelo Estado acarreta, e para a necessidade de os direitos, que não tenham como contrapartida a menorização, serem garantidos pelo pdoer efectivo — ou participação efectiva no poder que os garante — dos seus titulares.
Admitidos estes pontos, muitas coisas essenciais continuam em aberto, podendo e devendo ser discutidas. O post do Filipe não aponta ou encerra uma conclusão, mas propõe um ponto prévio, ou enuncia questões das quais convém que tomemos consciência à partida. Enfim, é a minha leitura, que, até prova em contrário, me parece, por uma vez, mais justa do que a tua. Mas, caso o não seja, tu ou o próprio Filipe, se assim o entender, me corrigirão.

Abraço

miguel (sp)

joão viegas disse...

Ola,

Pode acontecer eu ter lido apressadamente. O que não percebo é a frase :

"Se é entendido pelos defensores das causas LGBT que em todo o lado o Estado tem exercido violência sobre os homossexuais, então não pode ser o Estado, através do poder legislativo, emanado dos mecanismos de representação partidária, a libertá-los".

Venho ca mais logo, mal arranje um bocado de tempo.

Abraço

Miguel Serras Pereira disse...

João,
compreendo a dúvida que a frase isolada pode causar, mas, se prestares um pouco mais de atenção ao que a precede e ao que se lhe segue, creio que a mesma de sissipará, ou, em todo o caso, te merecerá um juízo menos severo. Mas, em sendo caso disso, voltaremos ainda ao assunto.

Abraço

miguel(sp)

FNV disse...

Responsabilizo-me pelas reguadas do João Viegas ao Miguel.
Essa tal frase pode ser entendida se por ex atentarmos nisto:
http://nordic-lgbt-workplace.org/
ou seja, do ponto vista LGBT existe precisamente muitas vezes a ideia de que a violência do Estado não desaparece numa consulta popular isolada.
Em relação à primeira objecção do JV, o Miguel já respondeu: a tutela, o subalterno.

joão viegas disse...

Ola aos dois,

Voltei e li mais atentamente o texto e o ponto de inicio da discussão.

Acho que concordo no essencial com o que diz o Filipe Nunes Vicente. Entendo que, afinal, a frase que cito acima não descreve a posição dele, mas antes uma posição "dos defensores das causas LGBT" de que ele se desolidariza. Acho esta posição (dos defensores das causas LGBT, bom suponho que de alguns deles...) incoerente e perigosa.

No plano dos principios, na minha opinião, a questão da tutela dos direitos das minorias é uma falsa questão (bom, OK, digamos que é a 99% uma falsa questão). Da mesma forma, e pelas mesmas razões, que é uma falsa questão a pretensa contradição entre os "comunitarismos" e o interesse geral. Os direitos das minorias merecem ser tutelados porque, e na medida em que, isso interessa a todos. Não são privilégios. São, muito pelo contrario, uma exigência e um corolario do principio de igualdade.

Uma das grandes revoluções do século XX (com raizes filosoficas antigas) é ter mostrado que existe uma solidariedade essencial entre os conceitos de igualdade entre os homens e de dignidade da pessoa humana. Quando atentamos à dignidade da pessoa humana, por exemplo partindo do principio de que uma pessoa é "doente" ou "perigosa" em razão da sua orientação sexual, estamos a atentar à igualdade e estamos a violar um principio basico que interessa a todos. Precisamente porque o que fazemos nessas alturas é, ao reduzir o outro a um dos seus atributos, negar que ele mereça ser tratado como igual.

Logo, no plano dos principios, não existe antinomia radical entre decisão da maioria e protecção da minoria. Muito pelo contrario, ha e deve haver sintonia entre as duas coisas.

Outra questão, levantada pelo Miguel, é saber em que medida as nossas regras de decisão politica são idoneas para permitir uma verdadeira expressão da vontade de todos, que se exprime normalmente por maioria.

Concordo com o Miguel quando ele lembra que as regras de representação politica que estão subjacentes à adopção da lei são imperfeitas e que elas traduzem um principio que, provavelmente, pode e deve ser aperfeiçoado nas suas aplicações.

Mas não se segue dai que o referendo seja preferivel, nem tão pouco que a decisão de recorrer ao referendo deva ser acolhida como uma iniciativa que vai necessariamente no sentido do aperfeiçoamento da democracia. Ha até muito bons argumentos que apontam no sentido inverso : se as regras de funcionamento do poder parlamentar se prestam a demagogia e a instrumentalização ou desvirtuação, isso parece mais verdade ainda do referendo...

Quanto ao paragrafo citado no post, continuo perplexo. Na minha opinião, o facto de o processo legislativo ser imperfeito, logo potencialmente causador de mas decisões e de opressões, nunca poderia ser um argumento para não usar este processo enquanto não temos conhecimento de um melhor. Sera quanto muito um argumento para redobrarmos de cautela ao utiliza-lo e procurarmos lembrar, com pedagogia, em que principios ele se enraiza e quais os objectivos que ele é suposto prosseguir. Não sera panaceia, mas foi assim que conseguimos abolir a pena de morte, alcançar a igualdade no casamento, incriminar algumas discriminações, etc. Também devia ter sido assim com a despenalização do aborto (que também é uma questão de igualdade, o que tantas vezes esquecemos), mas como sabemos o governo da altura caiu na esparrela do referendo, e foi necessario fazer outro uns anos mais tarde...

Se foi isso que o Filipe Nunes Vicente quis dizer (?), então concordo plenamente com ele.

Abraços

joão viegas disse...

Ola outra vez,

Pequena addenda :

Em contrapartida discordo completamente do que escreve o Luis M. Jorge logo a seguir ao post do Filipe Nunes Vicente aqui referido.

1. A teoria de Kuhn mostra que a mudança de paradigma cientifico é (principalmente) uma questão de mentalidades (estou a simplificar), mas não diz, nem pretende demonstrar, que não existe progresso no que toca ao conhecimento que temos (graças à ciência) acerca da realidade objectiva.

2. Ainda que essa teoria tivesse o significado que Luis M. Jorge lhe atribui, isso nunca poderia servir de argumento em matéria ética e legislativa, onde penso que é ponto assente que não existe, nem nunca existiu, um progresso linear.

3. A democracia da-se bastante mal com a maxima maquiavélica de que o Luis M. Jorge se reclama. A base popular e a legitimidade democratica para a decisão de todas as questões politicas impõe-se e, se houvesse garantia que o referendo é uma forma cabal de proceder à consulta do povo para toda e qualquer questão, então eu não teria problema nenhum com o referendo. Mas acontece que o referendo NAO é uma forma de consulta idonea e sã e que ele se presta, de facto, a instrumenlização, porque tende a simplificar a questão colocada e impedir, ou dificultar sériamente, o debate sobre as consequências de cada opção, favorecendo assim o voto conservador e irresponsavel. Não digo que o referendo não possa ser usado nalgumas matérias. Mas deve ser usado com parcimonia, porque é uma forma de consulta perigosa. Portanto não se trata de termos medo por principio da demagogia e das manipulações da opinião de uma forma geral, argumentação que nos levaria a abolir a propria democracia. Trata-se antes de dizer que, no caso do referendo, temos razões fortes para estar de pé atras e para duvidar que ele seja adequado num caso como a questão da adopção. Mas este assunto (referendo acerca da adopção por casais homo) pode, e deve, ser debatido. Eu proprio ainda não tenho opinião completamente formada quanto a esta matéria.

4. Quanto à rabula classica : as pessoas estão contra ou a favor do referendo consoante lhes convém, lembro que no caso do aborto as pessoas favoraveis à despenalização estavam muito longe de estar a favor do referendo, mesmo da segunda vez. Que eu me lembre, muitas pessoas de esquerda so se conformaram com a ideia considerando que tinha havido ja um referendo e que era problematico legislar no sentido inverso sem recorrer a uma nova consulta. Portanto convém não sermos angélicos e a realpolitik existe, mas também não é assim como diz o autor do post.

Abraços democraticos

Miguel Serras Pereira disse...

Caro João,
deixando de lado uma discussão mais aprofundada do paradigma prposto por Kuhn com a sua concepção dos paradigmas (que não é, apesar de tudo, a mesma concepção que da ciência Feyerabend promove), concordo substancialmente com o que dizes.
Sobre o referendo, acrescentaria ainda que este é completamente diferente numa sociedade que prima pela progressiva destituição política dos cidadãos do que seria numa sociedade em que a participação (tendencialmente) governante destes fosse exercida organizada e regularmente, e na qual a formação de um debate público comum — verdadeiramente público e confrontando opiniões responsáveis porque com efeitos imediatos e explícitos sobre a governação — faria com que o caso mudasse radicalmente de figura.
Assim, quando o Luís M. Jorge se opõe ao que chama o "romantismo" político das concepções que fazem da cidadania activa condição e via real da democracia, é sobretudo à concepção clássica da cidadania que, com efeito, se opõe, adoptando um simulacro ou sucedâneo dela, assente no divórcio generalizado e sistemático entre a condição de governante e a de governado, cuja simultaneidade definia segundo Aristóteles o lugar e o papel do cidadão.

Abraço

miguel(sp)

joão viegas disse...

Ola Miguel,

Claro que as criticas a que aludi sobre o referendo se referem ao instituto tal como ele existe hoje em dia e tal como pode ser usado no nosso sistema politico actual.

Não excluo que o referendo, devidamente enquadrado, possa ser um instrumento de aperfeiçoamento da democracia.

Alias esta continua a ser a questão central quanto a mim : no caso em apreço, sera que o referendo traduz uma sã aplicação dos principios democraticos >? Como disse, os primeiros argumentos que me vêm à mente são negativos. Mas não excluo que possam existir outros, melhores, em sentido inverso.

Seja como fôr, se a questão da idoneidade do referendo nesta matéria permitir debater, e avançar, em termos de compreensão do que é a democracia efectiva, então tudo bem. Mas temo que a iniciativa tenha vindo da atitude inversa : inconformidade, por parte de deputados irresponsaveis, com o resultado alcançado pelo debate parlamentar...

Abraço

Anónimo disse...

Entre um egocentrismo erudito à la Rawls(FN Vicente)e um juridicismo abrangente( J. Viegas),não podemos saber onde a figura do " escravo feliz"(J. Habermas) pode acabar por ser descoberta, pois, é cerrada a invisibilidade do espaço múltiplo público/privado que as fracturas sociais e politicas da plataforma do social-histórico condiciona,perverte com os requintes da dominação de classe mais sofisticada. Niet