14/01/14

O Passa Palavra contra um Guião de "estranhas confusões" que "grassam em Portugal"


O colectivo do Passa Palavra assina uma penetrante e detalhada análise crítica das propostas apresentadas por Alexandre Abreu, João Rodrigues e Nuno Teles no seu Um Guião Político para as Europeias de 2014. A pertinência democrática da perspectiva da análise parece-me eminentemente recomendável, pelo que deixo aqui breves excertos do texto sobejamente demonstrativos da necessidade da sua leitura integral (aqui).

(…)

O núcleo do Guião Político, do qual tudo o mais decorre, reside na afirmação de que «estamos a fundir uma questão nacional politicamente potente – a da independência do país, […] com a indeclinável questão social – a da manutenção e reforço de um Estado social […] que não sobrevive sem instituições públicas […] que criam uma comunidade de destino, o cimento de uma primeira pessoa do plural que é sempre o ingrediente de todas as grandes transformações socialistas» (pág. 2). Apesar da roupagem democrática, temos aqui mais uma fusão do social com o nacional, que nunca deixou de produzir resultados trágicos. É deveras assustador que se tenha a tal ponto perdido a noção da dinâmica que levou ao aparecimento e à expansão dos fascismos. Essa dinâmica consistiu na convergência entre a enxertia do nacional no social, operada à esquerda, e a enxertia do social no nacional, operada à direita.

(…)

O Guião Político afirma que «a esquerda que abandone o combate pela fusão destas duas questões», ou seja, a questão nacional e a questão social, «está a condenar-se a uma merecida irrelevância» (pág. 3). Possivelmente, e importaria aqui compreender porque se tornou natural a esquerda debater os efeitos de uma crise económica e financeira sobre a classe trabalhadora como se se tratasse de um debate sobre a soberania nacional. Pela nossa parte, porém, e apesar da «merecida irrelevância», afirmamos que o objectivo mais urgente da esquerda é combater a fusão daquelas duas questões, impedir que o nacional seja uma condição do social.

Mas grassam em Portugal estranhas confusões a este respeito, porque embora a esquerda evoque a nação e a soberania com o mesmo empenho com que a extrema-direita o faz, recorre a curiosos artifícios para disfarçar a incómoda vizinhança. Uns baptizam-se de patrióticos, como se isto os absolvesse do nacionalismo. Neste caso, Alexandre Abreu, João Rodrigues e Nuno Teles previnem que o Guião Político «não é uma proposta com objetivos ou princípios nacionalistas de fechamento, uma vez que considera o desmantelamento da UEM [União Económica e Monetária] como uma condição necessária para o progresso das classes populares em toda a Europa — não apenas em Portugal —, podendo e devendo fazer-se acompanhar por novas modalidades progressistas de cooperação entre Estados […]» (pág. 12). O internacionalismo fica assim convertido numa soma de nacionalismos, o que é o seu exacto oposto. Quando Marine Le Pen, presidente do Front National (Frente Nacional), conduz o principal partido da extrema-direita francesa para as eleições europeias deste ano dizendo que «é necessário aguardar que tudo se desmorone, contribuindo para isso se possível, para fazer emergir um projeto de uma Europa de nações livres [...]», como se distinguirá ela do peculiar internacionalismo dos autores do Guião Político? Na mesma ordem de ideias, Geert Wilders, chefe do Partij voor de Vrijheid (Partido da Liberdade), a principal organização da extrema-direita holandesa, declarou: «Efectivamente, penso que a nossa geração de políticos será capaz, pela primeira vez, de se mostrar diferente e recuperar o que nos pertence, isto é, a soberania nacional» (The Economist, 4 de Janeiro de 2014, pág. 18).

(…)


Reivindicar, no plano político, o reforço da soberania nacional não é mais do que, no plano económico, absolver os sectores das classes dominantes que em Portugal menos se interessaram pelos mecanismos da produtividade e da mais-valia relativa. São precisamente estes os sectores que, se o país abandonasse a zona euro, beneficiariam do abaixamento salarial e do aumento da inflação para exportar quinquilharia, continuando a apresentar no mercado estrangeiro bens com baixa componente tecnológica. Para os trabalhadores em Portugal isto significaria uma massa salarial ainda mais comprimida e a contratação de menos mão-de-obra qualificada, com o aumento da emigração dos mais qualificados e o agravamento da espiral de declínio. No âmbito de uma economia debilitada, a saída da zona euro implica o prolongamento indefinido da austeridade sobre os trabalhadores. A substituição de uma política capitalista de austeridade e recessão por outra política, não menos capitalista, de incentivos económicos poderá ser feita no quadro da União Europeia e da zona euro, desde que uma alteração do contexto político e social imponha a mudança das orientações predominantes de política económica. Mas nunca conseguirá efectuar-se no âmbito de um país pequeno e economicamente irrelevante.
Sobre os problemas colocados por uma resposta europeísta, os autores do Guião Político consideram que «dada a história recente da UE – e em particular da Zona Euro –, é uma ilusão política apostar determinada e prioritariamente num programa federal progressista» (pág. 7). Perante tal afirmação, importa perguntar: quais os dados na história recente portuguesa que tornam viável um programa económico nacional? Se o «modelo do mercado único, nos termos da ideologia liberal, constitui um traço matricial da construção europeia» (pág. 7), qual o traço matricial de uma alegada construção portuguesa que conduz ao cenário idílico delineado pelos autores? Na realidade, não só o processo revolucionário em curso (PREC) já ocorreu há 40 anos, como o seu desenlace, entre outros motivos, reflectiu o isolamento, aqui apontado como solução. É precisamente devido à diferença das condições objectivas dos povos (pág. 7) que propomos deixar de falar de povos e passar a falar de uma classe, transfronteiriça e unida por um projecto político comum. Mais do que procurar um traço matricial na história da Europa que nos sirva de guia, preferimos evocar um conjunto de experiências — desde os motins e confraternizações de ambos os lados das linhas de frente na primeira guerra mundial, passando pelos militantes de diferentes nacionalidades que rumaram a Espanha em 1936, até às manifestações antiglobalização nos inícios do século XXI — que comprovam a possibilidade desse projecto político, para lá da dimensão nacional. Não deixamos, contudo, de prestar atenção aos momentos na história da Europa do século XX em que o proletariado, dividido em nações, acabou por se massacrar a si próprio.

1 comentários:

Miguel Serras Pereira disse...

O João Bernardo publicou no Passa Palavra um comentário ao texto citado neste post, que me parece justificado trazer aqui à colação:
"Segui na internet algumas discussões acerca deste artigo, e num caso houve quem admitisse a existência de um «patriotismo internacionalista» e afirmasse que o «nacionalismo de esquerda» «tende a não ser exclusivista», enquanto o «nacionalismo de direita» «tende a ser exclusivista». Aqui lembrei-me de várias coisas, por exemplo do confronto militar entre a República Popular da China e a República Socialista do Vietname em Fevereiro e Março de 1979, dois nacionalismos de esquerda que, segundo aquela regra optimista, deveriam tender a não ser exclusivistas. Lembrei-me também de que, por iniciativa da Itália e na ausência do partido nacional-socialista alemão, se realizou em Dezembro de 1934 a conferência de Montreux, na Suíça, reunindo representantes dos movimentos fascistas de quinze países europeus, o que constitui um caso em que o nacionalismo de direita não se mostrou exclusivista. Aliás, a respeito da ausência dos nacionais-socialistas germânicos de Montreux convém saber que Hitler, sobretudo na sua roda de íntimos, se pronunciou várias vezes contra o nacionalismo, precisamente por considerá-lo demasiado exclusivista. Contra a divisão numa multiplicidade de nações Hitler e Himmler defendiam a união em grandes grupos raciais. Assim, dos 900 mil homens que até ao final da guerra haviam passado pelos Waffen SS, menos de metade eram alemães originários do Reich. Como fica, perante estes factos, a pretensa divisão entre o carácter exclusivista atribuído ao nacionalismo de direita e o carácter não exclusivista atribuído ao nacionalismo de esquerda? Esquerda e direita não servem para diferençar os nacionalismos; o nacionalismo é que serve para ligar a direita e a esquerda numa teia perversa.
É que a operação fundamental do nacionalismo não se dirige ao lado de fora das fronteiras, mas ao lado de dentro. O primeiro objectivo do nacionalismo é atrelar a classe trabalhadora de um país aos capitalistas desse país — mesmo que as suas empresas estejam inseridas nas redes internacionais do capital. O nacionalismo não se destina a preservar tradições e culturas, porque isso se faz dentro das unidades nacionais, tanto federadas como centralizadas. O objectivo do nacionalismo é, pura e simplemente, o reforço do poder de Estado. O nacionalismo é a via para o capitalismo de Estado. É para isto, e só para isto, que serve a junção do nacional ao social.
Ora, o eixo da crítica feita ao Guião Político por este artigo — e li com atenção ambos os documentos — parece-me ser o da inanidade das soluções económicas defendidas numa perspectiva nacionalista. O absurdo económico da saída de Portugal do euro, da adopção de uma moeda desvalorizada e do recurso à inflação explicam-se ao sabermos que o seu objectivo político é o reforço do capitalismo de Estado, assente numa extensão da mais-valia absoluta".

Comentando este comentário, escrevi eu própio, também no Passa Palavra, o seguinte:

Caro João Bernardo,

poderia subscrever praticamente tudo o que dizes. Gostaria, no entanto, de sublinhar a frase: "o nacionalismo é que serve para ligar a direita e a esquerda numa teia perversa" cujo inimigo principal é a democracia.
Em segundo lugar, sublinharia também a tua afirmação; "O nacionalismo não se destina a preservar tradições e culturas", acrescentando que a salvaguarda de tradições (enquanto motivos inspiradores) e criações culturais maiores (como as línguas, etc.) só teria a beneficiar com a descentralização, decorrente do enfraquecimento do colete de forças do Estado-nação, que um amplo movimento de democratização de natureza federalista acarretaria.

Um abraço

msp