23/12/14

Re: Sobre o direito à greve

N'O Insurgente, Rodrigo Adão Fonseca argumenta que "o direito à greve é um anacronismo nas sociedades atuais".

Em primeiro lugar, parece-me que grande parte dos argumentos que RAF apresenta, quando muito, poderiam servir para concluir que "a greve é um anacronismo"; mas concluir a partir daí que "o direito à greve é um anacronismo" já me parece um salto mais alto.

Mas o meu ponto é mais outro - vou assumir que, como parece, RAF é contra a existência do direito à greve (e não apenas contra o ato de fazer greve). Mas, quando vejo (ouço/leio/etc.) alguém a dizer-se contra o direito à greve, tendo a ficar na dúvida sobre o que é que defendem exatamente - é que ser contra o direito à greve, pelo menos em teoria, pode significar duas coisas diferentes: pode significar que se defende que a lei passe a, pura e simplesmente, ignorar o conceito de "greve", sendo as faltas por greve equiparadas a faltas injustificadas como outras quaisquer, com as mesmas implicações; ou pode significar que se defende que a lei puna quem faça greve (ou, pelo menos, os sindicatos que a declaram), com penas criminais ou com o pagamento de indemnizações às entidades patronais prejudicadas pela greve (como, por exemplo, no Reino Unido, em que se uma greve não for declarada de acordo com um certo número de regras, os sindicatos podem ser obrigados a pagar pesadas indemnizações às empresas - aliás, mesmo que não se declare greve nenhuma e muitos trabalhadores faltarem no mesmo dia, o sindicato pode ser obrigado a pagar uma indemnização se se provar que incentivou à "falta coletiva").

Ou seja, quando se discute o direito à greve, seria conveniente que quem diz ser contra esse direito explicasse em que sentido é contra o "direito à greve".

É verdade que essa indefinição no que se entende por "direito à greve" é ajudado pelo facto de a situação em que a lei é neutral face às greves ser uma quase inexistência histórica (talvez o Reino Unido pré-Thatcher, onde penso que os direitos legais dos sindicatos resumiam-se basicamente a terem imunidade face às leis anti-trust?) - por norma, ao levantamento dos limites legais à greve segue-se, pouco depois, a criação de proteções legais à greve, ou então um sistema misto em que há ao mesmo tempo proteção às greves - se forem declaradas em dadas condições - e punição - se forem declaradas fora dessas condições; penso que não é difícil imaginar o porquê disso - as mesmas pessoas que têm interesse em que a greve seja permitida têm também interesse em que seja protegida, e as que têm interesse em que não seja protegida têm também interesse em que seja restringida; assim, um governo apoiado nos assalariados tenderá a fazer leis protegendo o direito à greve, enquanto que um governo apoiado no patronato tenderá a fazer leis restringindo as greves (e um "governo de salvação nacional" mais facilmente implementa um sistema em que a greve seja ao mesmo tempo protegida e limitada do que um sistema em que não seja protegida nem limitada, já que esse género de governos gosta de se apresentar como regulados "imparcial" das lutas sociais).

10 comentários:

Anónimo disse...

Com Mrs Thatcher o direito à greve foi severamente restringido passando a ser obrigatória uma votação entre os sindicalizados sobre se eram ou não a favour da acção industrial.
Muito recentemente o Governo de Cameron pretendeu que a greve só seria legal se os votos sim obtivessem uma maioria qualificada.
Isso conduziria ao absurdo que o Governo Britanico se poderia sustententar numa maioria simples para exercer o poder, mas aos Sindicatos seria exigida uma qualificada para fazer greve.
A medida não passou, mas ficou a intenção
manuel.m

Miguel Madeira disse...

Com a agravante que o governo tem autoridade para impor as suas politicas, enquanto um sindicato, mesmo que uma greve tenha 90% dos votos, não pode obrigar ninguém a fazer greve.

João Vasco disse...

Já vi que a questão do direito à greve é uma excelente forma de distinguir quem é verdadeiramente liberal (mesmo que de direita), como o Gabriel Silva do Blasfémias (ver: http://blasfemias.net/2014/12/23/direito-a-greve-e-liberdade-de-associacao-iv/), de quem usa a ideologia como pretexto para defender os mais ricos e poderosos custe o que custar (o resto dos autores do Blasfémias, e 99% da direita em Portugal e talvez no resto do mundo).

Por acaso é um mistério para mim saber porque é que pessoas tão anti-liberais gostam tanto de se auto-intitular "liberais". Não é um termo particularmente popular, não corresponde àquilo em que acreditam, qual será a razão?

Miguel Madeira disse...

Bem, o João Miranda também não me parece querer proibir as greves, apenas que haja a possibilidade de no contrato de trabalho renunciar ao direito à greve; o que me parece ser efetivamente uma posição liberal (admito que um iliberal como eu não será a pessoa mais indicada para medir graus de liberalismo).

Diga-se, aliás, que das vezes em que o questionei sobre assuntos como direitos adquiridos em legislação laboral ou a admissibilidade da closed-shop (este não faço ideia de quando foi, e acho que os comentários do Blasfémias antigo desapareceram), o JM foi a favor dos direitos adquiridos e de que a closed-shop deveria ser permitida (ou seja, não assumiu a defesa dos "ricos e poderosos"); é verdade que aí tive de lhe perguntar, enquanto para defender posições de direita ele fá-lo por iniciativa própria, mas isso não significará que seja um direitista não-liberal disfarçado de liberal, apenas que provavelmente é um direitista liberal tenta não quebrar a aliança da direita (tal como eu, como esquerdista libertário, também passo muito mais tempo a atacar a direita do que o resto da esquerda)

joão viegas disse...

Ola,

Concordo com o que v. dizem acerca do fosso que existe entre os principios do liberalismo e a triste realidade dos discursos dos nossos direitistas, tantas vezes mais proximos do autoritarismo salazarento do que dos verdadeiros principios do "liberalismo". Isso para não mencionar a adulteração completa da palavra "liberal"... Eu, que exerço uma profissão "liberal", sou muitas vezes levado a explicar o que o termo significa, por exemplo aos meus estagiarios. Ainda não encontrei melhor definição do que a seguinte : "ser liberal consiste em dar mais do que aquilo que recebemos". Se encontrarem melhor, digam...

Agora sobre a greve, devo dizer que ela, de facto, choca com a cartilha "burguesa-liberal" e sempre assim foi. O direito à greve supõe aceitar a expressão de interesses colectivos (os do trabalho) de maneira exorbitante, o que implica uma excepção aos sacro-santos principios do individualismo burguês que esta na raiz da ordem saida das revoluções liberais. Podem dar as voltas que quiserem, não vão conseguir justificar o direito à greve numa optica contratualista simples, ou simploria, como aquela que mora naquelas cabeças pensantes. Lembrem-se que as revoluções liberais, ao principio, eram radicalmente avessas a toda a organização do trabalho, em nome da proibição das corporações. Portanto, neste aspecto, não me parece que eles estejam a ser incoerentes.

Abraços

Miguel Madeira disse...

Se forem contra o direito à greve simplesmente no sentido de acharem que a lei não deve dar nenhum tratamento excecional às faltas por greve, isso realmente parece-me a consequência mais lógica dos princípios liberais.

Se forem contra o direito à greve no sentido de defenderam restrições legais (e não apenas neutralidade) à greve, isso em teoria já parece mais contraditório com o liberalismo, embora tenha sido a prática dominante no liberalismo do século XIX (em que em muitos países as "coligações operárias" eram consideradas crime).

Já agora, a atitude face às "combinações industriais" em geral também é relevante para aqui: muitos liberais incluem nas funções do estado, não apenas a segurança, a justiça e a defesa, mas também a proteção da concorrência, considerando legitimo que o estado combata os monopólios - nesse caso, também será coerente defenderem que a lei penalize as greves.

Miguel Serras Pereira disse...

Sem tirar nem pôr, caro João (Viegas).

Abraço

miguel(sp)

Carlos Duarte disse...

Caro Miguel Madeira,

Não me parece que o direito à greve seja anacrónico, mas o seu uso corrente é.

O direito à greve tem por finalidade conferir à parte fraca de uma relação contratual (os trabalhadores) poderes que permitam eventual equilibrar uma balança negocial com os patrões. Mas a realidade é que não se assiste tanto a situações de greve intra-empresas (ou mesmo intra-sectoriais), mas quase e tão e somente no sub-sector público e "derivados" (empresas pseudo-privadas, como a TAP ou a Carris).

Isto ocorre porque, ao contrário do que deu origem ao direito à greve, a parte fraca nesses casos não o é: muitas das vezes e em muitas empresas/serviços, os sindicatos dispõe de mais poder efectivo que o "patronato" - nem que seja por via da chantagem (legítima, entenda-se) eleitoral.

Mais, existe a agravante de a greve ser declarada, em muitos casos, por estruturas pouco representativas (organizações sindicais "de topo"), fortemente politizadas e com interesses que não os directamente dos trabalhadores.

Pessoalmente, e em termos de legislação de greve, estou mais próximo do sistema britânico (com "balloting" antes de convocação e exigência de mais de 50% de participação e 50% de votos expressos a favor), o que teria eventualmente a vantagem de tornar as greves representativas e acabar com as acusações (muitas vezes correctas) de estas serem políticas.

Miguel Madeira disse...

Confesso que não estou tão seguro como tudo isso que as greves sejam sobretudo concentradas no sector público (nomeadamente se controlarmos para os factores "tamanho da empresa" e "probabilidade de uma greve afetar a produção"), mas estou disposto a admitir que sim.

Quanto ao sindicatos "de topo", até me dá a ideia que muitas vezes até são os mais moderados (até porque, exatamente devido às suas ligações políticas, preocupam-se mais em ganhar a simpatia da opinião pública); veja-se o caso dos professores (em que a Fenprof tem feito - talvez mais no governo anterior do que neste - o papel de "parceiro dialogante", enquanto as ações mais radicais foram impulsionadas por movimentos ad hoc) e da TAP (onde me dá a ideia que o sindicato mais radical costuma ser o dos pilotos, que creio que é também do mais "corporativos" e menos politizado ou ligado a estruturas "de topo").

A respeito do modelo inglês - refere-se ao modelo no seu conjunto (em que as greves não legais - mesmo que nem sequer declaradas - podem levar ao sindicato ser condenado a pagar multas ou indemnizações), ou apenas à parte de ser mais dificil declarar greve (o que até poderia ser combinado com o modelo português de as greves não-legais contarem apenas como faltas injustificadas)?

Carlos Duarte disse...

Nós temos dois sindicatos de topo: um mais moderado porque, apesar de político, está ligado ao "centro" do poder (a UGT) e outro absolutamente contestatário, satélite do PCP. Mas independentemente disso, ambos não são representativos: federações de agremiações de comissões acabam por representar pouco. A questão não é de moderação, mas sim de representatividade.

A título de exemplo, sou contra a contração colectiva "extensível" por Portaria. Os contratos colectivos devem unicamente vincular quem os assina, sendo que para terem efeito tanto a empresa com o trabalhador devem estar representados (a empresa integrando uma associação que o subscreva e o trabalhador encontrando-se sindicalizado num sindicato que também o subscreva).

Quanto ao modelo inglês, refiro-me à possibilidade de convocar greve. Greves não-oficiais devem ser uma falta injustificada mas não me oponho que, em caso de manifesto conluio (que deveria ser ilegal), dê lugar à abertura de processos disciplinares individuais aos "faltosos" (sendo que, em última instância, caberia ao Tribunal do Trabalho legitimar ou não as faltas).