30/01/18

Ainda sobre o assédio sexual

No i, André Abrantes Amaral escreve, a respeito das recentes denúncias de assédio sexual, que "uma mulher que foi violada não se encontra na mesma situação da que ouviu um piropo ou da que, por livre vontade, se sujeitou a algo para conseguir um papel num filme ou subir na carreira."

Eu até concordo que não é mesma situação (e por alguma razão "violação" e "assédio sexual" são palavras diferentes) - já agora (até atendendo que o ponto de partida do artigo de AAAmaral é o apoio de Samantha Geimer ao "manifesto Catherine Deneuve") é um bocado um contrassenso a atual vaga de "desaparecimento" de figuras acusadas de assédio (o caso extremo talvez seja o de Kevin Spacey, em que voltaram a rodar um filme já feito substituindo-o por outro ator), enquanto o violador de menores Roman Polanski continua a fazer a sua carreira sem problemas (ou apenas com o problema de não poder ir a sítios de onde possa ser extraditado).

Mas a parte onde eu quero chegar é à da "sujeitou a algo para conseguir um papel num filme ou subir na carreira", e aí o meu ponto até não é tanto com o artigo do AAAmaral, mas sobretudo com comentários que frequentemente se leiem nas abaixos das noticias "Fulano acusado de assédio", estilo "dormiram com este e aquele para subir na carreira, e agora que já não precisam vem com essas denúncias".

Todavia, isso é largamente um exemplo do chamado poder do "framing" - compare-se "a atriz X perdeu um papel de destaque no filme Z porque não foi para a cama com o realizador" com "a atriz W foi escolhida para um papel de destaque no filme Z porque foi para a cama com o realizador"; essas (aparentemente) duas situações, expostas assim, provocam quase de certeza reações diferentes: perante a primeira, muita gente reagirá com "assédio sexual"; perante a segunda, a reação será mais "mas qual assédio sexual; são é todas umas p....". Mas, se pensarmos bem, essas duas situações são, fundamentalmente, a mesma situação: se as atrizes (falo de "atrizes" porque tem se falado disso sobretudo a respeito do cinema, mas provavelmente situações similares ocorrerão noutros sectores - já ouvi dizer, p.ex., que também há muito disso nas autarquias locais) que se envolvem com realizadores/produtores/atores principais tem facilidade adicional em conseguir papéis, então (partindo do principio que a quantidade de bons papéis é mais ou menos fixa) as que não se envolvem terão mais dificuldade - para cada papel que vai para uma atriz porque dormiu com o realizador, há um papel que deixa de ir para uma atriz porque não dormiu com o realizador (poderá se questionar a minha premissa de assumir a quantidade de papéis disponíveis como fixa - afinal, em certas situações, um realizador/produtor/etc. poderão criar para uma amante um papel que nem sequer existiria no roteiro de outra maneira, mas no global isso não deve ter grande peso, sobretudo para os papéis principais).

Claro que se pode argumentar que há aqui uma diferença entre as duas situações - identificar quem é a vítima; realmente, se formos por este raciocínio, poderia-se argumentar que as vítimas do assédio sexual (ou lá o que lhe queiramos chamar) serão sobretudo as atrizes que NÃO foram para a cama como realizadores/produtores/etc. e por isso a carreira não avançou tão depressa, e não aquelas em que o assédio sexual foi mesmo às últimas consequências (e, já agora, isso faz-me lembrar de outros comentários que também vi na internet em que - talvez algo deselegantemente... - se sugeria que que muitas das apoiantes do "manifesto Catherine Deneuve" seriam sobretudo as atrizes que estariam a ver o seu "modo de vida" posto em causa pela campanha contra o assédio sexual...).

Mas no fundo, isso não muda muito a questão, até porque me parece (mas confesso que não estou a prestar muita atenção aos detalhes desta catadupa de denúncias, frequentemente envolvendo pessoas - tanto acusadores como acusados - de quem eu nunca tinha ouvido falar....) que a maior parte das acusações vêm de protagonistas de assédio não-consumado - isto é, as histórias que se ouvem são sobretudo "ele chamou-me ao quarto do hotel, pediu-me para me despir e lhe fazer uma massagem, e quando recusei e fui-me embora, disse-me que me iria arrepender", não tanto "dormi com ele regularmente durante seis meses, e só quando tive o contrato assinado para o papel principal naquele filme que tudo indicava que era material-para-Óscar é que ganhei coragem para resistir e acabar com aquilo".

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