Recupero o título do último (?) livro de Tzvetan Todorov (1939-2017), publicado entre nós pelas Edições 70, para comentar o anunciado ataque iminente das forças do bem contra a Síria. No interessante livro de Todorov -publicado em 2012 - é dedicado um extenso capítulo ao messianismo político que se inicia no final do século XVIII, com a Revolução Francesa, estendendo-se até aos nossos dias com a guerra na Líbia em 2011. O autor analisa diferentes períodos ao longo destes dois séculos, cada um dos quais identificado como uma vaga de messianismo político. Destaco a terceira vaga que corresponde ao período posterior à queda do regime comunista na antiga União Soviética, que ele classifica como o período em que se tentou impor a democracia pelas bombas. São analisadas as intervenções na Jugoslávia, as guerras no Iraque e no Afeganistão, e, finalmente, a guerra na Líbia. A justificação utilizada pelas potências invasoras varia caso a caso. Direito de ingerência no caso Jugoslavo, para proteger as vitimas de violações dos direitos humanos e impedir a acção dos agressores. Sem validação da ONU. Objectivo de eliminar a presença de armas de destruição maciça no Iraque, para impor os valores da liberdade, da democracia e da livre inicaitiva em toda a superfície do globo, uma necessidade auto-imposta pelos Estados Unidos e seguida fielmente pelos seus aliados. Sem validação da ONU. Reacção aos atentados do 11 de Setembro de 2001 a partir de bases no Afeganistão, considerada como um acto de legítima defesa contra a al-Qaeda e os talibans, com o objectivo de instalar a democracia no país. Sem validação da ONU. Responsabilidade de Proteger foi a justificação para a guerra na Líbia. Desta vez com suporte do Conselho de Segurança da ONU. Uma intervenção militar que visou derrubar o governo líbio legitimada por razões humanitárias.
O resultado foi quase sempre o mesmo: massacre das populações que era suposto proteger, imposição de governos próximos dos interesses das potencias agressoras, regimes fortemente corruptos cuja semelhança com a democracia é apenas uma piada de mau gosto. A mais grave sequela foi a proliferação de grupos terroristas, como aconteceu com a alQaeda e o Estado Islâmico na Síria. As questões humanitárias têm sido sistematicamente utilizadas para legitimar intervenções militares à margem do direito internacional, muitas vezes ditadas por necessidades de política interna das potencias agressoras. Ou por cálculos geopolíticos e de defesa das posições de aliados regionais. Como diria o outro: a política internacional como ela é.
O caso da Síria segue pelo mesmo caminho. Há, no entanto, uma diferença, que faz toda a diferença: a Rússia está directamente envolvida no suporte do regime de Bashar Al-Assad, bem como o Irão. Um conflito militar pode configurar uma guerra entre a Rússia e os Estados Unidos. Para perceber o que se sabe sobre o ataque químico em Douma, e os interesses em confronto, sugiro a leitura do artigo de opinião de José Pedro Teixeira Fernandes, no Público.
Os adversários internos do inominável Bashar Al-Assad são os igualmente inomináveis - ou ainda mais? - Jaysh al-Islam, um grupo islamista-jihadista cujos objectivos, e métodos de actuação, são igualmente tenebrosos. Apoiar estes fervorosos defensores da "liberdade, dos direitos humanos e da livre iniciativa", deveria arrepiar qualquer dirigente político, nomeadamente o nosso primeiro-ministro, homem muito dado a arrepios. Mas não, há uma "grande" coligação em marcha e, não fora o respeito que a presença da Rússia suscita, a ... obra humanitária estaria já a decorrer.
A presença da Rússia foi um antidoto inexistente nas outras intervenções da vaga messiânica. Para Donald Trump, com o seu novo Secretário de Estado, John Bolton - cuja ascensão na Casa Branca tem provocado uma sucessão de demissões - esta pode ser uma oportunidade a não perder para confrontar o suposto "amigo"russo e, dessa forma, atenuar futuros impactos da investigação em curso sobre a sua eleição. As mesmas dificuldades internas justificam o apoio de Theresa May e do seu Governo a uma eventual intervenção. As dificuldades de May com o Brexit e com a ascensão de Corbyn - facilitada pela desigualdade extrema e pelos sucessivos falhanços- são notórias. O caso Skripal aliviou a pressão sobre os conservadores mas é necessário uma terapia de choque. A convocação de um "Gabinete de Crise", basicamente composto por membros do Governo, tem sido propagandeado como um forte sinal de apoio a uma intervenção. Tem sido obscurecida a critica da oposição, com destaque para os trabalhistas. Corbyn apelou a uma investigação independente por parte da ONU. O mesmo Corbyn que acusa May de estar a soldo dos Estados Unidos e que recorda à líder conservadora o relatório Chilcot que incriminou a actuação de Tony Blair na guerra do Iraque.
A democracia não vive momentos de grande prosperidade protegida como está pelos seus inimigos íntimos.
ADENDA: Guterres a falar para a parede.
13/04/18
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3 comentários:
Lembra-se da intervenção na Somália? O nome da operação (também já não me lembro bem) era "restaurar a esperança" ou coisa parecida.
Quem é que ainda acredita nisto?! Na Síria, a "narrativa" atrapalhou-se. Não demorou muito a saber-se que os EUA apoiavam o Daesh que resolveu chocar o público ocidental como ainda não tinha sido feito. Por cá foi evidente a tolerância para com os mercenários portugueses deste grupo. E para com os negócios com o mesmo. As Toyotas da Salvador Caetano, de Gaia, nas imagens dos noticiários televisivos.Depois corrigiram. Passaram a apoiar os curdos contra o Daesh. Mas a trapalhada continuou. A Al-Qaeda, o inimigo poucos anos atrás, passou a amigo e aliado.
A Jugoslávia... Imaginava-se na altura que o futuro era o alargamento a leste da UE. Um espaço amplo sem fronteiras. E foram-se criar fronteiras ali onde não haviam?! A Jugoslávia devia entrar inteira na UE. Não entrou. Ainda não entrou toda. E ficou dividida. (Nada a ver com a independência da Catalunha que não quer ter exército próprio.)
A Rússia está com boa imagem e não perece boa ideia fazer-lhe guerra. O que vale é que isto parece tratar-se de uma enorme palhaçada sem consequências de maior gravidade.
Não me toma a atenção. Como a guerra no Iraque, a primeira, ainda me tomou. Ou a da Líbia...
Este último ataque, o da noite passada, parece ter um efeito imediato: Adiar o assalto das tropas do regime sírio ao reduto do Daesh em Damasco. Não sou católico, nem não praticante, não pertenço a outra igreja, mas não aceito alianças com grupos fundamentalistas islâmicos que perseguem cristãos ortodoxos, destroiem museus e sítios arqueológicos, impõem a burka às mulheres, afrontam abertamente o Ocidente.
O senhor Macron e a senhora May não são boas pessoas. O senhor Putin, não sendo boa pessoa, consegue ser melhor. Ter melhor imagem.
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