05/04/19

O pseudo-"snobismo invertido" de alguma direita

O artigo de Henrique Raposo no Expresso de 30 de março ("Uma Família às Direitas") repete um exercício que grande parte da direita portuguesa gosta de ocasionalmente praticar - alegar que o Passos Coelho terá sido menosprezado pela elite lisboeta de esquerda por viver em Massamá. A mim isto parece-me aquela anedota do individuo que tem um trisavô negro, ninguém sabe que ele tem um trisavô negro nem nada na sua aparência indica isso, mas queixa-se de racismo sempre que alguém o trata mal.

Logo no dia a seguir a, num comício, ele ter dito que vivia em Massamá, ouvi uma autarca local do PSD dizer "está tudo a falar do homem viver em Massamá; mas qual é o mal do homem viver em Massamá?" e pensei "mas alguém está a ligar alguma coisa a ele viver em Massamá? As únicas pessoas que falam da casa em Massamá é o Passos Coelho e os PSDs".

Da mesma maneira, nestes anos todos (com uma exceção) só à direita é que ouço falar ou leio referências a Massamá, em artigos falando dos "preconceitos da esquerda lisboeta contra Passos Coelho por ele viver em Massamá", enquanto à esquerda o assunto foi quase completamente ignorado; a única exceção que notei foi a Raquel Varela (que efetivamente falou disso num artigo ou post qualquer), mas que é uma pessoa até bastante desalinhada face à ortodoxia da esquerda mainstream, logo não me parece que seja relevante para a partir daí se concluir seja o que for face à generalidade da esquerda.

E o mais ridículo disto é tentar fazer passar uma pessoa cujo percurso transpira "menino-bem" por todos os poros quase como uma espécie de "excluído" - filho de um médico e dirigente político local, dirigente da JSD na altura em que a JSD era "o que está a dar", amigo de um dos ramos da família Espírito Santo, patrocinado por Ângelo Correia, e que até a própria aparência física evoca o estereótipo do "menino da linha de Cascais" (mesmo que viva na linha de Sintra): quem olhe para as fotografias de Passos dos tempos da JSD é praticamente o estereotipo visual do "betinho" dos anos 80/90 (ou será que já estou a ficar como a Helena Matos?).

Henrique Raposo também refere o caso de Cavaco Silva - aí reconheço que não serie a melhor pessoa para falar do assunto; afinal, sendo eu algarvio, filho de mãe nascida em Paderne e de pai nascido na campina de Loulé (ou seja, praticamente vizinhos de Boliqueime), é natural que no meio em que eu vivi durante grande parte do governo de Cavaco Silva não houvesse sinais diretos de snobismo contra Cavaco Silva por ele ser de Boliqueime (se calhar mesmo alguém que desprezasse Cavaco por isso não o iria dizer ao pé de mim);

Dito isto, mesmo a nível da opinião publicada nunca notei que há esquerda houve grande sobranceira pelas origens provincianas de Cavaco Silva - mais facilmente isso se via na direita "Independente", em que por vezes, esses sim, batiam no tema "burgessos de meia-branca que não se sabem vestir" (embora talvez mais a respeito de alguns dos membros do seu governo ou da direção do PSD do que de Cavaco em si). Sim, a esquerda pegava muito em questões como ele não saber o número de cantos dos Lusíadas, mas isso não me parece ter nada a ver com questões de "elite versus vindos de baixo" ou "Lisboa versus província" mas sim da guerra "cultura humanista vs. cultura técnica" - para ilustrar isso, olhe-se para outras duas figuras: Ferreira do Amaral e José Saramago. O primeiro (descendente de uma das famílias portuguesas mais tradicionais) era vilipendiado pela "esquerda cultural" como o símbolo da "política do betão", enquanto o segundo (com origens rurais e pobres) era idolatrado (muito antes de ganhar o Nobel); também nunca notei que as pessoas que insinuavam que Cavaco era inculto dissessem o mesmo da Lídia Jorge (ou seja, é uma questão de "advogados, escritores, filósofos e sociólogos versus engenheiros, gestores e economistas" não de "Lisboa versus Boliqueime").

Eu até diria que, à esquerda, se algo predominava era uma tentativa de apresentar Cavaco como mais de "elite" do que era - inclusive nos seus primeiros tempos era normal ele ser chamado pela esquerda como "Cavaco e Silva" (provavelmente com a intenção de lhe dar um ar aristocrático e mostrá-lo como o inimigo de classe) e os tempos de antena do PS em 1987 (o autor era, aliás, Vasco Pulido Valente, que Henrique Raposo refere no seu artigo) tinham uma rábula insinuando que o apoiante típico do PSD cavaquista era um empresário filho de famílias ricas e que ia regularmente "à quinta do papá" (ok, é verdade que esta imagem pretendia representar os supostos apoiantes e não Cavaco Silva propriamente dito, mas de qualquer maneira era uma tentativa de o colar às elites sociais ).

Na verdade, suspeito que quem mais pegava nas supostas origens humildes de Cavaco Silva era o próprio PSD (tal como na casa de Massamá de Passos Coelho) e adjacentes, nomeadamente tentando apresentar o ter uma bomba de gasolina como se fosse algo de "proletário", quando no contexto da época e do local isso até poderia ser considerado quase como um negócio de elite (além de que o pai do Cavaco Silva, além da bomba de gasolina, era também um dos principais comerciantes de frutos secos do Algarve nos anos 60, e a mãe era de uma família de proprietários de terras - quem veio de baixo na família foi o pai, que esse sim, nasceu pobre e esteve emigrado em França antes de regressar a Portugal e iniciar a sua atividade empresarial).

Por isso é que o post tem no título «pseudo-"snobismo invertido"» - já que esse "snobismo invertido" é largamente ficcional, já que implica construir um passado muito mais humilde do que aquele que os personagens em questão realmente tiveram; se no caso de Cavaco Silva isso ainda fazia algum sentido (poderia não ser um excluído económico, mas de certa forma era efetivamente um excluído social, do ponto de vista da elite lisboeta), parece-me completamente alucinado no caso de Passos Coelho (e a prova disso é que, ao contrário de com Cavaco, a tentativa de apresentar Passos Coelho como alguém vindo de fora da elite não teve quase nenhuma ressonância no público em geral).

1 comentários:

Miguel disse...

O mal não é viver em Massamá. Não, o mal é que vive lá e nem assim tem um pensamento sobre o (des)ordenamento urbano.