09/11/19

A reação de um extremista de esquerda de 16 anos à queda do Muro de Berlim

9 de novembro de 1989.

Cinco meses antes, em março e abril, tinha havido as primeiras eleições na URSS em que, desde o princípio dos anos 20, tinha havido algo parecido com candidatos da oposição; em abril tinham começado protestos na China, na sequência da morte de Hu Yaobang (um dirigente reformista do PC, demitido por alegadamente ter sido muito tolerante com outros protestos em 1986-87) e durante quase dois meses era tema central dos telejornais a enorme manifestação de estudantes na Praça Tienanmen (cantando, note-se, A Internacional). Mas, a 4 de junho, o mundo acordou com duas noticias (ou pelo menos foram as duas noticias que abriram o jornal das 13 da RTP desse domingo) - uma a morte do ayatollah Khomeini do Irão; outra que o exército tinha avançado sobre os manifestante de Pequim, provocando cerca de 4 mil mortos. Ao fim do dia, outra noticia - nas eleições polacas, nos poucos círculos eleitorais em que o governo comunista tinha permitido candidaturas oposicionistas, o Solidariedade teve uma vitória esmagadora e ganhou, penso todos os lugares - no entanto, aparentemente os comunistas (isto é, o Partido Operário Unificado Polaco - em muitos países de Leste, o partido comunista não se chamava Partido Comunista) e os seus dois partidos-fantoches (o ZSL - Partido Popular Unido, camponês, e a SD- Aliança dos Democratas) continuavam a ter a maioria do parlamento.

No entanto, em agosto dá-se uma reviravolta - o ZSL e a SD mudam de campo e aliam-se ao Solidariedade; a nova aliança tem a maioria no parlamento e pela primeira vez o partido comunista é afastado do governo de um país do bloco soviético; em outubro, uma segunda baixa - o Partido Socialista Operário Húngaro muda o nome para Partido Socialista Húngaro, o que é descrito por toda a gente como "os comunistas húngaros passaram a socialistas" (para falar a verdade, se ligarmos só à mudança de nome oficial, não me pareceu uma mudança muito grande, de "Socialista Operário" para "Socialista"); o governo húngaro já havia largamente aberto a fronteira com a Áustria,  e em breve os alemães orientais começam a fazer em massa o percurso RDA-Checoslováquia-Hungria-Áustria-RFA. Em outubro, o líder comunísta da RDA, Erich Honnecker, é substituído por Egon Krenz; no entanto, os cidadãos da RDA acham que é uma mudança cosmética e generalizam-se os protestos contra o regime, que atingem o seu pico na manifestação de 4 de novembro.

Finalmente, na manhã de 9 de novembro o governo da RDA dá ordens para abrir as portas do Muro de Berlim; e o resto é história, como se diz.

Após esta pequena introdução, vamos ao que interessa - o que é que um extremista de esquerda português, um estudante de 16 anos, que pouco antes se tinha convertido ao trotskismo (ou ao que ele considerava "trotskismo" - mais à frente explico), pensou dos acontecimentos.

Para começar, alguns estarão a pensar "trotskista aos 16 anos? Isso não é muito cedo para alguém lhe dar essas pancadas?"; mas penso que não - isto é, a maior parte das pessoas nunca lhes chega a dar para isso, mas os que andam ou andaram por esses caminhos acho que começam quase todos por essa idade, mais ano menos ano.

Em segundo lugar, uma coisa que logo na altura notei, e que continuo a notar hoje em dia, é enorme confusão que quase toda a gente da direita e do centro (e também os apolíticos) fazia e faz entre a extrema-esquerda e os Comunistas-com-C-grande; na verdade, sobretudo até 1989, a divisão era clara: os Comunistas-com-C-grande defendiam a URSS, enquanto a extrema-esquerda (pelo menos no sentido em que a expressão é normalmente usada nos países latinos) consideravam os governos de Moscovo e dos seus satélites como um grupo de contra-revolucionários traidores ao socialismo, que teriam que ser derrubados pela revolução dos trabalhadores. Hoje em dia uma complicação adicional é que a posição "a URSS não é/era o verdadeiro socialismo" deixou de ser uma posição defendida por grupúsculos obscuros que raramente chegavam aos 1% em eleições para passar a ser largamente o mainstream da esquerda, o que obscurece essa diferença de posições; mas já nessa altura acho que quase ninguém percebia essa diferença: alguns dos meus colegas na altura diziam-me "pensei que estivesses desmoralizado", quando eu andava era eufórico com a queda dos regimes "estalinistas", e era difícil tentar explicar-lhes que a queda do "estalinismo" era razão para um trotskista ficar contente, não triste (curiosamente, dos meus amigos da altura, o que mais percebia a lógica interna do meu raciocínio, o Luís A., era provavelmente o mais solidamente de direita e anti-socialista - ainda que achasse que o tal "verdadeiro socialismo" era impossível e condenado ao fracasso, era também quem percebia melhor o argumento que a URSS não era socialista). Para exemplos mais modernos de confusões similares, ver estes meus dois posts de 2006 -Re: A "Esquerda Florida" e Re: A "Esquerda Florida" (II) e o Muro de Berlin.

Bem, e além do meu entusiasmo pela queda do "estalinismo", o que é que eu julgava que ia ser o desfecho da queda do muro e acontecimento concomitantes? Estava (nos primeiros meses, ou pelo menos semanas) convencido que o resultado ia ser a implantação de um sistema económico de tipo autogestionário ou coisa parecida nesses países, e que tal iria servir de inspiração para os paises ocidentais,sendo o primeiro ato da revolução mundial que iria também acabar com o capitalismo (hei, o que é que queriam que alguém que, na altura, era um trotskista pensasse?) - o meu raciocínio: a privatização das empresas estatais iria originar despedimentos e uma quebra do nível de vida dos trabalhadores, logo isso seria impossível de impor a povos acabados de sair de revoluções (afinal, veja-se que, no Ocidente, os defensores do liberalismo económico tendem a ser também os maiores defensores de "governos fortes capazes de tomar medidas impopulares"), ainda mais atendendo o que os prováveis beneficiários dessas privatizações seriam os quadros do regime anterior (que era quem ainda teria algum dinheiro e contactos para conseguir adquirir essas empresas) - assim, o desfecho mais provável seria o que muitas vezes acontece em situações revolucionárias: os trabalhadores a criarem comités de empresas, sanearem os seus chefes e implantarem uma espécie de autogestão ou controle operário (e se isso acontece em revoluções em países capitalistas, ainda mais se esperaria que acontecesse num sistema de economia estatizada, em que por definição os administradores são representantes do regime, logo ainda mais faz sentido a formação de conselhos operários para assumirem a direção dos locais de trabalho, à maneira da Hungria em 1956).

Aliás, uns meses depois, já em 1990, cheguei a escrever um texto prevendo que isso iria acontecer na Polónia - um levantamento operário que oporia de um lado os sindicatos (nomeadamente o Solidariedade) e do outro o exército, os novos capitalistas e o PC (o texto não foi para ser publicado em lado nenhum - era mesmo eu que tinha que treinar a letra e portanto, já que tinha que escrever qualquer coisa, aproveitava para passar para o papel as minhas divagações mentais, mesmo que ninguém as fosse ler).

A partir de 90/91 (à medida que em todas as eleições que iam sendo feitas nesses países, quem ganhava era a direita e não a esquerda anti-estalinista), percebeu-se claramente que não era essa o rumo que as coisas iam levar; mas, mesmo hoje em dia não acho que as minhas previsões/esperanças fossem totalmente descabidas - havia efetivamente muita coisa no "ar do tempo" que levava que a saída autogestionária não parecesse completamente descabida:

a) Em primeiro lugar, era mesmo uma evolução em parte nesse sentido que estava a ser posta em prática na URSS, nos tempos de Gorbachov - entregar a gestão das empresas estatais aos coletivos de trabalhadores

b) Inicialmente, o movimento de protesto na RDA era largamente dinamizado (ou, pelo menos, era o único grupo oposicionista organizado que existia, além das igrejas) pelo Neues Forum, que depois veio a integrar-se com os Verdes da RFA, e que defendia a democracia política (com alguma ênfase a democracia de base) e as liberdades civis, mas sem grande entusiasmo pelo capitalismo - ou seja, praticamente o equivalente daquilo que no ocidente se chama de "esquerda alternativa" ou "esquerda folclórica"; em compensação os partidos de direita, nomeadamente a CDU, até à queda do regime eram partidos-fantoche (estilo PEV) do partido comunista na chamada "Frente Nacional"; claro que quando finalmente foram as eleições a CDU teve 40% e o Novo Fórum e os seus aliados tiveram 3%, apesar do passado colaboracionista da primeira e oposicionista do segundo

c) Na Checoslováquia, a ala trotskista (+ "companheiros de estrada") do Forum Cívico (a aliança oposicionista) até parecia ter alguma influência, já que o seu lider, Petr Uhl, foi um dos deputados mais votados (ou mesmo talvez o mais votado) nas primeiras eleições livres; mas esfumou-se completamente (os votos em Uhl devem ter tido mais a ver com o seu papel de intelectual oposicionista do que com simpatia ideológica por ele)

d) Isto até só soube há pouco tempo (não quando tinha 16, 17 ou 18 anos - nem os jornais que os meus pais compravam nem a revista trotskista - "Combate", que por qualquer razão se vendia no quiosque à frente da escola - que eu comprava falavam disto, ao contrário dos pontos anteriores), mas nalguns grupos oposicionistas soviéticos (ou pelo menos moscovitas) houve realmente mesmo um grande disputa entre liberais e  socialistas democráticos autogestionários

Ou seja, a queda do comunismo, ou do estalinismo, ou do que lhe queiramos chamar, veio acompanhada do aparecimento de movimentos autogestionários, eco-socialistas, trotskistas, etc suficiente para convencer quem quisesse ser convencido de a verdadeira revolução socialista vinha ai.

Agora, 30 anos depois, vamos lá rever isto:

Em primeiro lugar, ali atrás falei em «um estudante de 16 anos, que pouco antes se tinha convertido ao trotskismo (ou ao que ele considerava "trotskismo" - mais à frente explico)»; a verdade é que eu, supostamente um trotskista entusiasta, pouco mais sabia sobre o trotskismo do que tinha visto nalguns tempos de antena do PSR, da POUS e da FER (hei, não é que em 1989 fosse fácil obter informação sobre temas obscuros - não havia a Internet para ir ver à Wikipedia, ao Google ou ao Marxists.org; este tipo de assunto era conhecido lendo livros velhos à venda em quiosques e livrarias com ar decrépito, e normalmente só em Lisboa; mas consegui comprar um exemplar d'A Revolução Traída em Portimão); à medida que, anos mais tarde, foi conhecendo melhor o trotskismo, cheguei à conclusão que eu na verdade estaria mais na linha de dissidentes como Max Shachtman, Bruno Rizzi ou pelo menos Tony Cliff. Ou dito por outras palavras - a minha ideia (que era largamente o "senso comum" nos anos 80) era que a URSS tinha uma sociedade exploradora, em que os dirigentes do partido, do estado e das empresas públicas tinham substituído os capitalistas como uma classe dominante; já a posição trotskista é muito mais complexa e talvez ambígua - é de que esses dirigentes já eram uma casta privilegiada mas ainda não uma classe privilegiada, e portanto a sociedade soviética ainda não era bem uma nova forma de sociedade exploradora, mas uma sociedade a meio-caminho entre o capitalismo e o socialismo (mas isto é melhor explicado aqui e aqui). Mas  a minha evolução ideológica posterior fica para altura.

Em segundo lugar, no meio do falhanço total das minhas expetativas da altura, não deixa de ser verdade que nalguns países foram realmente os ex-comunistas (agora "socialistas") que mais entusiaticamente venderam as suas economias ao capitalismo global, e foi de movimentos com raiz na antiga oposição e grande apoio nas classes populares que ainda veio alguma resistência - só que essa resistência não veio da esquerda, como eu esperava, mas da direita, do nacional-conservadorismo do Fideszs húngaro ou da Lei e Justiça polaca, cuja ideologia combina um profundo nacionalismo e conservadorismo social com pelo menos alguma moderação no capítulo do liberalismo económico.

Em terceiro lugar, eu pertenço à ultima fornada de radicais de esquerda que aderiram a correntes dessa área quando ainda o modelo soviético do socialismo parecia relativamente sólido e para quem a oposição à URSS e ao comunismo ortodoxo era um aspeto quase tão fundamental da sua identidade política como a oposição ao capitalismo; interrogo-me se nas gerações mais novas de pessoas que aderem a ideologias à esquerda do comunismo ortodoxo a atitude não será diferente. P.ex., há dias, face ao abandono por grande parte da esquerda da greve dos camionistas, alguém de direita me dizia "estás a ter tempo de vida suficiente para constatares em directo e pessoalmente a hipocrisia e dualidade da esquerda real."; claro que para alguém cuja formação política ainda foi muito influenciada pela luta contra o estalinismo, isso não tem muito de especial: a ideia de os sindicatos oficiais e grande parte da intelectualidade de esquerda estarem do lado oposto (e provavelmente prontos a se aliarem à burguesia) era quase a ordem natural das coisas; será também assim para os mais novos?

Finalmente, há dias parece que se andou a falar muito de um artigo cujo autor foi descrito como "um beto de 17 anos"; se há 30 anos houvesse a tecnologia atual e se eu já pudesse publicar as minhas teorias na Internet, se calhar seria chamado de "um lunático de 16 anos" ou coisa parecida; já agora, a respeito desse artigo, vi comentários que estaria demasiado elaborado para um adolescente de 17 anos; perfeito disparate - se alguma coisa, até por experiência própria, creio que adolescentes que se interessem por um qualquer tema (sobretudo se for um tema que dependa largamente da reflexão, como filosofia, matemática ou política) provavelmente até têm mais capacidade que adultos para fazerem textos elaborados, já que têm mais disponibilidade para passarem muito tempo a pensar (já os adultos têm que pensar nos problemas da vida deles, e portanto não têm muito tempo para esses raciocínios teórico-abstratos).

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