15/11/19

O Gulag era diferente de Auschwitz

Anne Applebaun, em Gulag - Uma História dos Campos de Prisioneiros Soviéticos, (páginas 23-25):
Nada  disso  significa  que  os  campos  soviéticos  e  nazistas  fossem  idênticos. Conforme   qualquer   leitor   com   algum   conhecimento   geral   do   Holocausto  descobrirá  no  decorrer  deste  livro,  a  vida  no  sistema  de  campos  soviético  diferia  de  muitas  maneiras  (quer  sutis,  quer  óbvias) da  vida  no  sistema  de  campos  nazista.  Havia  diferenças  na  organização  do  cotidiano  e  do  trabalho,  diferentes  tipos  de  guardas  e  punições,  diferentes  tipos  de  propaganda.  O Gulag  durou  muitíssimo  mais  e  passou  por  ciclos  de  relativa  crueldade  e  relativa humanidade. A história dos campos nazistas é mais curta e apresenta  menos  variações:  eles  simplesmente  se  tornaram  cada vez  mais  cruéis,  até  serem  destruídos  pelos  alemães  em  retirada  ou  libertados  pelos  Aliados.  O Gulag  também  continha  variedade  maior  de  campos,  desde  as  letais  minas  auríferas  da  região  de  Kolyma  até  os "luxuosos"  institutos  secretos  nas  cercanias  de  Moscou,  onde  cientistas  aprisionados  projetavam  armas  para  o Exército  Vermelho.  Embora  existissem  diferentes  espécies  de  campo  no  sistema nazista, a gama era muitíssimo menor.

Sobretudo,  duas  diferenças  entre  os  sistemas  me  parecem  fundamentais.  Em  primeiro  lugar,  a  definição  de  "inimigo"  na  URSS  sempre  foi  muito  mais  vaga  que a de "judeu" na Alemanha nazista. Nesta, com número muito pequeno de  exceções  incomuns,  nenhum  judeu  podia  alterar  sua  condição,  nenhum  judeu  preso num campo podia ter esperança racional de escapar à morte, e todos os  judeus  estavam  cientes  disso  o  tempo  todo.  Embora  milhões  de  prisioneiros  soviéticos  temessem  pela  própria  vida  -  e  milhões  deles  tenham  realmente  morrido -,  não  havia  nenhuma  categoria  de  prisioneiro  cuja morte  estivesse  absolutamente  garantida.  Por  vezes,  certos  presos  podiam  melhorar  sua  situação   em postos de trabalho relativamente   confortáveis, como os de engenheiro ou geólogo. Em cada campo, havia uma hierarquia de prisioneiros, na  qual  alguns  eram  capazes  de  subir  à  custa (ou  com a ajuda) de  outros.

Outras vezes - quando o Gulag se via sobrecarregado de mulheres, crianças e  idosos,  ou  quando  se  necessitava  de  soldados  para  a frente  de  batalha  -,  os  presos  era  soltos  graças  a  anistias  maciças.  Em  certos  momentos,  acontecia  que  categorias  inteiras  de  "inimigo"  se  beneficiavam  subitamente  de  uma  mudança de condição. Em 1939, por exemplo, no começo da Segunda Guerra Mundial,  Stalin  prendeu  centenas  de  milhares  de  poloneses  -  e  depois,  em 1941,  ele  os  libertou  de  chofre,  quando  a  Polônia  e a  URSS  se  tornaram  temporariamente aliadas. O oposto também se aplicava: na URSS, os próprios  opressores  podiam  virar  vítimas.  Guardas  e  administradores  do  Gulag  e  até  altos  funcionários  da  polícia  secreta  também  podiam  ser  aprisionados  e  condenados   aos   campos.   Em   outras   palavras,   nem   todas as "víboras"  conseguiam  manter  as  presas  -  e  não  havia  nenhum  grupo  específico  de  prisioneiros soviéticos que vivesse na expectativa  constante da morte.

Em segundo lugar (conforme, mais uma vez, ficará claro no decorrer do livro), o  propósito  primordial  do  Gulag,  segundo  tanto  a  linguagem  privada  quanto  a  propaganda  pública  daqueles  que  o  fundaram,  era  econômico.  Isso  não  significa  que  o  sistema  fosse  humanitário.  Nele,  os prisioneiros  eram  tratados  como  gado,  ou  melhor,  como  pedaços  de  minério  de  ferro.  Os  guardas  os  faziam ir para lá e para cá a seu bel-prazer, embarcando-os e desembarcando- os  de  vagões  de  gado,  pesando-os  e  medindo-os,  alimentando-os  se  parecia  que poderiam vir a ser úteis, deixando-os à míngua  quando não o eram. Para  usarmos  a  linguagem  marxista,  os  prisioneiros  eram  explorados,  reificados  e  mercantilizados. A menos que fossem produtivos, suas vidas não valiam nada  para seus senhores.

Sua  vivência,  porém,  era  muito  diferente  daquela  dos  judeus  e  dos  outros  prisioneiros que os nazistas enviavam para um grupo especial de campos que  se  chamavam  não  Konzentrationslager,  mas  Vernichtungslager  -  campos  que  não  era  realmente  "campos  de  trabalhos  forçados",  e  sim  usinas  da  morte. Havia  quatro  deles:  Belzec,  Chelmno,  Sobibor  e  Treblinka.  Já  Majdanek  e Auschwitz  continham  tanto  campos  de  trabalhos  força dos  quanto  campos  de  extermínio.  Ao  entrarem  nesses  campos,  os  prisioneiros  passavam  por  uma "seleção".   Um   número   ínfimo   era   designado   para   algumas   semanas   de  trabalhos  forçados.  O  restante  era  mandado  direto  para  as  câmaras  de  gás,  onde os assassinavam e então cremavam de imediato.

Até  onde  pude  comprovar,  essa  forma  específica  de  homicídio,  praticada  no  auge do Holocausto, não teve equivalente na URSS. É bem verdade que esse último  país  encontrou  outras  maneiras  de  chacinar  centenas  de  milhares  de  cidadãos.  Geralmente,   eles   eram   conduzidos  à   noite  para   uma  floresta,  alinhados,  baleados  na  nuca  e  enterrados  em  sepulturas  coletivas  antes  mesmo  de  chegarem  perto  de  um  campo  de  concentração -  modalidade  de  homicídio  não menos  "industrializada"  e  anônima  que a usada  pelos  nazistas. Há   mesmo   histórias   de   que   a   polícia   secreta   soviética   usou   gás   de  escapamento  (uma  forma  primitiva  de  gás  venenoso)  para  matar  prisioneiros,  da   mesma   forma   que   os   nazistas   fizeram   no   começo. No   Gulag,   os  prisioneiros também morriam, em geral graças não à  eficiência dos captores, e  sim  à  incompetência  e  à  negligência  crassas. Em  certos  campos  soviéticos em   determinadas   épocas,   a   morte   era   praticamente   certa   no   caso   dos escolhidos  para  cortar  árvores  nas  florestas  hibernais  ou  trabalhar  nas  piores minas  auríferas  de  Kolyma.  Prisioneiros  também  eram trancados  em  celas punitivas  até  morrerem  de  frio  ou  inanição,  largados  sem  tratamento  em hospitais  subaquecidos  ou  simplesmente  baleados  por  "tentativa  de  fuga" quando dava na telha dos guardas. Entretanto, o sistema soviético de campos como um todo não era propositalmente organizado para produzir cadáveres em escala industrial - mesmo que às vezes o resultado fosse esse.

São distinções sutis, mas importantes. Embora o Gulag e Auschwitz realmente  pertençam  à  mesma  tradição  intelectual  e  histórica,  eles  ainda  assim  são  fenômenos separados e diferentes, tanto um do outro quanto dos sistemas de  campos  estabelecidos  por  outros  regimes.  A  idéia  de campo  de  concentração  talvez seja genérica o bastante para que a usem em  culturas e situações muito  diversas,  mas  até um estudo  superficial  da história transcultural  desse  tipo  de  campo revela que os detalhes específicos - como se  organizava a vida, como o  estabelecimento   se   desenvolvia   no   decorrer   do   tempo, quão rígido ou  desorganizado  se  tornava,  quão  cruel  ou  liberal  permanecia  -  dependiam  do  país, do regime político e da cultura. Para quem estava encurralado atrás do arame farpado, esses detalhes eram cruciais para a vida, a saúde e a sobrevivência.

1 comentários:

Anónimo disse...

Sendo assim, fiquei bastante mais descansado com a situação dos prisioneiros soviéticos