20/10/20

Os filmes/séries policiais na "bússola política"


Algo que me ocorreu, ainda pensando nisto.

O "Inspetor Harry" na direita autoritária não tem grande dúvida, acho.

O "Zé Gato" na esquerda autoritária admito que já seja mais forçado, mas é o melhor que arranjei - muitos episódios (e a música do genérico) têm o tom "os criminosos escapam porque são ricos e influentes e mexem cordelinhos para a polícia não lhes poder tocar", que será a mensagem que se espera de um filme policial de esquerda autoritária (enquanto a direita autoritária preferirá "os criminosos escapam por culpa dos advogados, desses leis fofinhas que fizeram e dos jornalistas que estão sempre contra a polícia"); fala também muito da pobreza e da forma como esta leva ao crime, o que reforça a parte do "esquerda"; admito que a parte do "autoritário" é discutivel - se por um lado tem a mensagem de "os bandidos safam-se sempre" e o protagonista frequentemente entra em modo "policia durão", por outro nalguns episódios os seus inimigos são grupos de "vigilantes" ou polícias que perseguem e chantageam ex-reclusos (mas por aí também o "Inspector Harry" safava-se...). Provavelmente é difícil fazer um policial "esquerda autoritária" puro: não é muito fácil conciliar as ideias "é preciso mão pesada" e "as injustiças sociais do capitalismo contribuem para o crime"; bem, é a ideia do slogan blairista "duro com o crime e com as causas do crime", mas acho difícil usar isso como inspiração artística (demasiado complexo e com demasiada nuance). Uma alternativa seriam filmes a mostrar o antigo bloco de leste a ser infestado por criminosos em consequência do fim do comunismo (eu nunca vi o "Inferno Vermelho", mas tenho a ideia que parte do enredo gira à volta da ideia que a perstroika estaria a causar criminalidade galopante na URSS - talvez este servisse como exemplo?).

"Os Anjos de Charlie" na direita libertária porque uma ideia-base da série (a começar pela narrativa do genérico) parece ser de que pessoas de grupos historicamente discriminados (como mulheres) terão mais hipóteses no mercado livre do que no setor público; e o perfil de "Charlie" (rico e com um estilo de vida libertino) também encaixa bem aí (mesmo a sua natureza de "jiggle show" parece-me algo que a direita libertária verá melhor que qualquer dos outros três quadrantes). Para reforçar a componente "libertária", junte-se alguns episódios do tipo (pegando num género bastante popular nos anos 70...) "as detetives infiltram-se em prisões para mulheres em que as reclusas são mal-tratadas pela administração". E tenho a ideia que num episódio uma das detetives até diz algo como "o Charlie não nos vai despedir porque teria que pagar mais a quem nos fosse substituir", o que parece o Gary Becker a falar da discriminação.

[Eu já tinha começado a escrever este post quando vi um episódio em que as detetives foram ajudar um xerife de uma pequena cidade que tinha sido proibido de se aproximar de um suspeito porque o tinha agredido, ou coisa assim (não cheguei a perceber bem); isso era apresentado como um erro de que o xerife estava sinceramente arrependido, mas mesmo assim pensei se não poria em causa as credenciais "libertárias" da série; mas logo num episódio pouco depois desse "os maus" eram policias que plantavam provas para incriminar suspeitos e as detetives tiveram grandes dúvidas de consciência se deveriam denunciar alguém aparentemente envolvido em crimes sem vítima, portanto mantive a qualificação]


"Jogo de Audazes" na esquerda libertária - um grupo de vigaristas, que são contratados por pessoas que foram vigarizadas ou prejudicadas por indivíduos ricos e poderosos para os vigarizar a eles; e ainda por cima no episódio final o golpe é roubar informação secreta sobre os banqueiros responsáveis pela crise de 2008. Fundamentalmente, uma série no modelo "bons fora-da-lei que defendem os fracos contra os ricos e poderosos"; com o bónus da maior parte da série passar-se em Portland, Oregon (uma espécie de capital "antifa"?) e pelo menos alguns dos heróis parecerem-me ter um típico estilo de vida hipster.

"Rookie" - eu pus no centro, mas onde eu o associo mesmo é aquele centro-esquerda casal Clinton-Joe Biden-Kamala Harris, ao mesmo tempo culturalmente "progressista" e pró-"lei e ordem" - os bons são o departamento da polícia, mas dizendo explicitamente que a polícia é "diversa" (com muitas mulheres e minorias étnicas, e nalguns episódios refere-se mesmo o contraste entre esta nova polícia e os defeitos da velha polícia quase só de homens brancos) e por vezes até é dito que as testemunhas, mesmo que sejam imigrantes ilegais, não têm que ter medo de falar com a polícia porque é uma cidade-santuário e portanto não correm o risco de ser deportadas. E o episódio em que o personagem principal mata um suspeito é exemplar - ele é suspenso enquanto dura a investigação, os colegas comportam-se de maneira totalmente profissional com ele durante o inquérito (nem com grandes solidariedades nem grandes condenações) e no fim o inquérito concluiu que ele teve razão em disparar, acaba a suspensão e continua a sua carreira - é mensagem é claramente "a polícia moderna de Los Angeles tem um protocolo adequado e rigoroso para estas situações - nem se toleram abusos por parte dos agentes, nem os impedimos de fazer o seu trabalho"; compare-se com o típico filme/série de direita autoritária (em que o agente que teve que disparar seria apresentando como uma vítima dos advogados, da imprensa e/ou de agitadores, e os responsáveis da investigação interna apareceriam como uns cobardes que iriam, só por razões políticas, dizer que o polícia era culpado ) ou de esquerda libertária (em que os policias iriam aparecer como uma quadrilha, a se protegerem uns aos outros e até a adulterarem provas para safar o colega). E atendendo que é uma série recente (começou em 2018), aposto que estes fios narrativos não estão lá por acaso, e que a ideia é mesmo fazer uma série com polícias como heróis mas que não surja como "trumpista".

A dada altura, e pegando na ligação "Jogo de Audazes"-Portland, ocorreu-me se também não haveria uma ligação natural entre Los Angeles tanto com a "direita libertária" de "Os Anjos de Charlie" como com o "centro-esquerda" de "Rookie", na medida em que penso que é uma cidade culturalmente progressista (tipicamente californiana), mas sem o radicalismo político associado a São Francisco ou Berkeley. Mas depois lembrei-me que os filmes do inspetor Harry passam-se em São Francisco (e não, p.ex., no Texas...) portanto este determinismo geográfico não fará grande sentido, acontecendo simplesmente grande parte do audiovisual dos EUA ser produzido na costa Oeste.

Mas, mesmo assim, continua a parecer-me um sitio como a Califórnia dos anos 70 (que votou tanto em Reagan e na proposta 13 como em Jerry Brown para governador e ainda com muitos ecos da contra-cultura e da "New Age") era mesmo o local ideal para produzir uma série como "Os Anjos de Charlie".