06/10/20

Somos e fomos todos fascistas? (2.1)

Vamos então por partes, começando pela primeira tese de Ricardo Dias de Sousa:
"Quando a velha ordem democrática liberal foi restabelecida, o liberalismo já estava morto. Os americanos insistiram em eleições e a Igreja Católica aceitou o repto, patrocinando os partidos democratas-cristãos. Os partidos políticos, esses, organizaram-se em torno de velhos liberais, como Adenauer, Churchill, Blum, ou De Gaspieri. Eram homens nascidos noutro século, insuspeitos de simpatias fascistas, mas que lideravam hordas de jovens planificadores sem grande empatia pelo liberalismo dos seus maiores. A democracia salvou as aparências. Era o grande atestado de não-fascismo dos novos regimes. As opções políticas com chances de vitória nas urnas eram, essencialmente, duas: sociais-democratas à esquerda e democratas-cristãos à direita. Curiosamente, os resultados eleitorais seguiram, grosso modo, as velhas linhas divisórias do Tratado de Vestfália: os democratas-cristãos venceram nos países católicos e os sociais-democratas nos protestantes. Ambos, esquerda e direita, protestantes e católicos, brandindo os tais programas de planificação centralizada a que o eleitorado se acostumou antes da guerra. As diferenças eram tão ténues, que o paradigma do Estado do Bem-Estar, o modelo austro-escandinavo, foi implementado na Escandinávia por sociais-democratas e na Áustria por democratas-cristãos. Ambos com mais esqueletos fascistas na administração do que gostariam de admitir." (...)

"A partir da década de 80, quando finalmente [os socialistas]começaram a ganhar, decidiram, também eles, refugiar-se no intervencionismo fascista: Miterrand, Craxi, González, Soares e Papandreou, de quem se esperavam revoluções quando eleitos, rapidamente meteram o socialismo na gaveta. Os partidos socialistas converteram-se na primeira barreira  contra o comunismo na Europa Ocidental. A amnésia de uns europeus que preferiam olhar para o futuro fez o resto. No processo, as pessoas foram convenientemente esquecendo que o fascismo era o Estado intervencionista."

"Na vertente económica, a principal diferença entre as duas planificações socialistas, a fascista e a comunista, era a obsessão comunista com quotas de produção. [negrito meu - M.M.] Os fascistas perceberam o fracasso soviético. Criaram grandes empresas públicas, mas grande parte da economia era gerida indirectamente, através de agências de supervisão e intervenção. Depois da guerra, o ímpeto planificador e intervencionista ganhou alento, embora com diferentes matizes: a França, mais influenciada por socialistas e comunistas, nacionalizou as principais indústrias, a Alemanha deixou a produção essencialmente em mãos privadas e o Reino Unido, que chegou tarde à febre planificadora através do governo trabalhista, foi o que mais se aproximou da planificação soviética. Como consequência, ali, o racionamento durou até meados da década de 50 para muitos bens essenciais."

E com isto ficamos a saber que Salazar, pelos vistos, era comunista - afinal a reestruturação corporativa da industria conserveira consistiu em criar um organismo reunindo o estado e os empresários privados que determinava as quotas de produção de cada empresa; imagino que noutros ramos tenha acontecido o mesmo, mas é o da indústria conserveira que eu percebo melhor (sempre andei dois anos numa escola com o nome do industrial que primeiro idealizou esse sistema de quotas e que depois de o ver a funcionar arrependeu-se; uma curiosidade: em Portimão podemos ser salazaristas/corporativistas na primária, anarco-sindicalistas no ciclo e "Democráticos" da I República no secundário). E penso os regimes autoritários nacionalistas anti-liberais e anti-marxistas de entre as guerras (frequentemente designados genericamente por "fascistas", embora essa designação seja provavelmente utilizada em excesso) recorriam frequentemente a essa política de criação de organismos semi-estatais para regular a produção e determinar quanto cada empresa poderia produzir.

No fundo, a economia fascista era:

- obrigar as empresas a se agruparem em cartéis
- obrigar os trabalhadores a se agruparem em sindicatos únicos
- obrigar os cartéis e sindicatos a fazerem acordos entre si, proibindo as greves e lock-outs e sujeitos à arbitragem obrigatória pelo estado

Isso era, de certa forma, a consequência lógica da doutrina da "unidade orgânica" da nação, de pôr trabalhadores e empresários a trabalhar para um objetivo comum, rejeitando tanto o individualismo liberal (com a sua "livre concorrência") como a luta de classes marxista.

[A menos que com "obsessão pelas quotas de produção", o Ricardo Dias de Sousa se esteja a referir sobretudo com a obsessão em atingir - e eventualmente ultrapassar - quotas de produção (eventualmente com posters de operários metalúrgicos musculosos orgulhosos de terem ultrapassado o plano); efetivamente isso parece-me mais típico dos regimes comunistas, enquanto que no corporativismo dos regimes fascistas ou nacionalistas autoritários parece-me que muitas vezes o estabelecimento de quotas tinha como objetivo reduzir a produção]

Em termos mais macro-económicos, tanto a Itália de Mussolini como a Alemanha fizeram uma política de gastos públicos, mas creio que sem grandes impostos (ou pelo menos, grandes impostos sobre os cidadãos nacionais), financiado as despesas públicas sobretudo com deficits, expansão monetária ou (sobretudo no caso da Alemanha) com pilhagem pura e simples (primeiro aos judeus e depois aos países conquistados) - já agora (ao contrário do corporativismo, em que eram similares), o expansionismo orçamental é capaz de ser um ponto em que é marcantes a diferença entre os regimes fascistas em sentido mais estrito e a categoria mais vasta regimes autoritários nacionalistas anti-liberais e anti-marxistas de entre as guerras (afinal, a política orçamental de Salazar era quase o contrário).

Comparando a política económica dos regimes fascistas e nacionalistas autoritários com, por um lado os regimes comunistas, e por outro a Europa ocidental das décadas a seguir ao pôr-guerra, eu diria que:

a) distinguia-se dos comunistas por não intervir muito dentro das empresas - a propriedade nominal das empresas mantinha-se em mãos privadas (aliás, creio que tanto Hitler como Mussolini privatizaram empresas que antes eram públicas), e os proprietários continuavam largamente a dirigir a organização interna destas (um post mais desenvolvido que escrevi sobre isso há uns tempos, a respeito do caso específico do nazismo; há quem diga que a propriedade privada na Alemanha nazi era apenas nominal, mas, como escrevo nesse post, o evento histórico em que se baseia "A Lista de Schindler" teria sido impossível se Oskar Schindler não tivesse qualquer autoridade como proprietário), mesmo quando estas estavam ao serviço de objetivos definidos pelo estado

b) distinguia-se das economias mistas do pós-guerra por intervir muito mais nas questões relativas ao que as empresas vão produzir e quanto vão produzir; já nos "estados de bem-estar" e "economias sociais de mercado" a intervenção estatal tende a ser mais macro, mais preocupada com assuntos como estabilização macro-económica e repartição de rendimentos (ok, também - se calhar até mais no modelo democrata-cristão do que no social-democrata -  com alguma intervenção mais micro-económica nomeadamente em questões relacionadas com defesa da concorrência, abuso de posição dominantes, mas menor que na corporativização dos regimes fascistas e afins)

Creio que se fossemos procurar no pós-guerra um intervencionismo parecido com os dos fascistas e afins, onde o encontraríamos seria no extremo-oriente, no Japão do MITI (e onde realmente as classes política e burocrática são os herdeiros quase diretos do Japão "fascista") ou na Coreia do Sul sob o general Park Chung-Hee (que se ficasse uns 10.000 quilómetros para oeste seria sem dúvida chamada "fascista") e os seus Planos Quinquenais (e que, de acordo com uma discussão que li há dias no twitter, até multava as empresas que exportavam menos que o previsto no plano - nesse aspeto seria mais parecida com um regime comunista?).

Isto é capaz de já ser uma divagação minha, mas pegando nas questões que nos cursos de economia se diz que os sistemas económicos têm que decidir - "O que produzir? Como produzir? Para quem produzir?", os sistemas fascistas e afins intervinham sobretudo no "O que?" e "Para quem?" (a distribuição do rendimento), deixando o "Como?" (a direção técnica das empresas) ao sector privado; já as economias mistas do pós-guerra também não intervinham muito no "O que?", concentrando-se sobretudo nas questão de "Para quem?".

Outra divagação minha: quem me costume ler, já saberá que eu tenho a teoria de que "regulação" e "impostos(+despesa pública)" são duas formas largamente independentes (e se calhar até opostas no mundo real) de os estados intervirem na economia (ver aquiaqui ou aqui) - e que provavelmente é isso que explica estes casos (como os países com mais impostos e mais despesas sociais são também os com menos micro-regulação económica, conseguem ser simultaneamente admirados pelo centro-esquerda e ficar nos topos dos índices de liberdade económica). Se formos por aí, creio que o fascismo e regimes parecidos tinham menos impostos e mais regulação que a social-democracia do pós-guerra (o que aliás confere com o que Ricardo Dias de Sousa escreve que "serviços de educação, saúde, pensões, habitação, transporte e cultura fornecidos directamente pelo Estado... invadiram o quotidiano europeu de uma maneira, que nem os fascistas conseguiram lograr"; se os estados democráticos do pós-guerra tinham mais despesas sociais que os fascistas, e nem tinham minorias étnicas ou países conquistados para pilhar, provavelmente teriam mais impostos) - pronto, talvez os democratas-cristãos não tivessem impostos tão altos como os social-democratas, mas mesmo isso não estou certo.

E creio que há um conjunto de razões para os socal-democratas contruirem um estado social maior que os fascistas:

- Em primeiro lugar, a social-democracia baseia-se numa filosofia materialista, enquanto o fascismo e o nazismo considerem o materialismo um sinal de decadência espiritual; é natural que os primeiros se preocupem mais com as questões de redistribuição da riqueza material

- Os fascistas são nacionalistas, os social-democratas (mesmo quando não têm influência marxista) vêm-se como os representantes dos trabalhadores  (sim, o partido nazi também tinha "trabalhadores" no nome, mas a sua doutrina estava cheia de referências aos "trabalhadores de todas as classes", em que ser "trabalhador" tinha a ver com uma espécie de estado de espírito, não com uma posição social especifica) ou dos "desfavorecidos"; de novo, é natural que quem se veja como o representante dos trabalhadores esteja mais disposto a fazer políticas de tirar em grande escala de umas classes para dar a outras do quem que se veja como o defensor de um suposto interesse nacional acima das classes
No fundo, para os fascistas e afins, o estado social é um meio para atingir um fim - eles consideram que divisões sociais muitos vincadas enfraquecem a unidade nacional, gerando lutas entre ricos e pobres, e portanto são necessárias algumas politicas sociais para impedir a luta de classes; já para social-democratas, o estado social é um fim em si mesmo.

 Mas ainda a respeito do modelo económico fascista (ou fascista + afins), talvez a verdadeira essência dele não esteja em mais ou menos impostos, ou mais ou menos regulação:

Oswald Spengler, Prussianismo e Socialismo:

The Old Prussian method was to legislate the formal structure of the total productive potential while guarding carefully the right to property and inheritance, and to allow so much freedom to personal talent, energy, initiative, and intellect as one might allow a skilled chess player who had mastered all the rules of the game.
Hitler, Mein Kampf:
National Socialist workers and employers are both together the delegates and mandatories of the hole national community. The large measure of personal freedom which is accorded to them for their activities must be explained by the fact that experience has shown that the productive powers of the individual are more enhanced by being accorded a generous measure of freedom than by coercion from above. Moreover, by according this freedom we give free play to the natural process of selection which brings forward the ablest and most capable and most industrious. 
 Mussolini, Doutrina do Fascismo:
The Fascist State organizes the nation, but it leaves the individual adequate elbow room. It has curtailed useless or harmful liberties while preserving those which are essential. In such matters the individual cannot be the judge, but the State only.
Isto é, talvez mais do que achar que o Estado deve intervir muito ou pouco, o que caracteriza o fascismo, nazismo, etc. seja o achar que a liberdade que os indivíduos, empresas, sindicatos, corporações etc têm é algo que é concedido pelo Estado; note-se que isso até é perfeitamente compatível com depois até eventualmente dar muita liberdade a alguns - desde que essa liberdade não seja vista como um direito, mas sim como uma espécie de "delegação de competências" (uma curiosidade: ao contrário do estereótipo dos filmes da II Guerra, parece que o exército alemão - tanto o do Império como o do regime nazi - até era dos que dava mais autonomia aos oficiais subalternos); na economia, isso dá margem para uma vasta gama de políticas, desde políticas de estatização até políticas liberais (desde que esse liberalismo não seja do tipo deontológico).

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