28/02/13

Beppe Grillo em entrevista

Breppe Grillo em discurso directo, sem intermediários. Leiam, e depois critiquem, se assim entenderem, com maior conhecimento de causa.

Excertos:

"(...) ÉPOCA – Na história da Itália, muitos movimentos começaram com um discurso de defesa do povo e terminaram com tendências ditatoriais, como a Frente do Homem Comum, nos anos 1940. Seu discurso quase messiânico não é um risco para a democracia?

Grillo – De forma alguma. Não temos nada a ver com esses movimentos criptofascistas do passado. Vamos dar um choque de democracia direta. O partido político é uma intermediação desnecessária que se apropria da democracia e engole o país. Nós temos a rede, não precisamos de partidos. Com a internet podemos tudo. Com um clique temos as informações de que precisamos e podemos controlar aqueles em quem votamos. Só é preciso um pouco de transparência. Nosso movimento prova que é possível eleger pessoas comuns, honestas, que abram mão de um salário astronômico e de benefícios suntuosos.
 

Ainda a abstenção em Itália

"Voter turnout in 2013 at 75%, although high in comparative terms, represented the lowest level of electoral participation in an Italian general election since 1948; and represents a decline on turnout in 2008 of 5 percentage points. "

Dolore di corno

Este texto do Daniel Oliveira retrata fielmente o desprezo com que muitos à Esquerda olham para o povo. Gostam muito do povo quando vai a manifestações com o intuito de impedir políticas ou para derrubar governos a que se opõem. Mas, alto lá, que mais do que isso, não. Gente sem experiência política em lugares de responsabilidade?!  A controlar permanentemente os "representantes"? Meros comediantes a mobilizar multidões, e a ganhar-lhes a confiança do seu voto?! Será que esta gentalha leu alguma vez um livro? Sabem lá o que querem! Já pensaram no que pode acontecer se meros cidadãos, quiçá alguns deles analfabetos, tiverem intervenção directa no processo de decisão legislativo, quiçá mesmo executivo?…  O que, infelizmente, esta reacção aos resultados das eleições legislativas italianas demonstra é que a Esquerda pró-sistema (ex. BE e PCP em Portugal) tem uma visão tão instrumental do processo democrático como a Direita. Esta vê a Democracia como uma farsa, necessária para iludir o povo, levando-o a acreditar que participa no processo decisório. A Esquerda pró-sistema vê a Democracia como o meio através do qual pode meter as mãos nas alavancas de poder à disposição do Estado, governando depois contra a maioria democrática se fôr necessário (acham mesmo que um putativo governo do BE ou PCP se demitiria logo após uma manifestação com a dimensão da que teve lugar em 15 de Setembro de 2012?!...).

O texto acima mencionado, mas também por exemplo este já assinalado neste blogue, revelam antes de mais uma imensa dor de c#$%&. Então não é que um simples comediante, em meros 4 anos de esforço, consegue um nível de apoio popular muito superior ao que a esquerda "radical" alguma vez atingiu em muitas décadas?! Uma pessoa lê todas as obras do pensamento político, reflecte, discute, conversa, tenta convencer a malta que se conhece, vai às fábricas, e até faz um esforço para apresentar propostas, e depois chega um comediante, pá, um comediante, e rouba-nos o apoio do povo?! O povo que devia estar-nos agradecido por lutarmos por ele?! Ingratos!

Ridículo. Lamentável o quão baixo o ressentimento nos leva, ao ponto de se resumirem (ainda por cima distorcendo-as) as propostas do Movimento 5 Estrelas (sim, existem propostas, 15 páginas delas), à saída do euro (o que é proposto é um referendo sobre a permanência na zona euro - agora o Daniel Oliveira já é contra tal referendo), à diminuição dos salários dos políticos (ficariam com o salário médio italiano, talvez seja maneira de finalmente um parlamento ser verdadeiramente representativo do povo), e à redução da semana de trabalho para 20 horas (proposta como meta desejável a 20-30 anos, já agora tal como o fim da utilização de combustíveis fósseis). Ah, e defendem um rendimento mínimo garantido para todos. Malandros! Não querem é trabalhar!…

Para Daniel Oliveira os italianos que votaram no Movimento 5 Estrelas apenas o fizeram por birra, protesto. Será possível que não tenham votado porque se reviam nas propostas e nos proponentes, que tenham antes de mais julgado que chegou a altura do cidadão normal intervir directamente na definição das políticas que a todos afectam, perdão, que a eles principalmente afecta?
 

26/02/13

"O espectro de pés de barro": José Nuno Matos vs. João Valente Aguiar no Passa Palavra

O José Nuno Matos acaba de publicar, no Passa Palavra, um importante contributo para a discussão sobre os riscos do nacionalismo e da aposta da esquerda soberanista na ruptura do euro e da implosão da UE, intitulado "O espectro de pés de barro: uma resposta a João Valente Aguiar". O texto  toma como ponto de partida a crítica de algumas das posições defendidas pelo João Valente Aguiar, tanto no próprio Passa Palavra como neste blogue, e nele podemos ler:


Num artigo recentemente publicado no Passa Palavra, João Valente Aguiar (JVA) desenvolve uma tese já aqui apresentada e que se pode resumir no seguinte argumento:

“À esquerda e à direita, o Partido Comunista Português (PCP) é, em Portugal, a única força nacionalista com organização, experiência política e ramificação em diferentes níveis do aparelho de Estado capaz de ajudar a avançar uma experiência nacionalista de uma saída do euro. Por outras palavras, se Portugal saísse do euro, o PCP seria a principal alavanca motriz no início de um processo de fascização”.

Por considerarmos que o melhor meio de afirmar a nossa discórdia reside na sua discussão, e não na sua rejeição à partida, apresentamos deste modo uma análise contrária ao cenário delineado por JVA. E começamos, exatamente, por assinalar os pontos em comum com o artigo por si produzido: em primeiro lugar, a enumeração dos perigos de uma saída do euro e da consequente deriva nacionalista e, em segundo, o reconhecimento da génese do fascismo no “processo de apropriação de aspectos provenientes da fase de recuo e de burocratização das lutas sociais do século XX”.

É esta definição que nos conduz a divergir da posição firmada por JVA. O recuo das lutas sociais do século XX é, na nossa interpretação, indissociável de um processo de burocratização das organizações políticas que ensaiaram o controlo dessas mesmas lutas. Deste ponto de vista, é-nos difícil encontrar no PCP algum dado que aponte para a potencialidade evocada pelo autor: a de exercício de um poder de detonação “de uma situação que poderia descambar para uma fascização da sociedade portuguesa”.

Recomendando evidentemente — depois de aqui deixar este mote, que talvez agrade ao Libertário, que tem criticado asperamente o que considera uma fixação funesta do próprio Passa Palavra, e não só do João Valente Aguiar e minha, na crítica da "esquerda nacionalista" — a leitura integral e atenta do breve ensaio do Zé Nuno, acrescento ainda, na expectativa de poder contribuir para um debate mais amplo da questão "Como lutar por que democracia?", o comentário que, há pouco deixei, no Passa Palavra, a propósito do que o Zé Nuno escreve, tentando mostrar como o "nacionalismo" e a "burocratização" são, afinal, vias concorrentes, nos dois sentidos do termo, da ameaça de "fascização".


Caro Zé Nuno,

o teu texto é muito interessante e mereceria um comentário mais completo do que este. Mas o meu ponto aqui é o seguinte: apesar de talvez o João ter dado por vezes outra ideia, eu, pelo menos, nunca o li como defendendo a tese de que a haver, no caso de ruptura do euro e de implosão da UE, uma experiência fascista em Portugal, esta seria protagonizada pelo PCP. Este limitar-se-ia a abrir-lhe caminho através da recuperação de temas soberanistas e nacionalistas a pretexto de luta contra a troika e da reprodução e eventual reforço da subordinação das concepções e formas de organização do “descontentamento” e da revolta às concepções e formas hierárquicas já hoje governantes. Podemos acrescentar que outro aspecto do contributo do PCP para a reacção resulta do modo como tende a encerrar a necessária luta contra a austeridade actual num beco sem saída.
Se, por outro lado, pretendes mostrar – no que te secundo inteiramente – que os perigos de “fascização”, digamos assim, podem ser veiculados também pelo federalismo tecnocrático e autoritário que, invocando a Europa e a integração, se propõe já hoje como disposto a reciclar sob formas mais eficazes os aparelhos soberanistas, então, terás de reconhecer que a política de oposição à troika nos termos em que o PCP a formula só pode contribuir para conter e recalcar a emergência dos regimes alternativos dessa acção política anticapitalista porque democrática, e democrática porque anticapitalista, à falta da qual vamos alimentando a servidão voluntária ou a menoridade culpada que nos expropria da liberdade e da responsabilidade igualitárias desse outro nome da autonomia que é o horizonte da plena cidadania activa.
Quanto ao resto, subscrevo no essencial o que dizes – ainda que fosse possível argumentar que haverá quem possa dizer que subestimas as potencialidades regressivas da situação actual – um pouco como tu tens a impressão de que o João as sobrestima.

Abraço

miguel








Itália - os outros resultados

Ali em baixo, o leitor Libertário levanta um interessante ponto: "Não deixa de ser curioso como mesmo no Vias de Facto quando se fala de eleições nunca se dá atenção a algumas informações relevantes como as que se referem a votos brancos, nulos e abstenções... Isso é tão importante como o saber as percentagens de votos em todos os palhaços. Principalmente para os que não são partidários do sistema dito representativo."

Pelos vistos, os resultados nesse ponto foram:

Abstenção: 11.634.800 (24,8%)
Brancos: 395.286 (0,8%)
Nulos: 871.781 (1,9%)

Agora, numa perspectiva mais global, com as verdadeiras percentagens que os partidos tiveram:

Abstenção: 11.634.800 (24,8%)
Coligação pro-Bersani: 10.047.603  (21,4%)
Coligação pró-Berslusconi: 9.923.109 (21,2%)
Movimento 5 Estrelas: 8.689.168 (18,5%)
Coligação pró-Monti: 3.591.629 (7,7%)
Nulos: 871.781 (1,9%)
Revolução Civil: 765.172 (1,6%)
Brancos: 395.286 (0,8%)

[As outras listas concorrentes tiverem menos todas menos que 390 mil votos]


Uma visão crítica do movimento "5 Estrelas"

Grillo™ for dummies, por Giuliano Santoro, no libcom.org (via facebook do "nosso" João Aguiar).

25/02/13

Eleições italianas - primeiros resultados

20:34 - Projecções para a Câmara dos Deputados (617 lugares):

Partido Democrático - 293
Povo da Liberdade - 94
Movimento 5 Estrelas - 110
Escolha Cívica - 38
Liga Norte -19
Esquerda, Ecologia e Liberdade - 36
Irmãos de Itália- 9
Outros pró-Bersani - 11
Outros pró-Monti - 7


20:13 -  Projecções de eleitos para o Senado:

Partido Democrático - 95 senadores (até agora, 27,8% dos votos)
Povo da Liberdade - 93 (22%)
Movimento 5 Estrelas - 63 (23,87%)
Escolha Cívica/Com Monti por Itália - 20 (9,15%)
Liga Norte - 18 (4,18%)
Esquerda, Ecologia e Liberdade -9 (2,99%)
Irmãos de Itália- 2 (1,9%)
Revolução Civil - 0 (1,9%)
Outros - 1 (2,8%)

Nem uma aliança PD + Esquerda, Ecologia e Liberdade + Monti nem Povo da Liberdade + Liga Norte + Irmão de Itália + Monti têm maioria

24/02/13

O que isto nos pode dizer sobre o "centro-esquerda" italiano?

Business Insider (um site de noticias económico-financeiras): "The hope for World markets/the EU/Italian elites is that the center-left parties get enough votes to form a stable majority."

Links sobre as eleições italianas

Haverá alguma candidatura digna (mesmo para um critico da democracia representativa) de se "torcer"? Talvez a Rivoluzione Civile, mas mesmo esses não me parecem grande coisa (quanto ao Movimento 5 Stelle, de Beppe Grilo, parece combinar alguns aspectos interessantes com outros péssimos).

23/02/13

Tunísia: o papel dos sindicatos

Tunisia: Labour and the capital (Al Jazeera):
In perhaps the most striking response to Belaid's murder, the country's largest trade union, the Tunisian General Labour Union (UGTT), called a general strike that brought the nation to a stand-still, from the phosphate mines of the south to Tunis's Westernised Avenue de France.

Unionisation in Tunisia is generally high, with peak figures in the industrial production sector, which accounts for more than 30 percent of GDP. The UGTT claims total membership of around half a million workers in a country with a population of 10.6 million.

In the poorer South – particularly in the mining town of Gafsa – trade unions are particularly active. Resistance against the January appointment of Ennahda members to key positions in the largest mining plants is ongoing.

During the mass protests that led to President Zine Abedine Ben Ali fleeing in the 2011 Jasmine revolution, the unions gave up their long-term support for Ben Ali. After criticism from within their own ranks, unions joined the opposition.

Building on their experiences leading precursor protest movements in 2008 and 2010, the unions provided an organisational structure that helped make the scale and persistence of the demonstrations possible.
“Since Tunisia’s independence, the labour movement served as a rare legal conduit for expressing dissent... It played a key role in sustaining the 2011 protest movement, which it framed as rooted in economic grievances,” according to congressional researcher and Africa analyst Alexis Arieff.

This history of dissent in Tunisia, from independence in 1956 to Ben Ali's departure in 2011, is well-known across the North African country.

But the labour movement is by no means universally popular. For all its influence, the unions failed to win significant parliamentary representation in the 2012 constitutional elections.

Tunisia's religious right have long opposed its programmes, in some cases by violence. In February 2012, the International Trade Union Congress reported that UGTT regional offices in Bou Salem, Ben Gardane, and Jendouba were burned down by Salafi groups, which labelled the organisation an “enemy of God”.

22/02/13

Horrorizados ma non troppo


Já os havia antes de 1974. Execravam a ditadura, a censura, os métodos da PIDE, a guerra colonial e outros erros do regime vigente. Mas não queriam cair na ilegalidade nem nos abusos de sinal contrário — leia-se na greve, na imprensa clandestina, no recurso à acção violenta ou insurreccional, na subversão da disciplina militar.

Em 1974 e depois, honra lhes seja, continuavam fiéis a si próprios. Tinham execrado Salazar, a destruição da "Primavera marcelista", o isolamento internacional do país, o subdesenvolvimento e o atraso portugueses, sempre tinham sido da oposição, mas não podiam aprovar o 25 de Abril, essa "violência incompatível com a afirmação do primado da liberdade", o recurso às armas para acabar com o regime e com a guerra, as greves selvagens, as comissões de trabalhadores e moradores, a quebra das cadeias de comando nos quartéis ou nas empresas e nos bairros,  todos esses métodos, em suma, que tornavam quem deles se valia igual aos defensores da ditadura, portador da culpa de atropelos mais graves do que os do regime deposto.

Hoje, sempre equidistantes e em consciência, execram, horrorizados ma non troppo, os abusos e prepotências do governo, não deixando por isso de pensar que a sua correcção e a restauração do equilíbrio e do bom senso competem às autoridades competentes do Estado de direito, e nunca, nunca, ao anarquismo, esse mal maior, que seria a generalização do exercício pelos cidadãos comuns da defesa e instituição da democracia.

19/02/13

Os teatros do tempo político. II: dez notas sobre a fascização como potencialidade



«No actual contexto, não basta à esquerda lutar contra as políticas devastadoras da troika com as quais todos os trabalhadores têm sido violentamente atacados nos seus direitos e nos seus rendimentos. Portanto, todos nós à esquerda concordamos (e bem) que a raiz das actuais dificuldades que os trabalhadores atravessam está nas políticas de austeridade que a troika e o governo têm executado. À justa crítica juntam-se propostas de tentativa de dar resposta à situação. Uma delas, defendida cada vez com maior abertura, é a saída do euro e a devolução da soberania nacional a essa entidade mítica que é o País.


Mas aqui coloca-se uma questão: só porque se apresentam contrárias à troika, terão os trabalhadores de aceitar algumas dessas propostas como justas e benéficas? Apesar de serem contra a troika teremos de as aceitar benévola e acriticamente em nome de uma grande coligação de esquerda? Bastará uma alternativa afirmar-se contra a troika para ser viável em termos de superação do actual estado de coisas? O juízo crítico e reflexivo terá de ficar suspenso só porque algumas alternativas se apresentam contra a troika, mas trazem no bojo uma solução ainda mais perniciosa?
A luta contra a austeridade tem de prosseguir e, sejamos claros, tem de crescer. E tem de crescer com mais gente nas manifestações, nas greves, nas concentrações e sobretudo com mais luta nos locais de trabalho. Mas a luta contra a troika não pode desenvolver-se acriticamente e assinar cheques em branco a pretensas alternativas que, no meu modo de ver, resultariam num aprofundamento dessa mesma austeridade.
Quando o governo e a troika nos querem cortar um braço a resposta da esquerda tem de ser a de propor uma alternativa que corte primeiro o esquerdo? Eu prefiro pensar que há alternativas ao corte de um braço (o que vivemos actualmente) ou de dois braços (se sairmos do euro). É disso que se trata.
Sair do euro é querer apagar o fogo que nos está a queimar deitando-lhe mais gasolina em cima.»
Excerto da segunda parte do artigo "Os teatros do tempo político" publicado no Passa Palavra.

15/02/13

Governo incentiva o empreendedorismo e a inovação

O Secretário de Estado da Saúde sobre as smartshops - "O problema é que, só em 2012, em 32 semanas, inventaram-se 26 novas drogas. É mais do que uma por semana. Sabemos que, do ponto de vista da descrição química – e esta é que a grande questão da definição do âmbito da proibição em termos legais – é que basta alterar um radical para ser uma droga nova e, portanto, sabemos que vamos ter de andar sempre atentos, seguir o fenómeno e continuar a proibir estas drogas".

Ou seja, o resultado prático dessas proibições é incentivar à invenção de novas substâncias, que não estejam cobertas pelas proibições existentes e assim possam ser livremente comercializadas durante algum tempo. Desta forma, em vez de haver à venda substâncias estáveis e conhecidas, que possam ser facilmente acompanhadas de uma lista de possiveis efeitos secundários e contra-indicações, o que há é produtos acabados de inventar e que ninguém sabe bem quais os seus efeitos.

13/02/13

Os teatros do tempo político. I: o cão que ladra ao chão que treme


«Um dos maiores despoletadores e um dos factores que mais contribuíram para a expansão da crise na zona euro relacionou-se com o facto de que há três anos atrás o BCE não actuava como credor de última instância. Ora, o que estas emissões da dívida pública portuguesa e irlandesa demonstram é que o BCE paulatinamente vai assumindo esse papel de credor de última instância. O que por outras palavras significa que a União Europeia vai assumindo contornos de uma gradual federalização e unificação política, fiscal e monetária. Demorará anos, mas a não ser que aconteça um cataclismo esse será o caminho que os capitalistas europeus estão a tomar. E este caminho está hoje a ser tomado a contragosto mesmo para alguns sectores, nomeadamente ligados ao Bundesbank [banco central alemão] que até há um ano se consideravam contrários ao aprofundamento da federalização. O que só demonstra que os capitalistas actuam muito para além dos processos eleitorais. Não que os desprezem, mas não é aí que a classe dominante decide sobre os desafios e as contradições que a evolução do modo de produção capitalista lhe coloca. Por cada minuto que a esquerda se baba de ética e aponta forças ao diploma de Relvas ou à maior ou menor idoneidade de Franquelim não sei das quantas, o zeloso gestor Vítor Gaspar e os seus colegas tecnocratas de longa data do BCE e da Comissão Europeia continuarão a resolver os impasses e contradições que a construção capitalista europeia lhes tem colocado. Como sempre, à custa dos trabalhadores. Mas isso pouco parece interessar à esquerda ético-revolucionária portuguesa. O circuito facebook-São Bento-telejornais das dez da noite continuará a rolar como até aqui.»

Excerto da primeira parte do artigo "Os teatros do tempo político" publicado no Passa Palavra. A segunda parte será publicada na próxima semana.

11/02/13

Sobre a resignação de Ratzinger: pior é sempre possível


Este interessante balanço do pontificado de Ratzinger e uma não menos interessante proposta de leitura da sua resignação, que Miguel Mora Diaz assina na edição de hoje de El País, e dos quais transcrevo a seguir alguns excertos, deveriam fazer pensar duas vezes os que desvalorizam ou ignoram a importância política da "questão religiosa" e a sua inscrição, directa ou indirecta, no cerne da "questão social".


El ortodoxo cardenal alemán de alma tridentina ha sido durante su mandato un Papa solo, intelectual, débil y arrepentido por los pecados, la suciedad y los delitos —él empleó estas dos palabras por primera vez— de la Iglesia, y rodeado de lobos ávidos de riqueza, poder e inmunidad. La Curia forjada en tiempos de Wojtyla era una reunión atrabiliaria de lo peor de cada diócesis, desde evasores fiscales hasta pederastas, pasando por contrarrevolucionarios latinoamericanos y por integristas de la peor especie. Esa Curia digna de El Padrino III siempre vio con malos ojos los intentos de Ratzinger de hacer una limpieza a fondo, mientras los movimientos más pujantes y rentables, como los Legionarios, el Opus Dei y Comunión y Liberación, torpedeaban a conciencia cualquier atisbo de regeneración

La Vaticalia eterna, esa espesa gelatina formada por cardenales y civiles que confunden los intereses de Italia y los del Vaticano y hacen negocios cruzados en los dos Estados mientras deciden las cosas importantes, se ha empleado a fondo en estos siete años para mantener sus privilegios e impedir al mismo tiempo la renovación de la Curia y la modernización de Italia, especialmente en dos sectores, las finanzas y la información, los imperios donde más poder e intereses tienen el Opus Dei y Comunión y Liberación, los movimientos ultracatólicos que más medraron, junto a los Legionarios, durante el largo papado de Wojtyla.


Se Miguel Mora Diaz tem razão, e a resignação de Ratzinger é a vitória dos ultras do Vaticano, então, o pior ainda está para vir, e devemos preparar-nos para uma intervenção política da Igreja de Roma contra tudo o que cheire a Luzes aos seus hierarcas, que tornará para muitos católicos ainda mais difícil qualquer outra saída que não seja a ruptura ou, no melhor dos casos, o cisma organizado, e a adopção, perante Roma, da velha palavra de ordem do Écrasez l'infâme de Voltaire.

Se Ratzinger pecava contra o espírito, tentando demonstrar racionalmente a legitimidade da subordinação do livre-exame ao "esplendor da verade" da fé revelada e do consequente primado da doutrina eclesiástica, os ultras, que se preparam para dispor do seu trono, tentarão por todos os meios,  a começar, não se duvide, das alianças e manobras políticas mais monstruosas, sacrificar a liberdade de criação e de expressão do pensamento ao monopólio e à censura daquilo a que Freud chamava a sua "arrogante mentira".

Por isso, cometerão um erro, que poderá ser-lhes fatal, e fatal para muitos outros também, os que subestimarem a potência de difusão de gaseamento dos espíritos — e, sempre que necessário, dos pulmões e dos corpos — de que disporá uma câmara pontifícia dominada pelos Legionários de Cristo, a Opus Dei ou outros movimentos contra-revolucionários, como os do tipo Comunhão e Libertação.

Os proibicionistas (II)

A 4 de janeiro, o parlamento aprovou, quase por unanimidade, uma resolução incentivando o governo a tomar medidas contra as chamadas "drogas legais" (ao que parece, as abstenções foram, não por discordância, mas por acharem que o que a resolução propunha já estava a ser feito).

Um dos aspectos mais relevantes dessa resolução é o ponto preconizando legislação que permita ao membro do governa com tutela sobre a pasta proibir, provisoriamente, substancias que não sejam proibidas por lei. A meu ver, isso é não só uma limitação da liberdade individual, mas também uma redução da democracia, ao transformar a proibição de determinadas substancias em algo que passará a ser feito por despacho, sem sequer ir à Assembleia da República, supostamente o orgão responsável por fazer leis (e cuja legitimidade democrática é, apesar de tudo, mais directa do que a dos ministros)

A esse respeito, relembro o que escrevi aqui.

Note-se que, na discussão da resolução, João Semedo, do BE, levantou a questão de um dia ter que se discutir a "se a atual política das drogas, de despenalização do consumo e de criminalização da sua comercialização, não atingiu, hoje, os limites nas sociedades como aquela em que vivemos", e, do outro lado, os deputados do CDS Adolfo Mesquita Nunes e Michael Seufert apresentaram uma declaração de voto levantando dúvidas sobre as politicas de proibição. Mas o certo é que votaram todos a favor (diga-se que esse voto a favor me parece mais aceitável nos deputados do CDS do que nos do BE; afinal, os primeiros, para começar nem sequer sei qual é exactamente a opinião deles sobre o estatuto legal dos vários tipos de drogas, e de qualquer maneira eles estão lá a representar eleitores que votaram no CDS e nas ideias normalmente associadas a esse partido, não neles individualmente; já os segundos representam um partido tradicionalmente oposto às politicas proibicionistas, logo penso que, no mínimo, uma abstenção ou mesmo um voto contra seria a posição mais correcta).

Provavelmente a caixa dos comentários vai ser inundada de leitores a falarem dos perigos das drogas atualmente legais, das idas aos hospitais, dos comas, etc. Mas, na minha opinião, a questão não deve ser "a substancia X é perigosa para a saúde?", mas sim as questões "Temos o direito de proibir alguém de prejudicar a sua saúde consumindo X, se for essa a sua intenção?" e/ou "Proibir o consumo de X é a melhor maneira de limitar os danos que esse consumo pode causar?" (a primeira questão pode ser importante do ponto de vista cientifico, e sobretudo do ponto de vista de quem está a pensar se vai consumir ou não X, mas não acho que deva ser essa a questão importante do ponto de vista dos decisores políticos).

10/02/13

Zico e os comunistas: da sedução pelo capitalismo de Estado

«Qualquer que seja o cenário mais verosímil, temos apontado em sucessivos artigos os perigos de um capitalismo de Estado resultante do abandono da zona euro, que consideramos uma eventualidade possível, embora não sendo de imediato a mais provável. E existe uma única maneira de diminuir essa probabilidade, que é a de incansavelmente desvendarmos as suas implicações práticas. Tê-mo-lo feito e continuaremos a fazê-lo. E é precisamente disso que nos acusam aqueles que consideram a nossa posição exclusivamente negativa e desprovida de repercussões práticas. Estas são as pessoas para quem tudo o que é importante sucede no Estado. É uma deformação do pescoço, não olham para o que lhes está debaixo dos pés. E agora, vislumbrando no horizonte um capitalismo de Estado que os abranja a eles também, abanam a cauda de satisfação e chamam-nos desmancha prazeres.

Num artigo publicado no início de Dezembro do ano passado observámos que «mesmo para a maioria dos intelectuais de esquerda instruídos e cosmopolitas, o capitalismo de Estado, que eles podem desprezar em teoria, não é repulsivo na prática. Até os regimes políticos mais delirantes precisam de uma tecnocracia sensata, senão não se aguentariam nem uma semana. E assim, nos corredores dos ministérios e nos gabinetes ao lado, estes tecnocratas inteligentes e cépticos irão atenuando os efeitos piores das medidas mais nocivas, enquanto dizem ironias no intervalo». Acham que lhes vale mais um lugar secundário e obediente numa secretaria de Estado do que o inglório papel de blogueiros, e quem somos nós para dizer que não têm razão!»

O restante artigo do Passa Palavra pode ser encontrado aqui.

08/02/13

Nas Origens do Partido Comunista Francês — ou o tratamento por ácido à prova do tempo



            Os anos de 1924-1925 foram particularmente fecundos em França para o debate político no interior do jovem Partido Comunista. Nomeadamente, a aceitação das 21 condições de adesão à Internacional suscitou vivas discussões e levantou importantes questões teóricas.

            Nos começos de 1925, antes de a referência a Trotski se impor, organizou-se no partido uma tendência oposta à bolchevização. Quando, a 18 de Agosto de 1925, uma delegação de membros da oposição foi recebida pelo Comité Central para expor os seus pontos de vista e afirmar o seu apoio a Souvarine, Monatte, Rosmer e outros - anteriormente excluídos "como inimigos do partido" -, a sorte da corrente já estava decidida. Mal os militantes tinham saído da sala, um dos membros influentes do Comité Central, interpelou os seus pares: "Com que ácido vamos tratar esta gente?". Tratava-se de Jacques Doriot, um dos dirigentes que, anos mais tarde, se passará do socialismo nacional para o nacional-socialismo.
            Para os membros da oposição da época, a aceitação das 21 condições abria a porta a uma transformação profunda da natureza do partido. "Em nome da bolchevização, pretende impor-se ao partido francês a imitação mecânica e servil do partido russo. Foram banidas toda a liberdade de pensamento e de expressão, toda a crítica, toda a iniciativa"1. O que significava o fim de "um partido revolucionário [que] deve ser antes do mais um partido que pensa, um partido formado de homens intelectual e moralmente conscientes"2.

            Foi Fernand Loriot (1870-1932) quem, no dia 18 de Agosto de 1925, defendeu as teses da oposição perante o Comité Central. Hoje quase desconhecido, Loriot foi um membro de primeiro plano da esquerda da SFIO e manteve posições próximas das dos sindicalistas revolucionários. Partidário internacionalista de Zimmerwald, foi, durante a Primeira Grande Guerra, pacifista revolucionário - "aquele que salvou a honra do socialismo francês durante a guerra (1914-1918)", dirá mais tarde Souvarine. Mas, sobretudo, Loriot foi o redactor da moção de ruptura com a SFIO, por ocasião do Congresso de Tours, em Dezembro de 1920.

05/02/13

"Excerto de uma mensagem que não enviei " (João Bernardo em torno de Victor Serge)


Belíssimo, a "desescrita" do João Bernardo em torno de Victor Serge, que nos trouxe hoje o Passa Palavra. E pode ser que me engane, mas creio que a Maria Velho da Costa, a cujo inesquecível título aqui peço arrimo, não me desmentiria. Quanto ao que o João Bernardo diz, de passagem, de Gide e da sua moral, não sendo pouco, ou por isso mesmo, não posso impedi-lo de suscitar em mim uma expectativa impaciente de o poder ler um pouco mais sobre o assunto. Ainda há meses, falei a um amigo, assessor de uma editora com pergaminhos, tentando mobilizá-lo para a tentativa de convencer os responsáveis da casa que assessora a publicarem Les faux-monnayeurs, Si le grain ne meurt e os dois regressos da URSS. O meu amigo talvez não goste menos de Gide do que o João Bernardo, mas pensa que só dificilmente alguma editora da região se meterá nisso, pelo menos nos tempos mais próximos.

Mas o que por ora me importa, sobretudo, é assinalar o acontecimento digno de memória e regozijo que seria o João Bernardo, reunindo, por exemplo, o texto de hoje, outro sobre o Gide, o “Ponto Final”, o “Epílogo e Prefácio…”, e acrescentando-lhe talvez uma ou outra coisa mais na mesma veia, desfizesse ou “desescrevesse”, ainda que num só pequeno volume, uma parte da biblioteca do que parece ter decidido não compor.

02/02/13

Henri Lefebvre: O Direito à Cidade


Se, durante alguns anos me considerei marxista, foi por obra e graça do meu entusiasmo pelo pensamento de Henri Lefebvre — e pelo seu estilo, já que de Lefebvre se trata, e tendo presente o uso polémico que ele faz da coisa e do conceito, contra o estruturalismo e os tecnocratas. Lefebvre era, então, na segunda metade da década de 1960 e na primeira metade da seguinte, excepto para muito poucos, um revisionista abominável, um humanista irremediavelmente irredutível à teoria althusseriana do comunismo como organização científica da sociedade, segundo alguns, ou um renegado do PCF, segundo outros, ou ainda, de acordo com outras obediências, uma espécie de "falso situacionista", porque insuficientemente subversivo e "transgressor". E todavia, se, mais tarde, o marxismo, ainda que na versão de Lefebvre ou na do Châtelet de Logos et praxis, deixou de me parecer justificar qualquer privilégio de princípio, ou constituir condição necessária de uma transformação radical como a que continuo a ter por prioritária, o pensamento de Lefebvre continuou a ser para mim a fonte daquilo a que poderia, com Castoriadis, chamar uma "ideia-mãe" fundamental. Com o que entendo referir-me à sua ideia de tomar como ponto de partida da reflexão inerente à acção política — e ponto de partida também da crítica das formas de racionalidade e organização políticas dominantes — a análise e a crítica da vida quotidiana. É, com efeito, segundo Lefebvre, às opressões, privações e insatisfações experimentadas na vida quotidiana dos trabalhadores e do conjunto dos seres humanos comuns, que a acção política deverá responder — desmentindo a insignificância a que os interesses e valores superiores dominantes a condenam — através da participação e da democracia de base dos interessados, sob pena de se reduzir à "reprodução das relações de produção" (título de um dos seus escritos da década de 1970).

Não é este o lugar adequado para apresentar ainda que brevemente, o legado de Henri Lefebvre. Por hoje, pretendo apenas assinalar que a Letra Livre acaba de publicar de parceria com a Estúdio uma tradução do seu seminal clássico de 1968 Le droit à la ville — cf. Henri Lefebvre, O Direito à Cidade, tradução de Rui Lopo e Prefácio de Carlos Fortuna, Estúdio e Letra Livre, 2013. Mais vale tarde do que nunca, ou melhor: nunca, até onde podemos ver, será tarde para (re)descobrirmos Lefebvre e, nas nossas cidades, esse ar, anunciado, como ele recorda, pelas comunas dos finais da Idade Média, que torna livres aqueles que o respiram.

01/02/13

Sinceridade e não (a propósito de um comentário do Pedro Viana)


Comentando um comentário do João Valente Aguiar na caixa do post em que recentemente chamei a atenção dos leitores para um artigo do Passa Palavra sobre o "europeísmo manco" do BE, o Pedro Viana escreve, entre outras coisas, que considera "arrogantes" ceertos "textos anónimos" do Passa Palavra, porque:

Por exemplo, quando os dirigentes do PCP afirmam que a emancipação da classe trabalhadora requer um Estado forte, em vez de se admitir que eles possam estar a ser sinceros, e que até poderão em alguma medida ter razão (mas não quando todas as consequências de tal proposta são consideradas), o que é mais ou menos explicitamente dito é que tais dirigentes estão a ser falsos, porque sabem muito bem que um Estado forte necessariamente oprimirá os trabalhadores, e por isso o que querem na verdade é ter lacaios ao seu serviço.

Ora bem, Pedro, vamos lá imaginar que um estalinista me comunica a sua convicção sincera de que a via necessária para a autogestão generalizada e o fim da exploração do homem pelo homem passa pelo reforço dos dispositivos repressivos do aparelho de Estado, pela consolidação das cadeias de comando hierárquicas, pela decidida construção de campos de concentração que neutralizem os inimigos de classe, pelo monopólio do partido de vanguarda em matéria de decisões políticas e expressão do pensamento, e assim por diante. Claro que posso e devo, num primeiro momento, propor-lhe que discuta o assunto, e tentar mostrar-lhe que o seu modo de fazer o caminho nunca produzirá a sociedade sem classes, a liberdade e igualdade que proclama como seus objectivos. Mas se o militante estalinista, de acordo com as suas convicções declaradas, recusar o debate, considerar que a propria discussão das concepções e do modelo de organização que adopta, são uma sabotagem criminosa e intolerável, talvez "nazi-trotsquista", que terão de ser punidas pelos trabalhos forçados, a lavagem ao cérebro laboratorial-carcerária ou o fuzilamento, e, juntando o gesto à palavra, me ameaçar com a sua arma, poderei eu fazer outra coisa razoável que não seja tentar pô-lo fora de combate, para o não deixar limpar-me o sebo, alertando entretanto, no caso de escapar, os meus camaradas contra a ameaça mortal que o militante estalinista em causa e as concepções e formas de organização que o autorizam representam para a liberdade e igualdade democráticas que são condições necessárias do socialismo? Ou deverei, tendo em conta a "sinceridade" do militante que acredita que a liberdade é obediência cega, que a igualdade é servidão voluntária, e assim por diante, oferecer-lhe a minha capitulação e colaboração na construção dos amanhãs que cantam, sob a direcção do partido de vanguarda?

Pois é, Pedro. Enfim, se achares que vale a pena dares-te ao trabalho de responder, tem, se possível, presente esta interrogação suplementar: Haverá outra maneira de termos a autogestão generalizada, a liberdade e a igualdade democrática plenas ou a cidadania governante amanhã, que não passe pela autogestão, a democratização das formas de organização da acção política e do exercício activo da cidadania hoje?