02/02/13

Henri Lefebvre: O Direito à Cidade


Se, durante alguns anos me considerei marxista, foi por obra e graça do meu entusiasmo pelo pensamento de Henri Lefebvre — e pelo seu estilo, já que de Lefebvre se trata, e tendo presente o uso polémico que ele faz da coisa e do conceito, contra o estruturalismo e os tecnocratas. Lefebvre era, então, na segunda metade da década de 1960 e na primeira metade da seguinte, excepto para muito poucos, um revisionista abominável, um humanista irremediavelmente irredutível à teoria althusseriana do comunismo como organização científica da sociedade, segundo alguns, ou um renegado do PCF, segundo outros, ou ainda, de acordo com outras obediências, uma espécie de "falso situacionista", porque insuficientemente subversivo e "transgressor". E todavia, se, mais tarde, o marxismo, ainda que na versão de Lefebvre ou na do Châtelet de Logos et praxis, deixou de me parecer justificar qualquer privilégio de princípio, ou constituir condição necessária de uma transformação radical como a que continuo a ter por prioritária, o pensamento de Lefebvre continuou a ser para mim a fonte daquilo a que poderia, com Castoriadis, chamar uma "ideia-mãe" fundamental. Com o que entendo referir-me à sua ideia de tomar como ponto de partida da reflexão inerente à acção política — e ponto de partida também da crítica das formas de racionalidade e organização políticas dominantes — a análise e a crítica da vida quotidiana. É, com efeito, segundo Lefebvre, às opressões, privações e insatisfações experimentadas na vida quotidiana dos trabalhadores e do conjunto dos seres humanos comuns, que a acção política deverá responder — desmentindo a insignificância a que os interesses e valores superiores dominantes a condenam — através da participação e da democracia de base dos interessados, sob pena de se reduzir à "reprodução das relações de produção" (título de um dos seus escritos da década de 1970).

Não é este o lugar adequado para apresentar ainda que brevemente, o legado de Henri Lefebvre. Por hoje, pretendo apenas assinalar que a Letra Livre acaba de publicar de parceria com a Estúdio uma tradução do seu seminal clássico de 1968 Le droit à la ville — cf. Henri Lefebvre, O Direito à Cidade, tradução de Rui Lopo e Prefácio de Carlos Fortuna, Estúdio e Letra Livre, 2013. Mais vale tarde do que nunca, ou melhor: nunca, até onde podemos ver, será tarde para (re)descobrirmos Lefebvre e, nas nossas cidades, esse ar, anunciado, como ele recorda, pelas comunas dos finais da Idade Média, que torna livres aqueles que o respiram.

4 comentários:

fec disse...

Será interessante reler a obra de António José Saraiva. Vai muito nesse sentido.

Relativamente ao qual sou relativamente céptico diga-se de passagem. O saudosismo nunca foi o meu forte.

o direito ao campo disse...

Este é um problema que diz respeito à composição do produto (exportações tradicionais e não-tradicionais), e não apenas ao seu nível. Passar para as metas do PIB nominal não iria fazer diferença.



O segundo problema é compartilhado pelos bancos centrais dos países de rendimento médio e elevado: como assegurar que a política monetária mantém a estabilidade financeira. As metas de inflação relacionam-se com os preços dos bens e serviços, e não com os preços dos activos financeiros. Se a “exuberância irracional” se instala e se desenvolve uma bolha nos mercados imobiliários ou de acções, a resposta da teoria ortodoxa é: a vida é assim.



Após a devastação causada pelo ciclo de expansão e recessão dos últimos anos, não são muitos os economistas que estão confortáveis com a atitude de “então que seja”. Também não se sentem confortáveis muitos bancos centrais de países emergentes, que estão a adoptar mudanças nos requisitos de reservas, entre outras medidas, para picar as bolhas de preços de activos nos seus estágios iniciais.



Os defensores das metas do PIB nominal afirmam que estas medidas prudenciais poderiam agregar-se para criar uma versão ampliada do seu regime preferencial. É possível, mas também poderiam agregar-se ao regime tradicional de metas de inflação. Passar de um sistema para o outro não ajuda muito a este respeito.



O último problema diz respeito ao papel dos bancos centrais como emprestadores de último recurso durante uma crise. Este trabalho é especialmente importante - e difícil - em mercados emergentes, porque uma parte significativa da dívida, tanto pública como privada, é tipicamente em moeda estrangeira. Assim, o papel de emprestador de último recurso em situações de crise implica o recurso a reservas internacionais e ao fornecimento de liquidez em moeda estrangeira. Isto também é estranho ao sistema de metas de inflação e de flutuação cambial. Mas seria igualmente estranho a um sistema no qual o banco central fixasse metas do PIB nominal com um tipo de câmbio flutuante.



Estas considerações sugerem que a saída não está em passar de um sistema simples e universal para outro. Os mercados emergentes precisam de um sistema de política monetária que considere, explicitamente, a volatilidade dos fluxos de capital, os desajustes nos preços dos activos (incluindo a taxa de câmbio, que é o preço da moeda estrangeira) e a instabilidade financeira resultante.

José Guinote disse...

Uma boa notícia a tradução do "Le Droit à La Ville". Pode ser que a seguir traduzam o "La prodution de l´espace". Infelizmente na nossa academia o conhecimento da língua francesa deixa muito a desejar e assim mais alunos poderão ter acesso a um autor tão importante. Na última década uma série de conceitos como o Direito à Cidade, a Justiça Espacial, a Cidade Justa, emergiram no debate urbanístico internacional de pois de um período de ocaso. As ideias de Lefebvre são revisitadas por uma nova geração de investigadores e mostram um enorme potencial para permitirem explicar os mecanismos de criação das novas geografias da desigualdade e a forma de os transformar. De todos os autores que voltam a Lefebvre e às suas ideias cito Edward Soja e a sua obra “Seeking Spatial Justice (2010) ” em que a contribuição de Lefebvre é analisada no contexto da construção de uma teoria da justiça espacial. Esta obra dá bem uma ideia da riqueza e da complexidade que as ideias de Lefebvre transportam. Refiro dois ou três aspectos. Lefebvre associou a sobrevivência do capitalismo à ocupação e produção de espaço, algo que se tornou evidente com a crise da última década que, como refere David Harvey, foi sobretudo uma crise do processo de urbanização. Lefebvre identificou a normalidade urbana como geradora de relações de poder desiguais e promotora de uma distribuição desigual dos recursos sociais. Propôs uma resposta política que passa-se pela participação dos cidadãos – as vítimas desse desenvolvimento desigual - e pelo exercício do controle sobre os mecanismos de produção do espaço. Antecipou os conceitos da participação e da democracia de base que se popularizaram mais tarde mas dando-lhes um cunho de real transformação das relações de produção e não apenas de um embelezamento das relações de produção existentes. Um autor que justifica uma boa reflexão sobre as questões urbanas habitualmente desprezadas no debate político.

Miguel Serras Pereira disse...

Caro José Guinote,

sim La Production de l'espace, e também os póstumos Éléments de rythmanalyse (em colaboração com Catherine Regulier-Lefebvre - entre muitas outras oisas, claro. Noutro registo, mas com reflexões inspiradas sobre a cidade, a Introduction à la modernité. Para já não falarmos no testemunho político impressionante que é La Somme et le reste, ou na autobiografia intelectual do Royaume des ombres, sem esquecer as páginas matriciais de La critique de la vie quotidienne.

Mas vai ser difícil que outros editores sigam o exemplo da Letra Livre-Estúdio…

Abraço

msp