26/02/13

"O espectro de pés de barro": José Nuno Matos vs. João Valente Aguiar no Passa Palavra

O José Nuno Matos acaba de publicar, no Passa Palavra, um importante contributo para a discussão sobre os riscos do nacionalismo e da aposta da esquerda soberanista na ruptura do euro e da implosão da UE, intitulado "O espectro de pés de barro: uma resposta a João Valente Aguiar". O texto  toma como ponto de partida a crítica de algumas das posições defendidas pelo João Valente Aguiar, tanto no próprio Passa Palavra como neste blogue, e nele podemos ler:


Num artigo recentemente publicado no Passa Palavra, João Valente Aguiar (JVA) desenvolve uma tese já aqui apresentada e que se pode resumir no seguinte argumento:

“À esquerda e à direita, o Partido Comunista Português (PCP) é, em Portugal, a única força nacionalista com organização, experiência política e ramificação em diferentes níveis do aparelho de Estado capaz de ajudar a avançar uma experiência nacionalista de uma saída do euro. Por outras palavras, se Portugal saísse do euro, o PCP seria a principal alavanca motriz no início de um processo de fascização”.

Por considerarmos que o melhor meio de afirmar a nossa discórdia reside na sua discussão, e não na sua rejeição à partida, apresentamos deste modo uma análise contrária ao cenário delineado por JVA. E começamos, exatamente, por assinalar os pontos em comum com o artigo por si produzido: em primeiro lugar, a enumeração dos perigos de uma saída do euro e da consequente deriva nacionalista e, em segundo, o reconhecimento da génese do fascismo no “processo de apropriação de aspectos provenientes da fase de recuo e de burocratização das lutas sociais do século XX”.

É esta definição que nos conduz a divergir da posição firmada por JVA. O recuo das lutas sociais do século XX é, na nossa interpretação, indissociável de um processo de burocratização das organizações políticas que ensaiaram o controlo dessas mesmas lutas. Deste ponto de vista, é-nos difícil encontrar no PCP algum dado que aponte para a potencialidade evocada pelo autor: a de exercício de um poder de detonação “de uma situação que poderia descambar para uma fascização da sociedade portuguesa”.

Recomendando evidentemente — depois de aqui deixar este mote, que talvez agrade ao Libertário, que tem criticado asperamente o que considera uma fixação funesta do próprio Passa Palavra, e não só do João Valente Aguiar e minha, na crítica da "esquerda nacionalista" — a leitura integral e atenta do breve ensaio do Zé Nuno, acrescento ainda, na expectativa de poder contribuir para um debate mais amplo da questão "Como lutar por que democracia?", o comentário que, há pouco deixei, no Passa Palavra, a propósito do que o Zé Nuno escreve, tentando mostrar como o "nacionalismo" e a "burocratização" são, afinal, vias concorrentes, nos dois sentidos do termo, da ameaça de "fascização".


Caro Zé Nuno,

o teu texto é muito interessante e mereceria um comentário mais completo do que este. Mas o meu ponto aqui é o seguinte: apesar de talvez o João ter dado por vezes outra ideia, eu, pelo menos, nunca o li como defendendo a tese de que a haver, no caso de ruptura do euro e de implosão da UE, uma experiência fascista em Portugal, esta seria protagonizada pelo PCP. Este limitar-se-ia a abrir-lhe caminho através da recuperação de temas soberanistas e nacionalistas a pretexto de luta contra a troika e da reprodução e eventual reforço da subordinação das concepções e formas de organização do “descontentamento” e da revolta às concepções e formas hierárquicas já hoje governantes. Podemos acrescentar que outro aspecto do contributo do PCP para a reacção resulta do modo como tende a encerrar a necessária luta contra a austeridade actual num beco sem saída.
Se, por outro lado, pretendes mostrar – no que te secundo inteiramente – que os perigos de “fascização”, digamos assim, podem ser veiculados também pelo federalismo tecnocrático e autoritário que, invocando a Europa e a integração, se propõe já hoje como disposto a reciclar sob formas mais eficazes os aparelhos soberanistas, então, terás de reconhecer que a política de oposição à troika nos termos em que o PCP a formula só pode contribuir para conter e recalcar a emergência dos regimes alternativos dessa acção política anticapitalista porque democrática, e democrática porque anticapitalista, à falta da qual vamos alimentando a servidão voluntária ou a menoridade culpada que nos expropria da liberdade e da responsabilidade igualitárias desse outro nome da autonomia que é o horizonte da plena cidadania activa.
Quanto ao resto, subscrevo no essencial o que dizes – ainda que fosse possível argumentar que haverá quem possa dizer que subestimas as potencialidades regressivas da situação actual – um pouco como tu tens a impressão de que o João as sobrestima.

Abraço

miguel








3 comentários:

Anónimo disse...

Devo dizer que li há pouco um artigo que sintetiza bem o que penso sobre os recentes textos do passa palavra.

http://falaferreira.wordpress.com/2013/02/25/critica-do-passa-a-palavra/

Como seria de esperar, à esquerda estamos todos no mesmo barco do internacionalismo proletário, apenas diferimos na abordagem a curto prazo.

Atenciosamente,
Um militante do PCP

José Couto Nogueira disse...

Não percebo; "acção política anticapitalista porque democrática, e democrática porque anticapitalista"? Desde quando democracia e capitalismo são antagónicos?

Miguel Serras Pereira disse...

José Couto Nogueira,

o antagonismo resulta do facto de a economia governar numa medida decisiva a nossa existência e por ser, assim, um poder político de facto, no qual vigora uma hierarquia e uma desigualdade que excluem à partida o exercício democrático da cidadania.

Tenho escrito muito abundantemente sobre o assunto neste blogue. Veje, por exemplo, caso lhe interesse este post (http://viasfacto.blogspot.pt/2011/06/que-movimento-por-que-democracia.html), entre muitos outros.

Cumprimentos

msp