19/09/13

Quando os patrões deixam de pagar salários




A revolta que paira no ar revela uma gigantesca insatisfação relativamente às formas de vida oferecidas pelo capitalismo, tanto nas suas variedades mais sofisticadas e sedutoras como naquelas outras, mais prosaicas e familiares, assinaladas pela precariedade, pelo desemprego de massas, pela pobreza, pelo tédio, pelo sofrimento, pela opressão. Identificámos nessa revolta uma possibilidade que contém diversas possibilidades: a de uma separação, secessão, subtracção relativamente a esse modo de produção e a essa técnica de governo, a elaboração em comum de novas formas de vida baseadas na cooperação e na partilha, a constituição de uma potência, de uma força material, uma máquina de guerra capaz de subtrair espaços, instrumentos, corpos e saberes ao Império, traçando uma linha de fuga orientada pelos nossos desejos.
 In Sobre a passagem de alguns milhares de pessoas por um breve período de tempo
Deve ser isto a crise. Direitos que são considerados privilégios e privilégios que são considerados direitos. A polícia que dispara e espanca e persegue e é chamada para garantir que a violação da lei decorre com toda a tranquilidade. Trabalhadores assalariados que trabalham sem receber o seu salário. Livrarias geridas por pessoas que nunca leram um livro.
Nada o ilustra como o caso da Bulhosa Livreiros – Sociedade Comércio Livreiro S.A., que despede quem denuncia os salários em atraso dos seus trabalhadores e contrata estagiários e reformados para os substituir. Desde o início de 2013 que o calote se agravou, estando neste momento por pagar vários meses de salário e largas centenas de euros em dívidas a pequenos editores. As Edições Antipáticas (uma editora sem fins lucrativos) pertencem a este segundo grupo, sendo-lhes devidos há mais de 16 meses os valores referentes à venda de 50 livros (mais de 400€), que a Bulhosa se recusa pagar invocando os mais variados pretextos. As Edições Antipáticas iniciaram a sua actividade em 2005 e reinvestem as suas receitas em novas edições, tendo publicado desde então seis livros e vários opúsculos, na sua quase totalidade textos inéditos em português, que podem ser encontrados em diferentes livrarias de Lisboa e Porto e gratuitamente na Internet (edicoesantipaticas.tumblr.com).
Não seremos certamente a única editora a quem a Bulhosa deve dinheiro e a quem os seus administradores tentaram enganar e ludibriar, mas teremos porventura sido os primeiros a quem se esgotou a paciência. Dirigimo-nos à livraria de Campo de Ourique no passado mês de Junho, com o objectivo de fazer a Bulhosa pagar o que deve. Conhecedores do processo de luta na empresa, procurámos nos trabalhadores ali presentes a cumplicidade de quem partilha uma situação comum. Foi explicado por que motivo se estava ali, o que se estava disposto a fazer e a quem se apontavam responsabilidades. Não faltaram motivos para nos entendermos sobre o que estava em questão, mas a resolução do problema não estava nas suas mãos.
Foram duas horas bem passadas até à hora de fecho, com a livraria estancada e direito a visita de algumas chefias – que acabaram por se deslocar à loja após terem garantido ser impossível deslocar-se à loja – bem como um longo telefonema do administrador Pedro Gil Mata, a partir do Porto. Todos (menos os dois trabalhadores de loja) se esforçaram por nos garantir que estava tudo bem e que a vida é feita de mal entendidos. O escândalo terminou com a entrada em cena de três agentes da PSP chamados pela Bulhosa para garantir o fecho da loja. Um dos agentes, após a lógica violenta das declarações mútuas, acabou por perguntar: “Mas por que não pagam o que devem a estes senhores?”
O que tem valido às Bulhosas de todo o tipo e aos passarões que as gerem é que as nossas ideias, as nossas melhores e mais ambiciosas ideias, tardam em sair do papel. De que nos vale o pensamento político traduzido e editado em livros bonitos e baratos (discutidos publicamente e disponibilizados na Internet) quando o que nos falta é um lança-chamas para incendiar as Bulhosas todas deste mundo ou um helicóptero para perseguir a administração e suas contas bancárias? A nossa força será tanto maior se associada à dos trabalhadores que têm salários em atraso e dos pequenos editores que têm dinheiro a haver. Hoje somos editores a quem não pagam, amanhã seremos trabalhadores que não recebem o seu salário e nos dias seguintes todo e qualquer um que se confronte com quem nos rouba a vida e o futuro. O que está em dívida é mais do que o dinheiro e a Bulhosa irá pagar.
Para começar, propomos ocupar a Bulhosa Entrecampos para um debate público no dia 27 de Setembro, pelas 18h00. Convidamos todos e todas para uma conversa com o título “A propriedade é um roubo…” onde todas as participações são bem-vindas.
Limitamo-nos a lançar algumas questões enquanto ponto de partida: Como fazer para que os patrões paguem o que devem? Como recuperar aquilo que é nosso? Como enfrentar essa pequena parte da sociedade que se organizou para explorar todos os outros? Como devolver às lutas e enfrentamentos com o poder político e económico uma efectividade que nos permita contra-atacar? Como impedir o triunfo dos porcos?
Lançamos os dados e vamos a jogo. Até já.

3 comentários:

Miguel Serras Pereira disse...

Lá estarei, camarada Ricardo. Prefiro Orwell a Proudhon, e o "Como Evitar o Triunfo dos Porcos?" ao "A Propriedade É o Roubo", mas lá estarei. Não tenho lança-chamas e prefiro expropriar por utilidade pública os livros a queimar uma livraria com os livros lá dentro; por isso, levo só o meu isqueiro (e é mais por causa do cachimbo), mas lá estarei. Não tenho helicóptero, e, embora tenha cavalo, não tenho hipótese de o mobilizar para esta batalha, mas lá estarei. Esqueceste-te de mencionar a precariedade e os calotes no que toca aos tradutores, mas sei que não foi por mal, portanto, prepara-te para teres de me aturar no debate, porque lá estarei.

Abraço

miguel (sp)

Ricardo Noronha disse...

Fico desiludido por saber que não entrarás na livraria a montar o rocinante ou o bucéfalo. Mas mais do que interessado em ouvir-te falar acerca dos tradutores.

Miguel Serras Pereira disse...

Pois é, meu caro. São cavalos anarco-pacifistas, e, apesar das leituras do Orweel que lhes recomendo, não saem da deles. É a tal ponto que, cuidado, se lhes chamares um desses nomes bélicos que citas (Rocinante, Bucéfalo…), são bem capazes de te ferrar um coice. E, depois, aquela história do helicóptero ofendeu-os. Dizem que são um meio de transporte infinitamente melhor… Que se há-de fazer? Até sexta, pá. E um abraço

miguel(sp)