Deve ser isto a crise. Direitos que são considerados privilégios e privilégios que são considerados direitos. A polícia que dispara e espanca e persegue e é chamada para garantir que a violação da lei decorre com toda a tranquilidade. Trabalhadores assalariados que trabalham sem receber o seu salário. Livrarias geridas por pessoas que nunca leram um livro.A revolta que paira no ar revela uma gigantesca insatisfação relativamente às formas de vida oferecidas pelo capitalismo, tanto nas suas variedades mais sofisticadas e sedutoras como naquelas outras, mais prosaicas e familiares, assinaladas pela precariedade, pelo desemprego de massas, pela pobreza, pelo tédio, pelo sofrimento, pela opressão. Identificámos nessa revolta uma possibilidade que contém diversas possibilidades: a de uma separação, secessão, subtracção relativamente a esse modo de produção e a essa técnica de governo, a elaboração em comum de novas formas de vida baseadas na cooperação e na partilha, a constituição de uma potência, de uma força material, uma máquina de guerra capaz de subtrair espaços, instrumentos, corpos e saberes ao Império, traçando uma linha de fuga orientada pelos nossos desejos.In Sobre a passagem de alguns milhares de pessoas por um breve período de tempo
Nada o ilustra como o caso da Bulhosa Livreiros – Sociedade Comércio Livreiro S.A., que despede quem denuncia os salários em atraso dos seus trabalhadores e contrata estagiários e reformados para os substituir. Desde o início de 2013 que o calote se agravou, estando neste momento por pagar vários meses de salário e largas centenas de euros em dívidas a pequenos editores. As Edições Antipáticas (uma editora sem fins lucrativos) pertencem a este segundo grupo, sendo-lhes devidos há mais de 16 meses os valores referentes à venda de 50 livros (mais de 400€), que a Bulhosa se recusa pagar invocando os mais variados pretextos. As Edições Antipáticas iniciaram a sua actividade em 2005 e reinvestem as suas receitas em novas edições, tendo publicado desde então seis livros e vários opúsculos, na sua quase totalidade textos inéditos em português, que podem ser encontrados em diferentes livrarias de Lisboa e Porto e gratuitamente na Internet (edicoesantipaticas.tumblr.com).
Não seremos certamente a única editora a quem a Bulhosa deve dinheiro e a quem os seus administradores tentaram enganar e ludibriar, mas teremos porventura sido os primeiros a quem se esgotou a paciência. Dirigimo-nos à livraria de Campo de Ourique no passado mês de Junho, com o objectivo de fazer a Bulhosa pagar o que deve. Conhecedores do processo de luta na empresa, procurámos nos trabalhadores ali presentes a cumplicidade de quem partilha uma situação comum. Foi explicado por que motivo se estava ali, o que se estava disposto a fazer e a quem se apontavam responsabilidades. Não faltaram motivos para nos entendermos sobre o que estava em questão, mas a resolução do problema não estava nas suas mãos.
Foram duas horas bem passadas até à hora de fecho, com a livraria estancada e direito a visita de algumas chefias – que acabaram por se deslocar à loja após terem garantido ser impossível deslocar-se à loja – bem como um longo telefonema do administrador Pedro Gil Mata, a partir do Porto. Todos (menos os dois trabalhadores de loja) se esforçaram por nos garantir que estava tudo bem e que a vida é feita de mal entendidos. O escândalo terminou com a entrada em cena de três agentes da PSP chamados pela Bulhosa para garantir o fecho da loja. Um dos agentes, após a lógica violenta das declarações mútuas, acabou por perguntar: “Mas por que não pagam o que devem a estes senhores?”
O que tem valido às Bulhosas de todo o tipo e aos passarões que as gerem é que as nossas ideias, as nossas melhores e mais ambiciosas ideias, tardam em sair do papel. De que nos vale o pensamento político traduzido e editado em livros bonitos e baratos (discutidos publicamente e disponibilizados na Internet) quando o que nos falta é um lança-chamas para incendiar as Bulhosas todas deste mundo ou um helicóptero para perseguir a administração e suas contas bancárias? A nossa força será tanto maior se associada à dos trabalhadores que têm salários em atraso e dos pequenos editores que têm dinheiro a haver. Hoje somos editores a quem não pagam, amanhã seremos trabalhadores que não recebem o seu salário e nos dias seguintes todo e qualquer um que se confronte com quem nos rouba a vida e o futuro. O que está em dívida é mais do que o dinheiro e a Bulhosa irá pagar.
Para começar, propomos ocupar a Bulhosa Entrecampos para um debate público no dia 27 de Setembro, pelas 18h00. Convidamos todos e todas para uma conversa com o título “A propriedade é um roubo…” onde todas as participações são bem-vindas.
Limitamo-nos a lançar algumas questões enquanto ponto de partida: Como fazer para que os patrões paguem o que devem? Como recuperar aquilo que é nosso? Como enfrentar essa pequena parte da sociedade que se organizou para explorar todos os outros? Como devolver às lutas e enfrentamentos com o poder político e económico uma efectividade que nos permita contra-atacar? Como impedir o triunfo dos porcos?
Lançamos os dados e vamos a jogo. Até já.
3 comentários:
Lá estarei, camarada Ricardo. Prefiro Orwell a Proudhon, e o "Como Evitar o Triunfo dos Porcos?" ao "A Propriedade É o Roubo", mas lá estarei. Não tenho lança-chamas e prefiro expropriar por utilidade pública os livros a queimar uma livraria com os livros lá dentro; por isso, levo só o meu isqueiro (e é mais por causa do cachimbo), mas lá estarei. Não tenho helicóptero, e, embora tenha cavalo, não tenho hipótese de o mobilizar para esta batalha, mas lá estarei. Esqueceste-te de mencionar a precariedade e os calotes no que toca aos tradutores, mas sei que não foi por mal, portanto, prepara-te para teres de me aturar no debate, porque lá estarei.
Abraço
miguel (sp)
Fico desiludido por saber que não entrarás na livraria a montar o rocinante ou o bucéfalo. Mas mais do que interessado em ouvir-te falar acerca dos tradutores.
Pois é, meu caro. São cavalos anarco-pacifistas, e, apesar das leituras do Orweel que lhes recomendo, não saem da deles. É a tal ponto que, cuidado, se lhes chamares um desses nomes bélicos que citas (Rocinante, Bucéfalo…), são bem capazes de te ferrar um coice. E, depois, aquela história do helicóptero ofendeu-os. Dizem que são um meio de transporte infinitamente melhor… Que se há-de fazer? Até sexta, pá. E um abraço
miguel(sp)
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