26/01/14

Praxe, obediência e violência

A propósito das praxes e dos acontecimentos recentes que motivaram a discussão em seu redor – assumindo já que abomino praxes (seja qual for a sua forma) e que sou totalmente contra a sua proibição – deixo algumas notas:

1. Parece inegável que o que aconteceu no Meco tem relação com as praxes. No entanto, mesmo não surpreendendo, também parece evidente que foi um caso excepcionalmente extremo. Não deve, por isso, ser linearmente ligado à praxe ou, muito menos, à tradição académica (seja lá o que isso for) como algumas pessoas o têm feito.

2. Também não pactuo com a estupidificação, a infantilização ou a irresponsabilização de quem aprecia, defende ou participa nas praxes académicas (mesmo que muitas vezes se ponham a jeito para tal). Não acho que quem praxe ou seja praxado tenha que ser necessariamente mais ou menos estúpido, mais ou menos ingénuo, mais ou menos fraco ou “maria vai com as outras” do que quem não é praxado. Muito menos consigo ver nisso uma justificação para a sua proibição ou criminalização (se pensasse assim relativamente a tudo o que me desagrada, repugna ou até revolta…). Há muita coisa em jogo na praxe.

3. Posto isto, há divergências fundamentais que me opõem à praxe ou a uma grande parte da tradição académica e me fazem desejar o seu fim. Se é verdade que nem toda a praxe tem que ter consequências tão graves como a do caso do Meco, também é verdade que algo como o que aconteceu não é perceptível sem perceber o que está invariavelmente em jogo na praxe (mesmo que de forma aparentemente inocente) e que, em última instância, enquanto existir algo como a praxe (seja qual for a sua forma e o conteúdo das suas brincadeiras), continuarão a acontecer tragédias semelhantes.

4. O facto de uns rabiscos na cara não serem o mesmo que aceitar rebolar em merda, ouvir parvoíces sexistas e homofóbicas ou obrigar alguém a enfrentar as ondas do Meco, não faz com que o que está por trás disso não seja exactamente o mesmo sistema de subserviência, conformação e obediência acrítica.

5. Como todas as instituições, a praxe tanto se deve a como cria e reproduz um certo um tipo de pessoas. Por isso, o que me parece importante quando se fala de “praxe” ou “tradição académica” é o tipo de pessoas que esta, enquanto instituição, tende a gerar. Não está em causa, para mim, se esta é “amizade”, “integração” ou uma “forma de diversão” – não tenho qualquer dúvida de que é tudo isso –, mas sim que formas de amizade, integração ou diversão promove.

6. Ao assentar em formas de relacionamento hierárquicas e autoritárias e ao promover o conformismo existentes para lá de si (tanto na academia, como, mais genericamente, na sociedade), a praxe contribui para naturalizar e perpetuar uma série de mecanismos altamente conservadores e contra-emancipatórios. Também a ideia de que em nome da integração, da festa, da parvoíce ou da tradição vale tudo (ou a simples ideia de que por ser festa e parvoíce entre amigos ou colegas não há nada de importante em jogo e, logo, não temos que ser excessivamente críticos ou "caretas") não é inocente e não deve ser menosprezada, na medida em que é o primeiro sinal do acriticismo que muitas vezes a sustenta e lhe dá força.

7. Tudo isso tem um significado político. E esse significado político cresce em importância quanto mais “neutralizado” parece ser pela banalidade e naturalidade das acções em causa (fruto quer da sua ligação a estruturas de dominação hegemónicas, quer do próprio papel que desempenham no contexto da universidade).

8. A hierarquia e a identidade são, sem dúvida, formas particularmente eficazes de integração e de criação de sentimentos de pertença colectiva, mesmo (ou especialmente) quando recorrem a rituais violentos ou ofensivos ou quando invocam “tradições” assentes na obediência e na subserviência. Não faltam exemplos na história para o demonstrar. Como tal, o que está em causa e deve ser questionado não é a eficácia daquilo que a praxe diz pretender, mas sim a forma e os mecanismos que adopta para o fazer. Para além de banalizar a obediência e a violência, como disse atrás, um sistema que centraliza e concentra poder leva facilmente situações de descontrolo, arbitrariedade e violência. É por isso que o que aconteceu no Meco é indissociável da praxe e não pode ser visto sem considerar o tipo de pessoas que esta, enquanto instituição, cria ou privilegia.

9. A atestar o carácter extremo que pode assumir e como as potenciais consequências envolvidas vão para lá dos excessos de um ou outro indivíduo, está o respeito revelado por um grande número de alunos, mesmo perante um caso tão trágico como este, pelo tal “pacto de silêncio” – uma regra aparentemente tão banalizada pela instituição da praxe que até numa situação com esta gravidade permite que se ignore o que está para lá dela, privilegiando o seu “código” em detrimento de outros factores e valores.

10. A demonstrar, ainda, o grau de obediência e submissão a que a praxe pode chegar, está o voluntarismo de quem é praxado (mesmo quando já não é um "simples" caloiro). Este voluntarismo é o que torna a praxe particularmente complexa, pois não só é o que o expõe a banalidade da obediência e da violência que existem a montante da praxe (o contexto social) como é o que demonstra a sua eficácia na reprodução e consolidação desses elementos, servindo, em última instância, como sua legitimação. A praxe encaixa perfeitamente numa sociedade cheia de pessoas que tanto gostam de mandar como de ser mandadas.

11. Quanto à proibição, é precisamente porque a praxe reflecte o que existe, e é, por isso, indissociável dum contexto mais amplo, que sou contra a sua proibição ou criminalização. Para além de me parecer uma solução ineficaz, a proibição reproduz, por outra via, a subserviência e obediência acríticas que tornam a praxe abominável. Por outras palavras, o seu problema de fundo – aquilo que a torna possível e que supostamente “neutraliza” o seu significado político – fica por resolver. Para quem se opõe apenas à violência (psicológica ou física) envolvida na praxe, a criminalização e proibição desta podem ser suficientes; no entanto, devem reconhecer que ao ignorar as suas causas estruturais estão simplesmente a deslocar para outro “lugar” essa violência. Não se acaba com uma polícia dentro das universidades (ou fora delas) substituindo-a por outra polícia.

12. Para concluir, a praxe é só mais uma das coisas que demonstra que a “hierarquia das causas” que muita gente se apressa a esgrimir (“está tudo a discutir as praxes/ a vida de um cão/ o eusébio quando o que interessa são as pensões/ o desemprego/ o capitalismo/ a guerra/ a fome”), especialmente quando os temas em discussão fogem da sua agenda de prioridades, não faz qualquer sentido. Não só pelo ascetismo que tem implícito e que parece sugerir que o que é verdadeiramente importante exige, nas suas vidas, uma dedicação exclusiva de 24 horas, como porque ignora a profunda interrelação entre muitas coisas aparentemente distintas e distantes. A praxe não só merece ser discutida em si, como é excelente para pensar o país e o mundo que temos – até porque nos lembra que os obstáculos a contornar para que outro mundo seja possível assumem muitas formas diferentes no nosso quotidiano.


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Finalmente, tudo isto lembra o Die Welle, um filme que retrata uma experiência feita numa sala de aula por um professor que pretendia provar aos seus alunos cépticos que algo como o nazismo podia perfeitamente voltar a repertir-se. O filme passa-se na Alemanha mas baseia-se numa experiência realizada nos EUA nos anos 60. Não é brilhante, mas vale a pena ver, especialmente com todas estas coisas em mente. Para não me esticar mais, fica um artigo publicado no The Guardian sobre o filme:



4 comentários:

Unknown disse...

O filme "A Onda" é bem lembrado.
Eis a minha opinião: http://ohomemquesabiademasiado.blogspot.pt/search?q=a+onda

Q. Werwer disse...

É uma boa colecção de NIM's, ou seja, de SIM,SIM's mas NÃO,NÃO's… e vamos lá dormir descansados a pensar noutras coisas, depois destes profundos raciocínios e inócuas posições.

Já agora, realmente, o que é que conclui... só para ajudar a pensar ????
Propor ver o filme é uma boa saída airosa, porque não a "Branca de Neve e os 7 anões" para NIM também serve.

Diogo Duarte disse...

"Nim" parece-me uma boa conclusão, não percebo o desagrado. Lamento que o texto não diga o quer. O "nim" parece-me a melhor forma de escapar entre os pingos da chuva e de me esconder algures no meio dos extremos da escala que têm dominado a discussão: dum lado quem é a favor da praxe e vê nos seus motivos para isso legitimidade para ignorar o que aconteceu; e do outro quem é contra e deseja a proibição (tal como provalmente terá tendência para desejar a proibição de tudo aquilo a que se opõe) ou defende uma espécie de praxe invertida, que passa por canalizar contra os "praxistas" toda a violência e autoritarismo que critica neles. Talvez por medo de represálias de um lado ou do outro fiquei-me pelo "nim" e escrevi umas notas rápidas e soltas em vez dum ensaio.
Também por isso fico satisfeito com o carácter inócuo do texto. Até porque prefiro a descontracção de escrever posts à responsabilidade de emitir pareceres. Só não percebo é por que é que acha tão importante saber uma conclusão absoluta minha sobre o assunto e eu só tenho direito a saber a sua sobre um texto inócuo, ignorando o que afinal pensa sobre algo que parece tão importante para si?

Diogo Duarte disse...

(E o filme, apesar de ser uma saída airosa, era só uma sugestão e não uma conclusão. Aliás, agradeço ao "Homem que Sabia Demasiado" a partilha da sua opinião sobre ele)